Entrevista a Isac Graça - Actor
Participou no filme “Soldado Milhões”, sobre o Aníbal Milhais e as tropas portuguesas na 1o
Guerra Mundial. Que importância teve para si o papel que desempenhou num filme com esta
temática?
Eu conheci o Gonçalo Galvão Teles - um dos realizadores - durante a rodagem do "Katabatik
Fisherman" do Dean Radovanovic (uma curta de faculdade que depois teve um percurso
internacional entusiasmante) numa noite de muito vento e frio à beira mar na Ericeira, que são
características climatéricas que, ainda que hostis, me deixam desperto. Estranhamente, a
rodagem do "Soldado Milhões" foi o contrário disto, um calor abrasador na margem Sul, dentro
de trincheiras cheias de pó, portanto a minha experiência foi muito à base de sobreviver à
moleza do calor, tentar ser o menos over possível (tendo em conta que é um filme de guerra, a
tendência pode ser essa) e conseguir fazer sentido das cenas do meu Sabugal, que na verdade,
segundo me disse o Jorge Paixão da Costa ainda na primeira leitura, era uma personagem feita
de retalhos de várias outras, isso foi difícil. E tentar não me repetir, porque era o meu segundo
soldado no espaço de pouco tempo, isso foi outro desafio importante. Claro que gosto muito
da ideia de reconstrução histórica através da ficção, possibilita o aumentar da arquitectura
do senso comum e da própria História. Também fiquei a conhecer um bom par de pessoas
de que fiquei a gostar muito: os realizadores que já mencionei, com quem tenho uma relação
cordial muito saudável; o João Arrais, que protagoniza, e é um colega que respeito imenso; o
Raimundo Cosme, cujo trabalho já conhecia graças à companhia dele, a Plataforma 285 (que
é das minhas favoritas); os soldados actores que estavam em modo figuração mas com uma
dedicação impressionante, e que é um lote de jovens interessante; o Ivo Canelas que é um dos
monumentos do Cinema português, e um tipo muito divertido com quem fiquei com vontade
de me cruzar mais vezes (infelizmente não nos cruzámos no "Sul"). Enfim, as relações também
são pontos importantes num projecto, ainda mais eu estava num período bastante cauteloso e
introspectivo, e o facto de, mesmo nesse tipo de momentos, serem lançadas boas sementes
relacionais deixa-me contente. Também foi bom no sentido em que depois o filme foi muito
amado por muita gente fora da área, que é algo que nunca me tinha acontecido, tenho feito
trabalhos menos abrangentes do ponto de vista comercial - confesso que me agrada a ideia
de nicho. E sei lá, numa rodagem posterior tive uma assistente a dizer-me que tinha decidido ir
estudar Cinema depois de ver este filme. Há uns meses um adolescente do Porto mandou-me
uma mensagem a dizer que queria ser actor porque já viu o "Soldado Milhões" muitas vezes no
canal Hollywood e gostava de como eu fazia a minha personagem. Esse tipo de coisas renova
o meu sentido de propósito, esta ideia que me guiou muito quando comecei mas depois uma
pessoa vai esquecendo, que é pensar não só na obra, mas na possibilidade de tocar em alguém
ao ponto de lhe desviar a rota, isso também importa.
Participou nos filmes “Cartas da Guerra”, sobre o Fascismo e a Guerra Colonial, e “Aparição”,
uma adaptação da obra Vergílio Ferreira, centrada na vida dum professor jovem e idealista e
três irmãs que vivem num ambiente repressivo e conservador.
Que significado tiveram para si essas participações nestes filmes?
O "Aparição" foi mesmo breve para mim e resumiu-se a ler a obra e tentar criar o Manel Pateta
da forma mais fiel ao livro durante os dois/três dias em que rodei em Évora, com a equipa
(óptima). Já o "Cartas da Guerra" foi daqueles projectos de vida. Interessou-me logo muito
por ser uma proposta de dedo na ferida, pegar nesse tabu da História recente portuguesa
e, a partir das palavras do Lobo Antunes, mostrá-la sem medo, mas com o tacto das obras
poéticas. Foi um esforço enorme d'O Som e a Fúria fazer este filme, metade dele rodado naschamadas "terras de fim do mundo" em Angola - que foi onde a minha grupa filmou - e acho
duma coragem imensa, seja do Luís Urbano e do Joaquim Carvalho, em produzir, seja o Ivo M.
