top of page

Entrevista A Inês da Silva – Espera Sentada


  1. Publicou no Instagram: "A Importância Da Representatividade". De que forma os brinquedos, podem ser um exemplo e passar uma mensagem positiva, sem preconceitos?

Sabemos que as crianças são seres cuja plasticidade é uma, senão a maior, das suas características, esta é uma questão muito biológica e que implica a sobrevivência, porque é na infância que obtemos e guardamos as nossas primeiras impressões do mundo. É a partir daqui que aprendemos que, por exemplo, o fogo queima e que não lhe devemos tocar. Criam-se as primeiras noções de causa-efeito e, portanto, é crucial que proporcionemos à criança situações que a façam compreender o que a rodeia. Até que a confrontem com um tema, a criança não sabe nada sobre ele. Não tem pré-conceitos.

Desta forma, e sendo extremamente susceptíveis a toda a informação que recebem do mundo exterior, o mundo mental dos mais pequenos é ainda pouco desenvolvido e requer, sobretudo, noções de fácil entendimento. Neste sentido, pode ser interessante abordar a palavra Deficiência quando estamos perante esta realidade, mas é igualmente importante trazê-la para uma relação de proximidade com a criança, que nesta fase, está muito associada ao imaginário que é estimulado pelas brincadeiras e até pelos próprios brinquedos. Ao assimilar a noção de Deficiência na infância, espera-se que na fase adulta esta não seja uma problemática na convivência. É mais provável que a pessoa venha a entender esta realidade como apenas mais um modo de vida, como tantos outros, sem lhe implicar uma ideia muito polarizada.


  1. Partilhou no instagram: "Petição Pelo Direito à Parentalidade Na Deficiência" - Pelos direitos dos pais e mães com deficiência. Que importância tem o direito à parentalidade com a aprovação desta lei? Como pode ser determinante para que haja respeito e igualdade? Que impacto é que pode ter no futuro dos pais?

Actualmente, as Pessoas com Deficiência ainda são muito perspectivadas como aquelas a quem o Cuidado é dirigido, ou que se apresentam numa posição de fragilidade social, dado o foco no factor saúde. Estas ideias levam-nos a uma consequente anulação de conceitos opostos, entrando aqui a Independência e áreas da vida pessoal onde esta seja intrínseca, como é o caso da integração do mercado de trabalho, do investimento em formação superior, de relações afectivas e/ou sexuais, incluindo também a parentalidade. Porque se pensarmos de uma forma, a meu ver, retrógrada (mas comum), uma pessoa vista como física ou mentalmente frágil, que possa, inclusive, precisar de apoio de terceiros, não irá perspectivar ou querer ter a seu cargo uma criança. Dará “ainda mais trabalho” à(s) pessoa(s) que lhe possa(m) estar a dar o suporte necessário. E num pensamento mais extremo, até podemos imaginar que este objectivo nunca lhe passará pela cabeça, como a qualquer outro comum mortal. Como se a pessoa com deficiência visse a sua vida desumanizada, ausente de quaisquer objectivos pessoais. Este raciocínio é muito erróneo. Cada pessoa viver à medida da sua realidade, assim é a parentalidade na deficiência.

Quem vive a Deficiência na primeira pessoa não se guia pela sua realidade e sim pela da maioria, os seus modelos são duma realidade de pessoas sem Deficiência, não só por ser o que lhe está mais acessível, mas também pela tentativa recorrente de provar a si e aos outros que é capaz de se equiparar às competências de um corpo normativo. A parentalidade, sendo das facetas da Diversidade Funcional com maiores níveis de invisibilização, reprime vidas de possíveis e actuais progenitores, bem como os limita na sua Representatividade e ao acesso a sectores relevantes. Essa petição foi criada pela Joana Silveira, uma mãe com deficiência com quem costumo conversar e trocar ideias. A Joana falou publicamente da dificuldade em inserir a filha na creche mais próxima de casa, o que seria essencial para as duas na questão da logística diária. Se estiver a chover, uma mãe ou pai que se desloque em cadeira de rodas, ou que, como a Joana, tenha diferença de membros superiores, tem de escolher usar um guarda-chuva em si mesma/o ou na criança. Outra questão que me deixa profundamente indignada enquanto Mulher, e até constrangida, relativamente a este assunto, é saber que o país que me criou é dos poucos da Europa que ainda permite a prática da esterilização forçada em mulheres com deficiência.


