Entrevista a Jorge Silva Melo – Actor, Encenador, Realizador e Director Dos Artistas Unidos
Esteve no teatro universitário, fundou o Teatro Da Cornucópia, esteve em Inglaterra, na Alemanha, em Itália a fazer teatro e formou uma Cooperativa de Cinema. O que representa para si este percurso internacional teatral, a fundação da cooperativa e da Cornucópia e o seu início no teatro através do teatro universitário?
Sim, fiz muitas coisas. Tenho 72 anos. Comecei novinho ,comecei a escrever sobre cinema no Diário De Lisboa juvenil que era um caderno de jovens, mas muito sério, dirigido pelo Mário Castrim e onde apareceram pessoas como o José Mariano Gago, o José Pacheco Pereira, o Luís Filipe Castro Mendes. Gente célebre e eu fui um desses jovens que comecei ali a escrever aguerridamente e controversamente e controvertidamente sobre cinema e algum teatro. Depois comecei pelo teatro universitário porque era a única maneira, não havia associações na Faculdade De Letras, tinham sido proibidas pelas greves de 62 ou 63. Mas havia o grupo de teatro da Faculdade De Letras e ai conseguíamos encontrar-nos, fugir às aulas e pensar no nosso próprio destino. A coisa mais importante que fizemos com o “Anfitrião” em 69 o “Anfitrião” de António José Da Silva dirigido por Luís Miguel Cintra. Dirigia um rapaz de 19 anos o Luís Miguel Cintra, eu no protagonista que tinha 20 anos, a Eduarda Dionísio, o José Júdice, a Ermelinda Duarte, a fazer a Cornucópia. Esse espectáculo, que marcou toda a gente da minha idade e que foi uma surpresa de invenção, de alegria, de novidade, marcou-nos claro e quando fizemos uma companhia profissional que ficou com o nome da criada escrita pelo António José Da Silva – Cornucópia : deu o teatro da Cornucópia, o corno da abundância, essa imagem da riqueza que nunca tivémos. É engraçado que a outra criada famosa do mesmo autor chamava-se, noutra peça, “Geringonça”, e era a Maria Do Céu Guerra que a fazia na “Esopaida”de Carlos Avilez.
É encenador, actor, realizador e pessoa que tem promovido e trabalhado as actrizes e os actores quer no teatro, quer no cinema, e que se tem dedicado há muitos anos a promover grandes autores e também pintores através do teatro, com os 12 filmes que fez sobre pintores.
Numa altura em que a cultura continua a ser muitíssimo mal tratada e posta de lado, que importância tem para si todo esse trabalho cultural? O que tem aprendido e o que é que o tem motivado?
Fui fazendo muitas coisas, fazendo cinema, trabalhando com gente muito diferente. Escrevi, organizei exposições, fiz filmes sobre artistas plásticos, acho que é tudo a mesma coisa, gosto de fazer tudo. Também fui bilheteiro e gostei de ver a cara dos espectadores entregando-me dinheiro com a esperança de passarem uma boa noite e de serem felizes, é uma experiência que não esqueço e gosto. Gosto dessas coisas todas e para mim não são coisas diferentes, estar aqui em casa a dar uma entrevista ou a escrever um artigo, ou a preparar a versão cénica dum texto, para mim é viver.
O trabalho é uma maneira de estar com os outros, fazer teatro para mim é estar numa sala com vinte, cinquenta, duzentas , mil pessoas a pensar na mesma coisa, todos ao mesmo tempo. E a coisa mais gratificante que temos e que é um vício é ouvir uma gargalhada soltar-se em uníssono: quatrocentas pessoas a rirem ao mesmo tempo a descobrirem uma novidade ao mesmo tempo. É isso o teatro, é olhar nos olhos dos espectadores, podermos estar ali a respirar o mesmo ar, bem sei que agora é perigoso e temos de usar máscara, mas quando não tínhamos que bom que era estarmos todos a respirar e a viver em uníssono.
Fundou os Artistas Unidos em 95, o que tem permitido, através do seu trabalho de pesquisa, levar à cena textos contemporâneos, que também promovem através dos “Livrinhos De Teatro”.
O que é que tudo isso significa para si?