Ferreira ter realizado como realizou. Posso falar daquele céu inacreditável, do gosto de acordar
cedo para ver o nascer do Sol; ou de ler Nietzsche à beira da piscina e de discutir Shakespeare
com o Simão Cayatte (ia fazer o Horácio do "Hamlet" do Teatro da Cornucópia a seguir); posso
falar da canção que o Gonçalo Carvalho instrumentou e que o Ricardo Leal gravou sobre o
Kambumbe Lodge - o nosso hotel - e a falta de café de vez em quando ("era um café, se faz
favor", "não tem.") que nos fazia rir; posso falar das caminhadas com o Raul Rosário; posso falar
de apanhar 20 sapos com o Francisco Hestnes, mas só um aparecer no filme; posso falar de ter
descoberto a poesia duma maneira mais próxima por fazer este Hilário, o cabo poeta; posso
falar de conhecer o Miguel Nunes e de voltar a trabalhar com o João Pedro Mamede; posso
falar dos conselhos do tio Blue; posso falar dos dotes de dança da Lucha D'Orey; posso falar da
atenção e interesse com que o João Ribeiro trabalha; ou do olho atento do André Godinho; ou
das gargalhadas do Lameiras quando eu me vestia de dona Rosa e ia passear vacas; ou da bela
cidade de Menongue - pelo menos eu adorei-a; ou do cameo do João Pinhão e dos berros do
Rui Sá Macedo (karma dos assistentes de realização). Mas para o fazer, tenho de falar também
de quase metade da equipa adoecer com malária ou tifóide; do Ivo a ser atacado por uma cobra
que lhe subiu pelas botas; do Nucho, o nosso perchista maravilhoso que faleceu tão novo; das
aranhas gigantes dentro do meu quarto; do calor abrasador do início da tarde, que fazia com
que vapor me saísse dos braços ao chegar ao hotel na carrinha onde ia a ouvir Arcade Fire e
Janelle Monae; do gelo de filmar às 3 da manhã; da tempestade em que a equipa se juntou a
segurar uma tenda enorme, que acabou por desabar, e de irmos a correr salvar o material todo
da chuva; dos bairros de lata de Luanda ladeados por prédios de luxo. Porque se não o fizer,
estou a glamourizar uma experiência que é mais complexa do fantástica. Claro que a ponta
do iceberg a que a maioria das pessoas teve acesso foi, além do filme per se, a estreia bem
sucedida num festival de Berlim presidido pela Meryl Streep, os inúmeros prémios que o filme
recebeu, o facto de ter sido o representante português para os Óscares. Mas isso é mesmo só
a ponta visível. O resto foi muito trabalho da parte de toda a gente envolvida e muita comunhão.
Cinema não é coisa fácil.
Também da época fascista, representou na série 3 Mulheres o editor e declamador Fernando
Ribeiro de Mello. O que sentiu ao dar vida a esta personagem e dar a conhecer um pouco mais
sobre a história de um dos editores que fizeram o livro “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica
e Satírica”, obra que serviu de mote narrativo à série “Três Mulheres”?
O Fernando Ribeiro de Mello é absolutamente fascinante e sinto que o Fernando Vendrell, ao
dar-lhe espaço no "Três Mulheres", lhe fez alguma justiça. O Mello foi o verdadeiro provocador
português, inteligente e interessado, mas acima de tudo, ao contrário da tendência nacional,
inconformado. Um símbolo de resistência ao poder. O livro sobre ele que o Pedro Piedade
Marques me ofereceu foi essencial para poder criá-lo, e aqui também me pautei por uma busca
de uma certa fidelidade possível (e, de acordo com algumas pessoas que o conheceram e me
parabenizaram pelas semelhanças, parece-me que foi a melhor escolha que podia ter feito). A
direcção de actores da Lucinda Loureiro e o coach que a minha amiga actriz Ana Vilaça me deu
no que diz respeito ao sotaque também são totalmente inseparáveis do meu trabalho na série,
e tento, sempre que possa, creditá-las. Estou muito ansioso pela segunda temporada -que vai
haver - e voltar a trabalhar com esse meu amor que é a Soraia Chaves. Confesso, nunca estive
tão curioso por ler um guião, porque quero saber quais as decisões do arco destas Natálias
Correias e Snus Abecassis (e até da criada que a Inês Sá Frias criou). Acima de tudo porque
criámos uma famíliazita de fãs da série - quase todos os dias tenho alguém a perguntar-me
sobre a segunda temporada - e isso também torna o projecto especial, porque cumpre este inscrever nomes de enorme importância na história da libertação do país das garras fascistas
na memória colectiva. Esquecer é fácil. Não se pode esquecer.
