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Entrevistando Catarina Gomes

Entrevistando Catarina Gomes –

Jornalista e Autora dos Livros “Pai, tiveste medo?” e “Furriel não é nome de pai.”



Fotografia De: Daniel Rocha

Falou em entrevista ao Esquerda.Net, feita pela Mariana Carneiro, acerca dos seus livros e sobre as razões que a fizeram escrever e investigar. Passo a citá-la: “… Há uma idade em que os nossos pais não são motivo de interesse, temos a nossa vida e o passado deles não nos suscita grande curiosidade. Mas depois chegamos a um momento em que isso muda. E foi exatamente nessa altura que o meu pai morreu, tinha eu 22 anos. Fiquei com imensas perguntas para as quais gostaria de ter respostas. Mas não tive tempo. E esse silêncio eterno incomodou-me.”

Como é possível quebrar o silêncio que sentiu sobre os filhos da guerra, como o que sentiu sobre o seu pai sobre a guerra?

Fazendo perguntas, enquanto é tempo. O título do meu primeiro livro, "Pai, tiveste medo?" (Matéria-Prima Edições) era precisamente uma pergunta porque pensei nele como um desencadeador de conversas, como um pretexto para que os filhos se interessassem, de novo, por esse período da vida dos pais que foi tão marcante. Digo “de novo” porque muitos filhos tiveram interesse pela “guerra” dos pais durante a infância, muitas vezes enquanto folheavam os álbuns de fotografias dos pais do tempo da guerra. Queria muito que as pessoas da minha geração, que andam na casa dos 40-50 anos, voltassem a falar com os pais sobre a guerra, só que agora com perguntas de adultos.

Na sua opinião, o que falhou para a verdadeira história da guerra e acerca dos soldados, que não chegou a muitos filhos dos ex-combantentes?

Não existe “a verdadeira história da guerra”, existem tantas histórias quantos os militares que as viveram, como escreveu a antropóloga Maria José Lobo Antunes no seu livro "Regressos quase perfeitos". Mas acredito que muito não passou para a geração seguinte porque há silêncios muito difíceis de quebrar (um deles é obviamente a existência de filhos que ficaram em África) e também por algum desinteresse da minha geração.

Tem feito reportagens e trabalhado desde 2013 sobre a guerra, como por exemplo “Furriel não é nome de pai-Os Filhos Que Os Militares Portugueses Deixaram Na Guerra Colonial”

Como é para si poder contar estas histórias, ter aberto este espaço, ter quebrado um pouco o silêncio?

Na altura foi surpreendente porque não fazia ideia que nunca ninguém tinha abordado a realidade dos filhos que os ex-militares portugueses deixaram em África nps media. Tinham, afinal, passados mais de 40 anos desde o final da guerra. Ao perceber que havia este silêncio tão duradouro senti a responsabilidade e, ao mesmo tempo, o privilégio de ser a primeira a vir contar esta história ao público em geral. Digo “ao público em geral” porque a existência destes filhos era e é conhecida por quase todos os que estiveram na guerra, só que o tema ficou entre eles. Eu descobri-o numa “caserna virtual”, o blogue de ex-combatentes Luís Graça e & Camaradas da Guiné. Ali, entre eles, falava-se destes “filhos do vento”, como um dos militares lhes começou a chamar, uma designação algo desresponsabilizadora, porque ao atribuir os filhos “ao vento” é como se os pais não fossem os próprios militares portugueses.

Acredita que pode ainda despertar as pessoas para o que se viveu na guerra através das suas reportagens e dos seus livros?

Penso que não é tarde e que, às vezes, a própria distância dos factos e dos intervenientes directos aguça o interesse e desperta novas formas de olhar para esse passado.

Como tem sido, até agora, trabalhar nas histórias dos filhos deixados nas ex-colónias e sobre períodos dramáticos e injustos da história portuguesa?

Tem sido muito compensador receber dezenas de emails de pessoas que se revêem naquilo que escrevo. Por exemplo, há filhos de ex-combatentes que sentem que passaram a fazer parte da história quando, até então, eram invisíveis. Na Guiné-Bissau a reportagem que fiz para o Público motivou mesmo a criação de uma associação que juntou “filhos de tuga”, criando uma identidade e aumentando a auto-estima de pessoas muito discriminadas nas suas comunidades. Chama-se precisamente Associação Filhos de Tuga, é presidida por um guineense chamado Fernando Hedgar da Silva que apenas sabe que o seu pai era um furriel português, nada mais.

O que nos pode partilhar mais acerca do seu trabalho — especialmente em relação a como pensa que será importante a investigação sobre as memórias, sobre o que os militares viveram, sobre o que os filhos, por consequência têm vivido, para estudantes e para quem desconhece a história da guerra colonial?

É fascinante e, ao mesmo tempo, assustador perceber que, por exemplo, o stress pós-traumático pode não ficar apenas com quem viveu a guerra, que pode passar de geração em geração e chegarem consequências psicológicas até à geração dos netos, como aliás aconteceu com o Holocausto. Ou seja, um estudante, para quem a ida de um avó à Guerra Colonial é um assunto completamente remoto, pode ter em si marcas dessa ida que ele nem imagina. O passado não fica no passado.

Fala, no seu livro, sobre toda a estigmatização e exclusão social a que foram condenados estes filhos e filhas. Na sua opinião, como se conseguirá quebrar esta estigmatização e exclusão social?

Um passo muito importante seria a concessão da nacionalidade a estes filhos de pais portugueses. Acredito que esta seria uma questão de justiça histórica. Ajudei aliás na redacção do texto de uma petição que reivindica precisamente isso: a nacionalidade para estes filhos ignorados do antigo império colonial português. Podem consultá-la e assiná-la em: https://peticaopublica.com/?pi=PT91694

Quais são os seus sonhos para Portugal?

Que continue o trabalho de reflexão sobre o passado colonial. Que as gerações mais novas percebam que herdaram formas de ver o mundo de pais e avós e, que, por mais diferentes que se julguem das gerações anteriores, todos, quer queiramos quer não, herdamos preconceitos, mundividências. É preciso que tomemos consciência dessas heranças para que nos tentemos, cada vez mais, distanciar delas.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho. www.catarina-gomes.com​

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Mariana Dias

13 de Janeiro de 2020

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