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Entrevista a Eunice Correia


Foto: Filipe Ferreira


Fizeste as sessões fotográficas de “O (des)velar de um corpo” e a sessão com o Filipe Ferreira. O que nos podes falar sobre os teus trabalhos como modelo fotográfico?


Agora, recuando no tempo percebo que a minha ligação à fotografia e ao cinema surge ainda em criança por via de uma grande amiga e excelente fotógrafa Fernanda Carvalho. Recorrentemente desafiava-me para passeios em jardins, idas ao circo, ao cinema e muitas vezes nesses encontros fotografava-me ou programava sessões mais encenadas.


A Fernanda nas minhas visitas à sua casa tinha gosto em mostrar-me o seu trabalho fotográfico e contar das suas possíveis exposições. Sempre foi uma mulher muito viajada com a sua lente. A sua obra é sobretudo a preto e branco, muito sensível e peculiar.


Então pensando nesta influência e na Fernanda como modelo de mulher empoderada e artista vejo na fotografia uma forma de liberdade. De respirar o que nos toca por via do olhar e partilhá-lo com o mundo.

Curiosamente mais tarde foi a Fernanda que me ofereceu a primeira lente.


Hoje, como hobby exploro a fotografia – enquanto fotógrafa – e com a ascensão das redes socias acho bonito a possibilidade de partilhar esse gosto com as pessoas.


Como modelo, também penso que a influencia terá sido daí. Sempre fui muito introvertida e nem sei bem como comecei a posar para uma lente mas é possível que tenha vindo com estas memórias e também com o trabalho no cinema.


A liberdade que sinto como fotógrafa tento aplicar igualmente como modelo. A vergonha não existe, é uma concepção gerada pelo preconceito. A alma desvela-se, despe-se. A sessão “O (des)velar de um corpo” é o reflexo desta ideia.


Por isso a relação entre fotógrafo e modelo deve ser delicada, íntima e não é qualquer fotógrafo que o consegue. O Filipe Ferreira é um extraordinário exemplo por ser dotado desta capacidade.


A nossa sessão surgiu com o intuito de actualizar o meu portfólio como actriz e de repente transformou-se numa das sessões mais mágicas que tive, com muito brio e sensibilidade.


Gosto de trabalhar como modelo. Sinto que é um complemento ao trabalho de actriz: a consciência de como fixar o corpo, perceber a luz, o olhar, a expressão.


Participaste em 2018 na curta-metragem "Sophia, a poeta-marinheira" com realização de Diana Lima para as comemorações do centenário da Sophia De Mello Breyner


Como foi dares vida e voz da Sophia no seu centenário?


Foi um desafio bonito e de alguma responsabilidade. Primeiro porque trabalhar com a minha amiga Diana Lima é sempre um gosto e sendo sobre uma mulher poeta tão célebre como a Sophia...


No fundo estas celebrações são uma invocação. Celebrar gente que contribuiu para a nossa cultura e identidade, alguém como a Sophia e a sua obra é um privilégio e fazê-lo ao lado de amigos tem outro sabor. É como devia ser sempre.


A ideia de se fazer esta curta-metragem tão singela e apresentá-la com uma performance poética ao vivo, casou bem. Dizer Sophia e navegar pelo seu imaginário tem algo de etéreo, ficamos a pairar e a respirar melhor. Há um misto de beleza e crueza nas suas palavras. Tanto nos leva a um passeio pela praia, a sentir a leve brisa na face como nos põe diante de um cenário duro, frio e lúcido.


As curtas em que tens participado são sobre terror, comédia negra e sociopatia. Como actriz o que te dá gozo representar o terror e a sociopatia e como tens crescido ao trabalhar neles?


Gosto do medo, do grotesco e o cinema de terror é para mim um lugar onde me sinto bem. É um universo com o qual me identifico desde sempre. Não é algo que consiga explicar claramente mas acho que, quanto a mim, passa muito pelo prazer em pertencer a um mundo mais obscuro, sombrio. É um fascínio que não consigo bem descrever, continuo à descoberta. Mas se calhar é isso mesmo, gosto desse universo porque nele há vários estranhos mundos a descobrir e é como se de alguma forma já fizesse parte deles.


Encaro o género de terror como um espaço de bons desafios que se desvia de lugares convencionais. Por ser talvez um género que permite explorar num plano mais obscuro várias camadas do subconsciente. Como actriz é um privilégio porque para além de ser divertido é exigente e permite um rasgo maior na interpretação. Pelo menos até agora é o que tenho sentido.


A minha relação com o cinema no geral é forte. Adoro ver cinema e fazer ainda mais. E dentro dele, tenho tido um percurso curioso.


A imagem é algo que tem algum valor para o trabalho com câmara e eu pessoalmente, nos meus primeiros anos a tentar fazer cinema fui posta de parte algumas vezes porque não encaixava no padrão de beleza.