  1. No 25 De Abril publicou: "Liberdade Rima Com: Visibilidade, Representatividade, Acessibilidade" Como é possível alcançar a visibilidade, representatividade e a acessibilidade, assim como a liberdade, e plenos direitos?

O caminho para os plenos direitos, diria, é uma visão um pouco utópica, não obstante, acredito que será essa utopia a força motriz para garantir valores basilares como é o caso da Independência. Actualmente, temos normas de Acessibilidade satisfatórias e que podem ser consultadas nas plataformas do Diário da República e lendo a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o que falta é fiscalizar e confirmar se na prática esta legislação está a ser respeitada.

Existe também o Modelo de Apoio à Vida Independente, vulgo MAVI, que foi trazido a Portugal em 2019. Palavras complicadas para dizer que as pessoas com deficiência puderam passar a ter, gratuitamente, um Assistente Pessoal escolhido por si mesmas e que lhes daria o apoio necessário nas mais diversas tarefas. Este foi um projecto-piloto financiado por fundos europeus, não internos, o que teve um peso acrescido no desenvolvimento desta ideia. Como alguns saberão, projectos-piloto chegam obrigatoriamente ao fim e cabe ao Governo decidir se se adoptará o serviço com base nos nossos apoios a nível nacional. Assim, e com muitas arestas por limar, este serviço que está distribuído por quase todo o país através de cerca de 30 centros está sujeito a aprovações internas, e o nosso Governo mudará em breve.

A instabilidade a que estes trabalhadores e destinatários estão sujeitos é constante, os contratos são em regime de comissão de serviço e o limite é de 6 meses, caso a Segurança Social renove esse prazo, tudo continua. Além desta incerteza que acontece, pelo menos duas vezes por ano, como é evidente, acresce o facto dos assistentes ao saber que podem ser dispensados a qualquer momento, fazem o que podem para não ficar sem emprego. Muitos preferem trocar de trabalho, pela procura de estabilidade – é legítimo. Do outro lado, fica um destinatário sem assistente para ir trabalhar, para ir estudar, ou até para fazer a sua higiene diária. Há assistentes a fazer de tudo um pouco, e nesta negligência causada por falta de recursos há também casos de pessoas que ficam semanas sem tomar banho por falta de apoio. É desumano.

O reconhecimento desta profissão e a sua desmistificação sobre ser um acto de coragem para quem a escolhe são urgentes. Ter um Assistente Pessoal, ou mais, se necessário, é um passo em frente na quebra da institucionalização. É uma forma de manter as pessoas no conforto das suas vidas, dando-lhes a possibilidade de escolher se o querem quebrar e ter uma vida mais activa. É redefinir a auto-determinação de cada um de nós, e potenciar a estrutura interpessoal, no fundo, é um combate ao isolamento.


  1. Fez a publicação: "Dia Internacional Da Pessoa Com Deficiência E O Poder Do Vocabulário." Que impacto pode ter o vocabulário nas pessoas com deficiência?

A vitimização e a inferiorização associadas à Deficiência transportam-se sobretudo nas nossas palavras, na forma como a abordamos e pensamos. Nem sempre as palavras são apenas palavras, muitas vezes são um espelho, dependendo também do tom com que são ditas e do contexto. E quando eu passo por uma pessoa cega e digo “Oh… coitadinha!” num tom condescendente, como o que usamos com os bebés, quiçá acompanhando a frase com um gesto ternurento não solicitado, além de estar a infantilizá-la, estou a colocá-la num patamar abaixo de mim. Isto pode não ser intencional, e pode até nem ser consciente, não demonizo alguém por fazê-lo, mas é algo que é desconfortável para muita gente e é uma reflexão que todos podemos fazer no sentido de: que efeito é que as minhas palavras estão a ter no outro? Será que eu lhe diria isto se ela não tivesse deficiência?

