top of page

Entrevista a Jorge Vaz Gomes – Actor, Realizador e Fotógrafo



Representou o poeta Ary dos Santos na série Três Mulheres da RTP. Q.: Como foi para si dar vida a esta personagem e dar a conhecer um pouco mais sobre a história de artistas que fizeram o livro “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, obra que serviu de mote narrativo a série “Três Mulheres”?

Foi sobretudo interessante para mim conhecer melhor aquele período e de certa forma poder experienciá-lo através das cenas que gravámos. O ambiente da filmagem, os figurinos, os cenários, tudo ajudou a que fossemos transportados no tempo para aquela época. E a tenacidade dos actores que me rodearam também ajudou muito. Ter a Soraia Chaves a fazer uma destemida Natália, ou o Pedro Inês a fazer um mordaz Luiz Pacheco, ou ter o Elmano Sancho a fazer um viperino Cesariny, tudo ajudou a que eu sentisse aquela época, aquele ambiente, com uma densidade fora do normal. O primeiro fim-de-semana de gravações foi no Tribunal, onde filmámos as cenas do famoso processo contra os autores da Antologia, o que nos permitiu estar todos juntos e criar logo uma ligação. E houve de facto momentos em que se esquecêssemos as câmaras, estávamos de facto de volta ao terrível peso da ditadura do pensamento que colocou poetas no banco dos réus.

Participou no filme “Amadeo” do Vicente Alves Do Ó e “Parque Mayer”, e na série “Madre Paula”. Q.: Que significado tem para si representar estes filmes sobre a história cultural do Parque Mayer, do artista Amadeo de Souza-Cardoso e da história Portuguesa?

Tal como na série 3 Mulheres, foram experiências única de viagem no tempo. A ficção de época tem esta vantagem de nos colocar no centro de um museu vivo, construído pelo talento das equipas que dão vida aos cenários das filmagens. Por exemplo no caso do Parque Mayer, o exterior do Parque foi todo reconstruído nuns estúdios ao ar livre. Quando cheguei no primeiro dia não queria acreditar na dimensão daquele cenário, vi cenários nos famosos estúdios da Globo no Rio de Janeiro que não ficam nada aquém daquele do Parque Mayer. Tivémos também a oportunidade de ensaiar os números de revista durante vários dias antes das filmagens, o que nos permitiu um contacto com o realizador e os outros actores num ambiente e num ritmo muito mais calmo do que é aquele das rodagens. Foi importante para perceber o significado cultural e histórico do teatro de revista, inclusive de um ponto de vista de resistência ao Estado novo. O Amadeo também foi particularmente interessante porque filmámos uma cena de uma festa em Paris no início do século, onde foi interessante revisitar o ambiente cultural e boémio que aquela cidade vivia com artistas de toda a Europa, o Amadeo, o Picasso, o Modigliani, e muitos outros. O Vicente Alves do Ó tem um processo também muito generoso para com os actores uma vez que ele faz ensaios e encontros para os actores se conhecerem bem e criarem empatia antes das filmagens, e isso ajudou bastante para as cenas da festa em Paris, que tiveram uma mistura bastante criativa e enérgica de guião e improviso. Através dos seus filmes promove livros, tais como o filme Girafas sobre o livro “Quando As Girafas Baixam O Pescoço” de Sandro William Junqueira; “Cecilia Fluss” de João Tordo; e “Quarteirão” sobre uma colecção de livros de Gonçalo M. Tavares. Q.: O que o tem motivado a promover estes livros, estas histórias?