O que aprendeu com estas personagens e com estes filmes e séries?
Difícil esta pergunta. Aprendo outras maneiras de estar e de ver o mundo e de reagir a
situações, mas não sei, creio que isso é a base do trabalho de actor. Talvez esteja enganado
e haja outras motivações - aquelas coisas do capital e da fama e do bem parecer. Não é o
mundo em que acredito, porém, e a crença cumpre um papel central no trabalho do actor. A
mim interessa-me precisamente esta possibilidade de alargar o meu espectro de entendimento
do mundo, do outro, e claro, de mim próprio. Ajuda-me a incendiar as palas que pus, ou me
puseram, não sei, à volta dos olhos. Isso é bom. E é uma escada sem fim, a da interpretação
de personagens. Há quem diga que são variações sobre o "eu mesmo". Eu concordo, mas isso
não impede a composição, o detalhe, o detachment, a diferenciação. Mas em última instância,
sim, é sobre o actor, que ao interpretar a personagem se põe em causa. No Teatro, em toda
a potência. No Cinema, são os resquícios, o que resta da personagem na memória do actor.
Como diz o Jorge Silva Melo, no Teatro estão os possessos, no Cinema os espectros.
Representou na série policial “Sul” e construiu uma personagem marginal no filme “Verão
Danado”. Em “78.4 FM”, de Tiago Amorim, representa um locutor anos 80 que tem há três
anos com um amigo uma rádio pirata e que aborda a incerteza do futuro da rádio por o
amigo partir para um estágio numa rádio oficial. Representou também na curta “O Homem
de Trás-os-Montes”, inspirado no guia de Portugal, que aborda um realizador que quer fazer
um documentário num local que seja genuíno, belo, encantador.
O que nos pode falar sobre o trabalho e experiência de criação sobre esta viagem pela rádio pirata, pelo guia de Portugal, pela
rebeldia, pela busca de sonhos?
Há algo que liga estes projectos todos: tenho-lhes um profundo amor, ainda que me tenham
custado, na verdade, poucos dias de trabalho - como aqueles romances de uma semana de
fim de Verão, curtos mas memoráveis. Vou tentar ir por ordem cronológica. O "Verão Danado"
deixou-me profundamente orgulhoso, no sentido em que acho que o Pedro Cabeleira criou
uma obra maior do Cinema Português, ainda que seja um filme mais amado no estrangeiro do
que em Portugal, o que me parece lógico, já nem me surpreende ou incomoda. É um retrato
duma geração inteira que vivencia o mundo de uma forma diferente da dos seus pais e avós,
no comportamento, na linguagem, nos hábitos. O Pedro Marujo, o protagonista, tornou-se num
dos meus melhores amigos. Aliás, a ideia de amizade polvilha o filme. O meu Thierry e a Tânia
da Ana Amaral nascem duma amizade real entre os actores e são construídos em relação.
Como as personagens do Robalo e do Luis Magalhães. O filme tem actores excelentes, além
dos já mencionados, a Cleo Tavares, a Maria Leite e a Ana Valentim, que acho que são actrizes
portugueses do mais gigante possível. E o Sérgio Coragem, a Nádia Yracema, a Lia Carvalho, o
Rodrigo Perdigão, etc, etc, etc. E aquela lente da Leonor Teles. É mesmo muita gente, e é isso
que o filme é, um filme de gente, gente pré-idade adulta, de jovens que bebem do ambiente da
Escola Superior de Teatro Cinema no inicio da década dos 2010's, da formação experimental
genial de professores como o Luca Aprea, o Álvaro Correia, a Maria Sequeira Mendes, o Jean
Paul Bucchieri e o Howard Sonenclar. "O Homem de Trás-os-Montes" é um daqueles trabalhos
que surge, para mim, na sequência do "Cartas", e foram duas semanas de sonho completo
em Trás-os-Montes. O Miguel Moraes Cabral é, além dum amigo, um profissional com uma
inteligência e paciência inesgotáveis, e creio que um dos valores maiores do novo Cinema