Ainda hoje não sinto que encaixe e sinceramente creio que tem sido essa a minha força. O cinema de terror tem-me permitido usar a imagem anulando os cânones de beleza e mesclá-la com a força de trabalhar a fundo um papel.

Tenho feito alguns dentro do gore (A Fêmea de Diana Lima e Pedro Martins), e terror mais psicológico – embora também ele gore - (Maria José Maria de Chico Noras) e é interessante distinguir estas personagens. Na Fêmea é uma interpretação mais física, é a metamorfose de uma mulher para um insecto. Sangue, sexo e vómito - absolutamente grotesco. Em Maria José Maria é uma outra abordagem. Apesar de ser uma comédia negra, toca-se na problemática da saúde mental e nesse trabalho sinto uma grande responsabilidade em interpretar esta mulher que sofre de uma condição psicológica complexa e numa época em que este assunto era um tabu. É um trabalho denso e sensível e cabe também à arte sensibilizar para estas problemáticas e no cinema de terror é onde muitas vezes estes perfis têm espaço. Como funciona a cabeça de um sociopata/psicopata? O que o leva a cometer atrocidades que achamos abomináveis? Surge um filme e queremos ver, entender... ainda que nos sintamos desconfortáveis e achemos horroroso. Mas a verdade é que existe e faz parte da condição humana e da qual ninguém está absolutamente livre.


Tens feito dança do ventre, teatro de rua, teatro de marionetas, tens participado em filmes, tens projectos comunitários, o que te tem motivado e o que tens aprendido desde que iniciaste o caminho pela representação, pela dança, pela arte?


O meu percurso pelas várias linguagens tem sido inspirador. Vejo esta viagem como uma âncora à arte e é por via dela que preciso de conhecer o mundo.


Sempre soube que gostaria de ter a relação com alguma área artística e ser actriz não foi a minha primeira opção.

Venho de uma família de marionetistas e por isso as marionetas fazem parte de mim desde sempre e é-me importante ver a vida ou imaginar através delas.


Comecei com a dança ainda em criança, entre o ballet e o hip hop – uma combinação curiosa. Quando chegou a altura de pensar realmente no que queria seguir, entusiasmava-me a ideia de ser realizadora de cinema e ao mesmo tempo também artista plástica. Na escola onde andava tinham encerrado o curso de artes então fui para o curso profissional de teatro e cá estou.


Ainda que tenha seguido o caminho da representação nunca deixei de explorar outras vertentes dentro da arte, sobretudo a dança. O trabalho de corpo sempre me seduziu. Como actriz tenho necessidade que o corpo fale. Com a marioneta existe uma fusão entre mente, corpo, voz e objecto e alinhar tudo isto num ser é espectacular e mágico. Desde a sua construção à manipulação: aqui já exploro também as artes plásticas. Sinto muita vontade de colocar a mão na massa, construir. Aí sim é o momento em que me alinho com o cosmos.


O teatro, teatro de rua e o cinema são o centro, onde a partir desse trabalho me expando para outras direcções e aplico as tantas ferramentas que conheço.


Com a comunidade aprendo a partilhar e a acolher. É uma relação muito humana.

Então penso que a minha principal motivação é contactar o mundo e conhecê-lo por via da arte.


Estás desde 2015 no Tentart Teatro, companhia que se tem dedicado ao teatro, animações, espectáculos de rua. Que importância tem para ti o trabalho que tens feito no Tentart?


Quando entrei para os Tentart tinha muito medo de fazer rua. Já o tinha feito, noutro contexto e com outros grupos mas não em feiras medievais. Era um trabalho que me assustava um bocadinho sobretudo pela sua exigência a nível de improviso de perspicácia a responder a situações diversas, com os colegas e o público que se fixa tão perto.


Embora tenha sido difícil o início, com o passar dos anos lá me fui habituando e aprimorando neste tipo de trabalho.

Aprendi a desenvolver o tempo de reacção mais espontâneo e a controlá-lo também, a contracena com os meus colegas e o improviso com eles e o público. Aprendi sobretudo a escutar e a observar mais enquanto actuo. A rua é um incrível grande mundo.


Os Tentart são sem dúvida a minha escola de rua e mais importante que isso é também onde se faz um trabalho de comunidade valiosíssimo.


As pessoas que nos chegam e que se voluntariam a partilhar connosco a sua essência, sentem também que têm aqui um espaço onde se encaixam. Onde podem explorar os seus medos e fazer deles a sua força.

Falo isto pela minha experiência de 9 anos com este grupo. É inevitável, a ralé atrai os seres que se consideram estranhos para se fazerem ver fantásticos. É um processo de metamorfose. Então mais que um trabalho, os Tentart desenvolvem uma missão.


No Cia Mefisteatro fazes espectáculos e oficinas de marionetas onde abraçam o imaginário mágico, onórico, crítico e cru. Para ti o que representa o trabalho que têm desenvolvido?