Sempre gostei da ideia do bookteaser, esta mistura improvável entre vídeo e livros, e desde que fazia pequenos vídeos para o Canal Q, alguns inspirados em livros do Gonçalo M. Tavares, da Dulce Maria Cardoso, entre outros, fiquei com vontade de repetir a experiência. No caso do Afonso Cruz e do João Tordo foram feitos a convite da editora Companhia das Letras, e deram-me bastante prazer a fazer porque conheço bem os autores o que me permitiu ajustar o tom e o ambiente de cada vídeo ao universo deles. No caso do Afonso fazia sentido algo mais noir, misterioso, entre a animação e preto e branco, e no caso do João Tordo sabia que uma linguagem mais policial, cinematográfica, ia mais no sentido do universo dele. No caso do Sandro William Junqueira foram propostas minhas, porque é um dos meus escritores preferidos, e gosto de dialogar com a obra dele, para além de “Quando As Girafas Baixam o Pescoço” também já tinha feito um bookteaser do livro “A Grande Viagem do Pequeno Mi”. Finalmente o “Quarteirão” foi uma adaptação de algumas histórias de “O Bairro” do Gonçalo M. Tavares que tinha como antecessor precisamente um pequeno vídeo que fiz para o Canal Q sobre o “Senhor Walser”. Queria utilizar aquele registo de cinema mudo, ou neste caso cinema sem falas, uma vez que existe som, e expandi-lo para uma curta-metragem de 25 minutos. Interessava-me bastante esta possibilidade de transpor diálogo interior das personagens para gestos, movimentos, acções. Ainda assim acho que o resultado ficou aquém do que eu esperava, e partir daí só tenho feito filmes com imensa voz-off, muito ensaísticos. Mas gostava de voltar um dia a este registo, mais silencioso, só tenho que encontrar o projecto certo.

Está a participar no programa “O Mundo Não Acaba Assim”, uma série que retrata a actual situação vivida devido à pandemia do Covid-19, com muito humor. Q.: Na sua opinião, que importância tem para si poder participar num programa que pegou na arte e no humor simultaneamente, e nas questões do dia-a-dia dos medos e comportamentos em resultado da pandemia?

Conheço muito bem os argumentistas da série, e já tinha trabalhado com alguns, é tudo malta que de uma forma ou outra passou ou formou-se nas Produções Fictícias onde eu trabalhei muitos anos, o Tiago Santos, o Luís Filipe Borges, o Nuno Duarte e o Filipe Homem Fonseca. O meu texto era do Filipe, que é uma das pessoas mais acessíveis de se trabalhar, o que facilitou bastante as condições particulares de filmagem via smartphones, uma vez que cada um estava sozinho na sua sala de estar, mas acabou por ser um processo engraçado que permitiu desanuviar um pouco do isolamento. Acho que o programa teve esse mérito e agilidade de pegar muito rapidamente numa situação actual e transformá-la em algo construtivo, tanto em termos de humor como em termos de uma certa humanidade. Muitas conversas espelhavam alguns dos nosso receios e inseguranças face a esta situação, e isso também foi importante. Percebermos que estamos isolados mas todos juntos nisto.

Adicionalmente, tem outros trabalhos humorísticos, tais como o filme Por Ela de sua realização e argumento de Nuno Markl, e esteve algum tempo no Canal Q a trabalhar em comédia. Q.: Que importância têm estes trabalhos e o trabalho sobre o humor em geral?

O Por Ela está agora numa nova fase, refizémos o guião, o Markl e eu, e estamos em conversações com uma produtora que está interessada em arranjar financiamento para o filme, e acreditamos que ela conseguirá, por isso talvez no próximo ano haja boas notícias nessa frente. Um dos primeiros programas de comédia que fiz enquanto actor/realizador foi precisamente com o Nuno Markl no Canal Q, o ShowMarkl. Eu fazia assistência de realização em estúdio e o Markl achou que eu podia fazer um papel na série, foi um momento importante de transição. Eu já tinha feito uma pequena rubrica chamada “Crítica de Badanas” com o Nuno Artur Silva e o Nuno Costa Santos, mas o ShowMarkl foi uma transição mais a sério para fazer trabalhos em frente à câmara. Assim continuámos durante uns anos e mais alguns projectos com o Markl, o “Uma Macacada Qualquer” e a “Rádio Calipso”. Foi uma experiência importante para mim, não tínhamos muitos recursos, e desdobrávamos em tarefas diferentes, aprendi imenso sobre comédia, montagem, improviso, câmara. E divertíamo-nos bastante, claro! A Rádio Calipso tinha momentos épicos em que a personagem do Francisco Martiniano Palma destruía o cenário todo, e a série teve uma legião de seguidores interessante, por exemplo num dos episódios tivémos a redacção inteira do Jornal Record a assistir. Foram trabalhos com um certo espírito underground apesar de terem passado num canal de cabo disponível em todas as operadoras, e isso preencheu um certo espaço de nicho, pessoas que procuravam formas de humor pouco convencionais. O Canal Q tinha e ainda tem vários programas que preenchem esse espaço. Nunca me debrucei muito sobre a importância do humor, mas sei que apesar de ser descriminado em relação ao drama, tem muito importância não só como entretenimento mas também como forma de criticar e ver o mundo. A ironia e a sátira trazem-nos perspectivas sobre o mundo que mais nada nos traz. Por exemplo a forma de humor filosófico-pessimista do Woody Allen traz uma perspectiva sobre o mundo que é única.