Português - só o tempo o dirá, mas confio na minha intuição. Um filme é um híbrido entre ficção e documentário, e isso deu-nos, na verdade, pouca liberdade de movimento na criação daquela
ficção do que pode ser uma equipa de filmagens, ou seja, como o tom é hiper-realista, tudo
tinha de ser feito em detalhe certeiro. A Nádia Henriques na direcção de arte, a Olga José na
maquilhagem, e o Bruno Cabral, o Carlos Isaac, a Hemi Fortes foram todos executantes das
suas funções duma maneira plena, e todos como uma energia solar memorável. Foi muito
bom também trabalhar com o Sérgio Coragem e com a Beatriz Brás - que eram do meu ano da
ESTC - e voltar a trabalhar com o Miguel Nunes, e saiu um filme bem xu (que estreou no mesmo
festival de Locarno que o "Verão Danado"). O "78.4" foi uma curta académica mas de contornos
ultra-profissionais, que acabou por justificar o seu óptimo percurso em festivais nacionais e
respectivos prémios e menções honrosas. É uma história simples sobre uma amizade de dois
radialistas amadores que desaba. E o filme é só isto. Mas o Tiago Amorim dirigiu-nos duma
forma tão acertada, por respeitar os nossos ímpetos para as cenas, aliás, por incentivá-los,
que resultou numa curta-metragem muito amada. E foi bom trabalhar com Ruben Pêro, ele
nunca quer admitir isto, mas é uma contracena excelente. Já o meu Joca e o Kiko do João
Pedro Mamede é um par de personagens que fez uma perninha no "Sul" do Ivo M. Ferreira, e
é mesmo um par de aparições breves, que gostava muito que tivessem continuidade, porque
o Joca é a única personagem que fiz na vida que saltou para a realidade, ou seja, ele às vezes
apodera-se de mim, os meus amigos todos já privaram com o Joca, e logo eu que sempre gozei
com este tipo de coisas. No início, eu fazia uma procura de, bom, matar a personagem no fim
do projecto. O Joca não consigo, o Joca é bom de mais. É que ele tem uma educação péssima,
mas tem a humildade de quem quer aprender, ao mesmo tempo é despropositado e eficiente,
e quando não é, sente-se posto em causa. Ou seja, " he does not know much, but he cares". É
chunga, é mitra. Mas não é só a ideia, é humano. Descobri a maioria destas coisas depois do
projecto, porque durante não há tanto espaço quanto isso, o "Sul" era sobre o enredo policial.
Mas acho estas coisas do Joca uma delícia, um miminho que o Ivo me deu. E, sei lá, nenhuma
destas personagens é igual a outra, mas isso não vem do meu trabalho, vem dos textos, vem da
direcção. E vem do contexto.
Em teatro, esteve na Cornucópia e nos Artistas Unidos, em várias companhias amadoras e
no grupo de teatro o Pancadinhas. Tem também trabalhado como actor/criador, locutor (em
podcast), técnico de luz/som, assistente de encenação, figuração, “empregado de mês”. O que
o tem motivado para todas estas actividades e o que o tem feito crescer como artista e como
pessoa?
Foi o Teatro amador primeiro e aí nasceu o gosto, raw e guardo boas memórias de naiveté e
exagero e disparate. Mas sempre amor. Empregado... nunca fui empregado do mês, mas fui
bartender e empregado de mesa durante quatro Verões, em Esposende, num bar óptimo que é
o Pé no Rio, onde deixei bons amigos. Não é é vida pra mim, é uma pressão que me desagrada,
ao contrário da pressão de ser intérprete. Tive doze edições dum podcast, metade deles com
a Catarina Rolo Salgueiro a apresentar comigo, chamava-se Dizgraça, e era sobre actores
jovens, e foi antes da febre dos podcasts em Portugal, que confesso que é um formato que
não me interessa sobremaneira, mas que aprendi a fazer nos tempos da Escola Superior de
Comunicação Social. Interessa-me voltar ao formato entrevista, mas noutros moldes, sou muito
visual, eu já nem chamadas quase faço, só videochamadas, porque preciso de ver as pessoas.