Muito. Aliás, é a minha casa. É aqui que tanto eu como o André Consciência exploramos o que nos dá na gana: Criamos, desenvolvemos o nosso mundo, a nossa visão e partilhamos com os curiosos.

Gostamos de ir ao encontro da estranheza visual, filosófica e anímica. Depositar no espectador uma proximidade com esta frequência é desenvolver também pensamento critico e fora de julgamento. No fantástico há sonho e é lá que se expande a imaginação.


Por isso quando fazemos oficinas, normalmente de marionetas, vamos buscar materiais que aparentemente têm um propósito limitado e exploramos a sua criatividade e a vida que pode gerar. Tudo muito bem preparado previamente, estamos sempre a experimentar coisas novas e que nos entusiasmam.


Gostamos de colocar as pessoas perante este cenário: estranho e fora de convenções.


A peça que representaste “A Casa de Emília” com encenação de José Maria Dias, é sobre histórias de mulheres que quase nasceram nas fábricas e que trabalham duro para tentar combater a pobreza e poderem matar a fome. Como foi poderes trabalhar a fome, a miséria, e a luta destas mulheres?


Ser conserveira era duro: horas fechadas em fábricas, mãos enrugadas, pés descalços num chão húmido, muitas não tinham onde deixar os filhos levando-os para as fábricas, ganhava-se mal, comia-se pouco e trabalhava-se muito. Aturava-se mal os patrões e algumas vezes os seus abusos.


A história assentava numa família cuja matriarca teria sido conserveira. Uma casa sufocante onde a família se deteriorava aos poucos. A minha personagem era a Amélia, uma jovem de desejos ocultos e que nutria um grande cuidado e amor pela sua avó.


Mais do que a abordagem à vida destas mulheres, é sobre a memória. Um apelo para que não se apague cuja representação assentava num comprimido tomado pela Emília devido à sua condição de saúde mas que é na verdade uma metáfora a ter bem presente em nós.


Um texto e uma encenação dotadas de grande sensibilidade e responsabilidade e com uma mensagem muito directa. Foi um privilégio.


Curiosidade: respondo a esta questão numa casa cujo nome é Casa Emília em Silves.


Estiveste no projecto “Sardoal Mostra-se” destinado à educação pela arte que foi desenvolvido pelos alunos do 1º Ciclo com o intuito de combater o insucesso escolar através de marionetas. Que importância teve para ti este projecto educativo, artístico, contra o insucesso escolar?


Estive e estou. Temos vindo a desenvolver este projecto no Sardoal por 5 anos e tem sido uma aprendizagem incrível. Sempre defendi a educação pela arte e com este trabalho constatei que é possível um sistema de ensino que faz muita diferença.


O objectivo não é os alunos se tornarem artistas mas sim, por via da criatividade, da brincadeira adquirir conhecimento e desenvolver competências do ponto de vista humano, de relação com o outro. De integrar o mundo com uma noção mais sensível, aberta e sem preconceito. O contacto directo com a arte tem este propósito também daí estes projectos, nestas idades, serem fundamentais.


Temos um sistema de ensino datado e que actualmente só é possível contorná-lo com professores que têm vontade de fazer diferente e tirando partido da criatividade dos alunos. Nós não somos professores, somos orientadores, levamos ideias mas é quase sempre a partir de alguma temática que já estejam a desenvolver na escola ou com o professor. Ajudamos a dar corpo e a estimular as competências dos alunos e o resultado tem sido muito positivo.

Quanto a mim, sei que este tipo de trabalho é um caminho e espero que um dia, não sejam só projectos mas que sirvam para reformular o ensino para algo mais acessível e que seja efectivamente a educação a servir os alunos.


Na Associação de Artes "Abismo Humano" têm-se dedicado a aproveitar a tendência artística dos jovens juntando a arte e os valores locais. Que significado tem para ti trabalhar nesta associação e que impacto tem o vosso trabalho nos jovens?


A Associação de Artes Abismo Humano foi a primeira associação com que trabalhei directamente. Desta nasceu depois a Snowblack Associação da qual sou presidente. Hoje trabalham em conjunto e desenvolvem a mesma missão: Fazer a arte chegar a todos. Nesta altura, já não são só os jovens que alcançamos. Trabalhamos com e para todo o tipo de público e o mesmo se aplica aos artistas. Uma associação cultural deve estar ao serviço da comunidade e proporcionar fácil acesso à arte. Era bonito que todos os municípios e os governantes entendessem isto. O mundo seria bem mais suportável.


Dirigir uma associação nestes moldes é para mim um incentivo muito grande e fundamental para não desistir facilmente da luta que é a gestão e articulação de actividades artísticas em Portugal.


Quais são os teus sonhos para Portugal?


Usando a letra de Sérgio Godinho digo que tenhamos acesso livre aos pilares que nos podem salvar da insanidade: paz, pão, habitação, saúde, educação – e cultura!


Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.


Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: João Aristides Duarte

30 De Agosto De 2023

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