Entrevista a Leonor Rosas
“O tempo da polícia nas faculdades” - Escreveu este artigo para condenar os actos da polícia perante o protesto de estudantes pelas alterações climáticas. De que forma devemos ter como referência as acções fascistas em relação à luta estudantil no regime fascista, comparando com as acções da polícia neste protesto?
R: Escrevi o supracitado artigo porque, no ano em que celebramos os 50 anos do 25 de Abril, e tendo em consideração a importância da luta estudantil para deitar abaixo a ditadura do Estado Novo, pareceu-me particularmente chocante que a polícia entrasse numa faculdade de forma tão impune e violenta. Os estudantes foram fundamentais para abanar a pesada ditadura fascista em que vivíamos: estes não aceitavam a falta de democracia e liberdade nas suas universidades, rejeitavam a mobilização para a Guerra Colonial, exigiam a libertação dos seus colegas presos e, fundamentalmente, eram jovens em luta por um país de liberdade e igualdade. As crises académicas foram momentos centrais da contestação ao regime. Nesses tempos, a polícia carregava nos estudantes, infiltrava-se nas suas reuniões, reprimia as suas liberdades e prendia-os. No seu âmago, a faculdade deve ser um espaço de aprendizagem não apenas dentro da sala de aula, mas igualmente fora dela: nas associações, movimentos sociais, protestos e manifestações, grupos culturais e cívicos. Hoje, não podemos deixar cair essa natureza insubmissa das nossas faculdades e estudantes. É inaceitável que a polícia, hoje, venha reprimir protestos de activistas climáticos dentro de uma faculdade.
Escreveu o artigo “As coisas que as mulheres explicam”. Como é possível acabar com o machismo, a mentalidade de homem branco, colonialista e capitalista que impede a igualdade de género?
R: Bem, essa é uma pergunta muito difícil. É uma das grandes perguntas às quais todas tentamos responder. A resposta tem muitas vertentes, posso apenas deixar algumas pistas que me parecem relevantes ao nível institucional no que toca ao feminismo: o combate à violência de género e ao femícidio que continua a ser o crime que mais mata em Portugal; o combate à desigualdade nos salários que continua a existir entre homens e mulheres; a aposta na educação sexual e para a cidadania que ensine a igualdade e combata o preconceito; a transformação da violação em crime público; a criação de um Serviço Nacional de Cuidados, etc. Ao mesmo tempo, quer ao nível do combate ao patriarcado, ao racismo ou ao capitalismo, há uma luta fundamental a ser feita na rua, contrariando a onda de ultra-conservadorismo e preconceito que se tem vindo a agigantar e com militância anti-fascista.
Alguns dos seus interesses académicos são a Memória Histórica, a descolonização da nossa sociedade, o combate ao racismo, a forma como encaramos o nosso passado colonial. O que a motivou a estudar estes temas? E hoje, passados quase 50 anos do 25 de Abril, o que precisamos de saber e estudar?
R: Penso que o meu interesse em estudar estes temas derivou fundamentalmente do facto de considerar a memória e a reparação histórica como pilares centrais na construção de um país democrático, aberto à discussão sobre o seu passado e pronto a reparar as comunidades vítimas de violência e preconceito na sua história. Qualquer antiga potência colonial europeia tem reparações a fazer e tem uma história traumática com a qual precisa de lidar. Precisamos de lidar com o nosso papel no tráfico de pessoas escravizadas, na Guerra Colonial e os seus massacres brutais, na violência colonial que se estendeu até ao fim do colonialismo formal, com as narrativas coloniais e imperialistas que continuamos a perpetuar, com o racismo que ainda mata e que tem no colonialismo as suas raízes. O meu trabalho foca-se particularmente na forma como o património e a arte pública ainda espelham estas narrativas coloniais.
Escreveu “De que nos serve lembrar o Holocausto?”. Que importância tem para si a luta do povo palestiniano, o trabalho da memória do holocausto e a condenação quer do nazismo, quer do fascismo e violência de França, Portugal e outros países que refere no seu artigo no Esquerda.Net?
R: O historiador Enzo Traverso é uma das grandes referências para pensar a memória do Holocausto e recomendo vivamente a sua leitura. O Holocausto representa o assassinato de cerca de 11 milhões de pessoas: judeus, Roma e Sinti, soviéticos, polacos, pessoas com deficiência, sérvios, homossexuais, testemunhas de jeová, comunistas, opositores políticos. Este genocídio de dimensões brutais é fruto da ideologia fascista, racista e supremacista. Não foi obra de um grupo de psicopatas ou mesmo uma aberração histórica. Relembrá-lo deve ser não esquecer as elites económicas e os representantes do grande capital que o apoiaram, o avanço do racismo e do discurso de ódio e a forma como este culminou num genocídio. No fundo, relembrar que o Holocausto foi o produto de um projecto político, é o fruto da extrema-direita e da política do ódio, da xenofobia e do racismo. Esta política não acabou com a derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Dizer “nunca mais” não pode ser um slogan que repetimos para apaziguar a consciência ocidental. “Nunca mais” é sobre todos os povos que sofrem às mãos de potências assassinas, que são alvo de políticas genocidas ou que vêem a sua auto-determinação quartada. Por isso, o “nunca mais” deve servir para denunciar a política racista, islamofóbica e assassina do Estado israelita.
A sua tese de mestrado intitula-se “De Quem Se Esqueceu Lisboa? A luta pela inscrição da memória anti-colonial e anti-racista no espaço público”. O que aprendeu com o seu mestrado, no que diz respeito a este esquecimento? E em que medida este esquecimento tem prejudicado quer os povos que foram colonizados e invadidos, quer os povos colonizadores?
R: Na paisagem memorial lisboeta lemos uma história que glorifica o império colonial português, de diferentes formas e recorrendo a diferentes métodos. As estátuas, memoriais, nomes de ruas, monumentos: todos fazem parte deste palimpsesto memorial que contribui para a manutenção das narrativas imperiais, brancas e patriarcais. A manutenção destas narrativas no espaço público é um espelho de uma sociedade persistentemente racista. No decorrer da minha investigação, aprendi muito sobre formas de inscrição da memória anti-colonial e antirracista, formas de iconoclastia e de combate ao paradigma memorial vigente, sobre formas alternativas de mostrar a cidade de Lisboa. Continuo com muitas perguntas e, por isso, levo algumas destas interrogações para o doutoramento que estou a fazer.
Quais são os seus sonhos para Portugal?
Para o nosso país, desejo um futuro para lá do sistema capitalista que nos destrói e empobrece, de igualdade e direitos sociais para todas as pessoas, de sustentabilidade climática e de transição para uma economia que não destrua o planeta.
Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.
Projecto Vidas e Obras
Entrevista: Pedro Marques
Correcção: Jú Matias
26 De Março De 2024
Comments