Para quem está de fora, é um comentário inocente, mas muito provavelmente, durante aquela semana, aquela mulher cega já ouviu dez outros comentários de outras pessoas, e sempre com o mesmo tom vitimista. Quando tantas pessoas nos dizem o mesmo, nós, inevitavelmente, acreditamos. Acabamos por interferir com a Auto-estima de uma pessoa, fazendo-a crer que não é capaz, que não é útil, que não é merecedora de sentir-se bem com o corpo que tem justificando isso com “a falha” que é a Deficiência.

O mesmo se aplica a frases motivacionais, será que as dirigimos diariamente às pessoas que nos rodeiam? Ou só o fazemos quando assumimos que a pessoa é mais frágil do que nós? Todas as opiniões e crenças são válidas, mas não as podemos impingir ao outro, as consequências à saúde mental são obviamente negativas quando reprimimos alguém. Dizer a uma pessoa numa cadeira de rodas que Deus a vai curar ou que ela vai voltar a caminhar, muito provavelmente, não é o que a pessoa quer e nem precisa de ouvir naquele momento. Propagar a ideia da cura só faz com que não se aceite o corpo que se tem, é uma auto-repressão e entramos em negligência com o físico. Confesso que o meu calcanhar de Aquiles é o foco extremo em ter uma rotina diária activa, quando sei que preciso fisicamente de momentos de repouso. É a minha tentativa inconsciente de me aproximar de um corpo normativo e de me sentir mais capaz, sempre me incutiram o quão impensável isso seria para mim. Claro que, ainda que, por vezes no limite, tomo consciência deste meu acto masoquista e respeito o meu corpo, chegando ao meu objectivo, mas a um ritmo mais adequado.


  1. Escreveu no Instagram:" E Agora, vais Trabalhar Onde?" De que forma é possível combater a condescendência e a total desvalorização das capacidades da pessoa com deficiência?

O mercado de trabalho, para mim, ainda é um tabu. Sempre tive muitas dúvidas quanto às quotas para trabalhadores com deficiência, e cada vez mais me convenço de que a discriminação positiva, no mundo em que vivemos, é um mal necessário. As entidades empregadoras não fazem questão de ter um local de trabalho acessível e/ou inclusivo, e nós, futuros e actuais contribuintes nunca sabemos bem onde procurar um primeiro trabalho, atendendo às barreiras habituais.

Se não obrigarmos as empresas a contratar, acontecerão, decerto, três coisas: a primeira é que estas entidades dificilmente chegarão a perceber que um funcionário com deficiência será produtivo como qualquer outro trabalhador, e não um encargo ao contrário do que se possa estigmatizar; a segunda é que esta comunidade continuará com a porta do mercado de trabalho altamente barrada, porque no momento da entrevista é, muitas vezes, perceptível que vão ser pessoas descartadas; e isto leva ao terceiro acontecimento, que é o manter e o acumular de pessoas com deficiência no desemprego, independentemente das suas qualificações, o que só alimentará o risco de pobreza, de dependência de outros – até dos próprios serviços sociais. A economia só beneficiaria com a integração das pessoas com diversidade funcional no mercado de trabalho.


  1. Escreveu no instagram “Ser Mulher com Deficiência, ainda é Ser Mulher”. Vivemos numa sociedade machista, patriarcal e que discrimina as mulheres, ainda muito mais as mulheres com deficiência. Como é possível combater a desconsideração de género, o não ensino da educação sexual, a menorização do ser mulher?