Ouvir ouvir, só música. Fui técnico de luz e som num espectáculo chamado "Flight Recorder -
do not open", e tenho algumas skills nesse sentido, mas há gente muitíssimo mais capacitada
para esse trabalho. Figuração foi nos estágios em espectáculos do Jorge Silva Melo no Teatro
Nacional e aprendi muito neles - como esquecer o rasgo na cena do tribunal do Miguel Borges
n'"A Morte de Danton" ou a Maria João Pinho (toda) n"O Campeão do Mundo Ocidental". A partir
daí, o Ricardo Neves-Neves convidou-me para ser assistente de encenação d'"O Solene Resgate",um mini-espectáculo feito no início da década passada, com um elenco enorme, e confesso
que ainda me lembro de muitas passagens do texto. Porém, estas coisas todas são apenas
cenas de transição na minha narrativa. O centro é mesmo a interpretação. O "Punk Rock" do
Pedro Carraca nos Artistas Unidos foi um trampolim para tudo o resto que fiz a seguir, seja no
Cinema e na Televisão, seja no Teatro (em particular, os três espectáculos na Cornucópia, que
foram, na verdade, o maior complemento que podia desejar à minha formação; mas também
foi no Punk Rock que o Carlos Avilez me conheceu, e mais uma porrada de gente com quem
já ou ainda não trabalhei). O que me motiva é o gosto pelo artesanato da cena. Sem tirar nem
pôr. As relações claro, mas já se sabe, umas duradouras, outras breves. Umas fidelidades aqui,
umas traições acolá, umas divergências aqui, uns reencontros acolá, uns beijos aqui, uns estalos
acolá. O Luis Miguel Cintra aqui, o Luis Miguel Cintra acolá. A Rita Cabaço aqui, a Rita Cabaço
acolá. O Guilherme Gomes aqui, o Guilherme Gomes acolá. O João Nunes Monteiro aqui, o João
Nunes Monteiro acolá. A Luisa Cruz aqui, a Luisa Cruz acolá. A Mónica Calle aqui. A Vera Santana
e a Anabela Ribeiro aqui. O Bruno Xavier , a Érica Rodrigues, o Guilherme Barroso e o Miguel
Leão aqui. O Mauro Herminio aqui. Os poemas do Mica aqui. Uns mais aqui, uns mais acolá.
Uns sempre acolá. E de repente sou um padre na Irlanda que se suicida para o Luis Moreira.
E como recomeçar depois de morrer? E de repente sou as personagens todas do Barão do
Branquinho da Fonseca, e a Inês Garrido também e o Telmo Mendes também e a Rita Marques
também e já não sabemos onde começa um e onde acaba outro. Nós também somos com
quem nos cruzamos e recruzamos e recruzamos. E de repente há actores mais novos que eu.
E que pedem conselhos, ou dou-os sem mos pedirem, enquanto ao mesmo tempo penso "sim,
estou a dizer-te a ti, mas a relembrar-me a mim". A vida como ela é. Sobre crescer, não sei. É
aquela frase do Lavoisier, não é. É mais sobre constante transformação. Não se ganha, não se
perde, muda-se. Há coisas novas, há coisas que ficam para trás, há as que regressam, há as
que morrem, há tendências. Há buscas intermináveis. Depois há aquilo que há sempre: alegria e
desespero, calma e impulso, construção e destruição, motivação e frustração, amor, ódio, voz,
silêncio. Muito pensamento. Solidão. É mais complicado do que dizer só que "tenho crescido
muito e aprendi muito e muito obrigado ou desobrigado". É a vida. Acontecem muitas coisas.
Mas o que passou passou, o que virá, virá. Che sera, sera.
Vivemos num tempo de enormes dificuldades e desafios para quem trabalha na cultura.
Como agente cultural, o que nos pode dizer e aconselhar sobre como ultrapassar estas dificuldades e sobre como mudar este paradigma de desigualdade e esquecimento?
É só casar conceitos. Para arte, é preciso criar valor (que é um conceito vasto, questionável nas
suas várias definições, mas necessário). Para valorizar é preciso investimento económico. Para
investimento económico no que tem valor, é preciso reconhecimento público e estatal da sua
importância. Para isso, é preciso reeducação. Não há país sem arte. Não há arte sem valor. Não
há valor sem investimento económico. Não há investimento económico sem reconhecimento.
Não há reconhecimento sem reeducação. E não há reeducação sem cérebro. E eu quero um
país.
Não há quem não queira.
Quais são os seus sonhos para Portugal?
Menos medo, mais ética e mais vida.
Menos culpa, mais erótica e mais arte.
Menos inveja, mais amor e mais liberdade.
Menos acefalia, mais noção e mais sinapses.
Menos privilégio, mais igualdade e mais acesso.
No fundo, tudo aquilo que desejo para mim também.
Luz, escuridão, escalas de cinzento, montes, vales, prados. Vida.
Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.
Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Fátima Simões
03 de Julho de 2020
03 de Julho de 2020