Quando fundei os Artistas Unidos porque queria trabalhar com actores muito mais novos do que eu, com quem ainda trabalho, o Manuel Wiborg, a Joana Bárcia, o Américo Silva, o João Meireles, o António Simão, que ainda estão regularmente ou sempre comigo, o Pedro Carraca. Percebi que havia um sítio que o teatro português não ocupava. Estavam a fazer muitos clássicos, a fazer Shakespeare, Molière, Almeida Garrett, mas ignoravam que havia teatro a ser feito por rapazes e raparigas da nossa idade ou mais novos, rapazes e raparigas. E foi isso que me interessou, começámos por ser eu próprio a escrever o António O Rapaz De Lisboa e depois O Fim Ou Tende Misericórdia De Nós e fiz umas seis ou sete peças. E depois fomos descobrindo Spiro Scimone na Sicilia, David Harrowes na Escocia, Jon Fosse na Noruega… Enda Walsh na Irlanda agora radicado em Londres como todos os irlandeses. Fomos descobrindo, descobrindo, trabalhando... Eu acho particularmente interessante saber que há textos que estão ainda frescos de tinta, ainda frescos das primeiras vozes dos actores que os estrearam, ou estrear textos mesmo acabadinhos de fazer de corrigir durante os ensaios, durante o tempo dos ensaios. Fazer clássicos é muito importante. Foi isso que defendi quando fundei o teatro da Cornucópia – porquê? Porque nessa altura ninguém fazia clássicos em 69 ninguém fazia António José Da Silva, ninguém fazia Moliere, eram mal vistos pelos poderes instituídos. Mas em 95 toda a gente fazia clássicos porque era mais barato, não se pagava direitos. E ninguém fazia os nossos semelhantes, ora para os nossos semelhantes - espectadores – artistas – actores – poetas que me interessa falar.
O que nos pode falar sobre estes 26 anos de luta pelo Teatro e por mostrar outro tipo de obras?
Tem sido bom, às vezes não somos reconhecidos, às vezes há espectáculos de que eu gosto particularmente ou textos que eu gosto particularmente e que os espectadores recusam … Por exemplo, Enda Walsh que eu acho um dos autores maiores nunca foi bem recebido, nunca teve muito público em Portugal, faz-me muita pena. “Sala VIP” foi a última peça que por enquanto eu escrevi foi um desastre catastrófico de espectador ninguém quis ver. É estranho haver umas peças que sim e outras peças que não. Mas olha é assim, aquilo que eu gosto é de ter uma companhia do que ora descobre Davide Carnevali, Lluisa Cunillé, ora regressa a Pinter ou Tennessee Williams... Agora estávamos a ensaiar “A Morte Do Caixeiro Viajante” para uma estreia o Teatro Nacional D. Maria II, tínhamos previsto oito semanas de ensaio e tivemos cinco semanas e meia. E o espectáculo está pronto. Ou seja estes actores com quem trabalho, em quem tenho confiança, que gostam de mim, que gostam do texto, que gostam disto que estamos a fazer, com medo dos ensaios que iriam ser cancelados ou pelo Covid ou por não sei quê despacharam-se. Estamos com uma equipa pronta a jogar. Capaz de jogar. E eu como treinador desta equipa que é fixa, mas que a todos os momentos vou acrescentando pessoas para que o equilíbrio não seja o rame rame de uma profissão sempre a mesma. Neste momento por exemplo é a primeira vez que estou a trabalhar com Pedro Caeiro que é um jovem actor muito talentoso que eu já tinha visto noutras produções dos Artistas Unidos com quem eu nunca tinha medido meças – trabalhado – exigido. É isso que eu gosto, adorava que este espectáculo pudesse ser visto, pudesse fazer pelo menos a digressão que tínhamos previsto, mas olha Lisboa caiu, Porto caiu, Bragança por enquanto caiu, Cartaxo por enquanto caiu. Esperemos poder estreá-lo em Portalegre a 23 De Abril neste ano. Veremos. Mas aquilo que conseguimos e uma vez a Glicínia Quartin grande actriz e minha amiga disse isso, foi uma das maiores conquistas do 25 De Abril, foi a disponibilidade, a ligeireza, a leveza, a capacidade de trabalho dos jovens actores. Agora já não são tão jovens como isso. O Américo Silva já ultrapassou os cinquenta e faz o protagonista de “A Morte Do Caixeiro Viajante”. Eu espero que seja ressurreição é depois da Páscoa.