Gostaria de ter, para esta pergunta, uma resposta linear, mas quando falamos de pessoas não nos podemos abstrair das vivências individuais. No entanto, penso que a adopção de uma estratégia nacional com foco nestas preocupações seria o ideal, não só na área do Ensino, mas também da Saúde. E, ainda assim, tendo em conta que Sexualidade e Mulheres combina com recato, Sexualidade, Mulheres e Deficiência pode combinar com constrangimento. Gosto de apostar no Ensino, porque os jovens são mais flexíveis, mas os jovens são menores e não decidem por si próprios, principalmente se precisarem de cuidadores para tarefas mais básicas. Se fosse uma ideia implementada a partir da maioridade funcionaria, já que a pessoa decidiria por si própria, mas talvez fosse demasiado tardia, dado que a Sexualidade implica um processo de auto-conhecimento ao longo de toda a adolescência.

O Sexo que é ensinado nas escolas não pode ter única e exclusivamente a típica abordagem mecânica e reprodutiva, tem de ser explicado como uma área normal e presente na vida de cada um, onde cada pessoa tem abertura para compreender o seu corpo e decidir o que quer, ou não, fazer com ele. Não é o meu caso, mas existem mulheres com deficiência com sensibilidade alterada na parte inferior do corpo e que nos seus relacionamentos encontram alternativas à entendida como típica relação sexual. A noção de consentimento tem de estar sempre presente, e não nos podemos esquecer que, sendo socialmente perspectivada como inferior, numa relação íntima, a mulher com deficiência passa facilmente por situações de coação sexual, por exemplo, no sentido fazê-la ceder a não usar preservativo. O tabu em redor disto facilita essa cedência, fá-la sentir-se isolada e culpada.

Inclinar-me-ia, essencialmente, para as escolas e para abordagens mais genéricas de modo a gerar debate. Focar não só no corpo, mas no que este sente, em questionar sobre os limites e a legitimidade do outro decidir sobre o meu corpo. É também uma questão de oradores e de estes fazerem com que todo o público-alvo intervenha, tive um episódio escolar numa destas sessões de esclarecimento em que fui completamente silenciada e excluída numa sessão sobre contraceptivos. A verdade é que dali não aprendi nada, nem sobre o próprio ciclo menstrual, toda a informação que obtive foi externa à escola, em conversas entre amigos e pesquisas. Isso não faz com que a escola tenha falhado menos, e por isso, decerto que haverão mais meninas com deficiência a não se sentirem mulheres.


  1. Quais são os seus sonhos para Portugal?

Num grupo de amigos, sou facilmente descrita como a ambiciosa, o que pode ser interpretado como idealista ou alguém que se ilude facilmente, mas gosto de pensar que é para este futuro (inclusivo) que trabalhamos hoje. Espero um Portugal mais aberto à Diversidade, em todas as formas, não só na Deficiência, mas na Sexualidade, nas ideologias de género, étnicas e culturais. Somos um país que atrai os outros países, mas que ainda tem grande dificuldade em manter e sustentar as suas próprias pessoas, mesmo essas que nos chegam do exterior, que quando tomam consciência do custo de vida deixam de conseguir cá estar e ter uma vida de qualidade.

Na verdade, o que sonho para Portugal é um lugar física e figurativamente bom para se estar, bom para se viver, através da Equidade de oportunidades. Espero um país mais receptivo a pequenas (mas significativas) mudanças, e que percebamos que incluir realidades não é sinónimo de abdicar da nossa própria. Entender o outro não deve excluir-nos a nós mesmos, e digo isto sem qualquer delimitação entre mim e os outros, falo de uma perspectiva individual independentemente das origens de cada um.

Que tenhamos casas para morar, que possamos manter os jovens por cá sem que tenham de abdicar do conforto ou da vida social, e que não vivamos só para trabalhar. Espero, igualmente, que não nos deixemos cegar por ideologias, sobretudo as de ódio, e que ao contrário disso, saibamos ter uma visão holística do mundo e da sociedade, sem deixar que perspectivas únicas e discursos populistas nos dominem. O mundo é de todos, é para todos. Se não é, devia ser. A minha liberdade não devia afectar a de mais ninguém, e se assim for, não é liberdade, é revolução.

É isto que espero para o nosso país, mas sei que o caminho será demorado. Até lá, esperarei, como sempre, sentada.



Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

 

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: João Moreira

10 De Fevereiro De 2024

Yorumlar


Recent Posts 
bottom of page