Para o projecto “Docs Ao Lanche” que tem com João Pacheco, realizaram a curta “A Torrefação”. Nos seus filmes: “Mapa-Esquisito”, “Soldado Nobre”, tem abordado a sua relação familiar com a sua mãe, as memórias, a procura da história do seu bisavô. Q.: Como é para si a experiência de partilha destas histórias, memórias e vários ofícios através da sua lente?

O documentário, e em particular o filme-ensaio, têm tido cada vez mais espaço na minha vida, seja como criador ou como espectador. Traz-me uma densidade do real que sinto que não existe nem nas notícias, nos livros ou na ficção de televisão ou de cinema. Mas ao mesmo tempo também sinto que o documentário é cada vez menos um espaço objectivo de captura da realidade. É uma captura mediada pelo olho do criador e do espectador, e embora isso não sirva de desculpa para criar propositadamente uma distorção ou manipulação da realidade (que pode ser feita, na minha opinião, em obras que estejam assinadas como sendo de ficção), permite ao criador ter uma plasticidade e deixar que a particularidade do seu olhar se manifeste. Daí o meu interesse pelo filme-ensaio, que é o caso do “mapa-esquisito” e do “Soldado Nobre, pela ideia da voz que discorre sobre os temas, pessoal, poética, com um interesse, uma tomada de posição sobre o assunto. Os temas da memória, ruralidade, emigração e da minha família interessam-me particularmente, há vários filmes que quero fazer sobre este tema, e depois eventualmente parto para outras paragens.

Vivemos num tempo de enormes dificuldades e desafios para quem trabalha na cultura. Q.: Como agente cultural, o que nos pode dizer e aconselhar sobre como ultrapassar estas dificuldades, e sobre como mudar este paradigma de desigualdade e esquecimento?

A condição do agente cultural é precária por natureza, dada a flexibilidade que é requerida da sua actuação pelos promotores. Ora preciso de ti, ora não preciso. Esta crise agudiza essa precariedade a níveis nunca vistos e acredito que haja muitas famílias nesta área a passar muitas dificuldades. Acho que as respostas para isto não são claras, mas penso que passa por uma voz cada mais forte. Tenho estado atento às actividades do CENA, e acho que é por este tipo de estrutura que passa uma resposta colectiva de força aos problemas da classe cultural. Pessoalmente tento diversificar um pouco as minhas fontes de rendimento de forma a nunca ser apanhado demasiado desprevenido, ora faço trabalhos de realização, montagem, ou como actor, ou trabalhos de fotografia. Acho que aproveitar os tempos mortos para aprender novas aptidões também pode ser uma forma de conseguir estar mais protegido da precariedade.

Por último, quais são os seus sonhos para Portugal?

Mais do que para Portugal, eu sonho numa Europa que seja inclusiva, solidária, e que ataque de frente os problemas de desigualdades sociais e os problemas ambientais e das alterações climáticas. Um futuro desenhado por todos e para todos, e que deixe de fora os interesses imobiliários, os interesses da banca, e das companhias áreas e das petrolíferas. Acho que seria um belo passo para construir uma Europa e um Portugal melhor.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Ana Filipa Monteiro 03 de Junho de 2020

Recent Posts 
bottom of page