Já falou algumas vezes da sua prisão na ditadura fascista e diz que para si foi uma aprendizagem. O que devemos aprender com a ditadura fascista e o 25 de Abril, principalmente nestes tempos de crescimento da extrema-direita e do populismo?
Não sei o que é que eu aprendi com a ditadura o que é que eu podia não ter aprendido com a ditadura. Aprendi que a minha a minha juventude era diferente das dos meus amigos franceses, ou dos meus amigos ingleses com quem eu trabalhei quando estive em Londres na escola, ou dos meus amigos americanos com quem ainda mantenho relações desde 69. Era diferente. Eu tinha de estar preparado para um país diferente, para inventar um país diferente. Não queria perder-me nos prazeres pessoais a que se entregavam os rapazes mais livres do meu tempo. Eu sabia que estava preso, eu sabia que mesmo em Londres e querendo regressar a Portugal mal pudesse estava preso. A minha juventude ameaçada pela guerra colonial, ameaçada pela cadeia, pela PIDE e sabia que, e se calhar foi isso que me fez voltar em 95. Sabia que era privilegiado, sendo um privilegiado eu tinha a obrigação de voltar para Lisboa e de oferecer aquilo tudo que eu sabia, oferecer – alugar – ou vender. Aquilo que eu fui aprendendo graças a estes privilégios a quem viesse depois de nós. Era aquilo que eu queria, aquilo que eu ganhei por privilégio pudesse servir para alguma coisa.
Na entrevista que deu à Grande Entrevista da RTP1, refere que está a perder o teatro pelo que lutou nos anos 70 e no Facebook fala muito sobre a história do teatro de Lisboa e do desaparecimento e abandono de muitos espaços teatrais. O que se tem perdido de história, de cultura e de memória com estes desaparecimentos e abandonos?
O que me faz muita impressão é a destruição sistemática das companhias, ou seja daquele grupo de vinte, trinta, quarenta artistas que vivem em conjunto as agruras do dia-a-dia, as dificuldades e as vitórias do dia-a-dia. Eu gosto de companhias de teatro. Gosto de ter um elenco fixo pago, devidamente e indevidamente contratado, quinze actores será sempre o mínimo, quinze/ dezoito actores em que possa alternar, em possa por um actor a fazer um papel cómico e numa temporada seguinte um papel dramático, um papel de jovem ou um papel de velho, ou seja ver a transformação de que actores são capazes, não são só os transformistas que se transformam, os actores transformam-se. E é muito bonito poder acreditar que um actor de cinquenta anos pode ainda fazer um jovem tal como pode já fazer um velho. Aquilo que se perdeu foi essa noção da transformação e tudo passou a ser uma festa. Aquilo que eu mais detestava quando era novo que era o social das estreias, toda a gente de casaco de peles e de fraque, os que iam ao S. Carlos, esmagando os Verdis libertários que eu ouvia vindos do palco. Isso tudo foi-se perdendo, agora o que há é um teatro que se faz em três récitas para dentro da profissão. Faz-se teatro não para os espectadores mas para dentro da profissão. E são profissionais à espera de trabalho aqueles que vão às estreias. Faz-me imensa impressão que as estreias se tenham transformado em sessões de casting praticamente. Aquilo que se perdeu foi a ideia de um e cito um autor que não era populista Roland Barthes a ideia de um teatro popular, ou seja um teatro onde se possam discutir as nossas questões de vida – morte – emprego – dinheiro – amor – divórcio – ódio e uma forma que nos atinja a muitos, não digo a todos.
Ando a ler os textos Roland Barthes quando ele era um crítico de teatro de revista Theatre Populaire e era impressionante como esses sonhos todos aqueles em que eu acreditei quando tinha quinze, vinte anos desapareceram. Agora o teatro é uma coisa internacional que viaja de avião, faz aqui um dia, faz no outro sítio três dias, faz noutro sítio quatro e depois? O que é que ficou dessa experiência? A que chamam internacionalização como os clubes de futebol e as fadistas fazem mais do que isso. É uma triste diminuição do papel cívico e responsável do teatro. O que é bonito no teatro é uma sala com quatrocentas pessoas se as houver a pensarem ao mesmo tempo em como é que havemos de sair desta merda
Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.
Projecto Vidas e Obras
Entrevista: Pedro Marques
Correcção: Fátima Simões
16 De Março de 2021
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