top of page

Entrevista a ISABEL CASTRO HENRIQUES - Historiadora

Entrevista a ISABEL CASTRO HENRIQUES - Historiadora. Doutorada em História (História de África) pela Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne (1993). Professora de História de África na FL-UL (1974-2009). Investigadora do CEsA/ISEG-UL (desde 2013).



Foi presidente do Centro de Estudos Africanos da FLUL desde a sua fundação em 2002 até à sua extinção em 2009 e é investigadora do Centro de Estudos sobre África (CESA) do ISEG - Universidade de Lisboa. Foi igualmente membro de 1995 a 2005 do Comité Científico Internacional do Projecto UNESCO "A Rota do Escravo" (UNESCO/Paris) e fundadora e presidente do Comité português do mesmo projecto , desde a sua fundação 1998 até à sua extinção em 2015. Co-directora das colecções "Tempos e Espaços Africanos" e "Rota do Escravo – Estudos e Fontes", é autora de vários estudos consagrados à questão da escravatura e do tráfico de escravos, como o livro A Rota dos Escravos: Angola e rede do comércio negreiro (Lisboa, 1996, com João Medina), e outros textos que abordam a questão na perspectiva da história de África.

Foi também Coordenadora Científica do Programa Museológico do Museu da Escravatura de

Lagos – Núcleo do Mercado de Escravos (2014-2016) e Coordenadora Científica do Programa

Museológico do Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro de Cacheu, Guiné-Bissau

(2015-2016) (1).

PM: Que importância tem para si o facto de ter desenvolvido este projecto e a coordenação científica de um tema tão delicado e fulcral como a escravatura através dum Museu?

O que a tem levado a dedicar-se a estes vários estudos sobre a escravatura e as suas rotas, e as redes de comércio negreiro? Para si de que forma é determinante dar a conhecer esta história terrível - a escravatura - que se verificou em África?

ICH: Há várias décadas que uma das questões históricas que me tem ocupado e preocupado é o fenómeno da escravatura e do tráfico de escravos levado a cabo pelos Europeus em África e que envolveu, durante cerca de quatro séculos, milhões de homens, mulheres e crianças africanos, escravizados em África através de um sistema de comercialização organizado pela Europa, que os reduzia a mercadorias e os transportava sobretudo para as Américas, onde eram utilizados como escravos nas mais diversas tarefas organizadas pelos colonizadores europeus, destinadas à exploração das riquezas americanas e ao desenvolvimento das economias europeias. Este fenómeno histórico que teve uma enorme amplitude cronológica

(vários séculos), geográfica ( três continentes - África, América, Europa) e socio-cultural ( a organização de sociedades inéditas americanas e a persistência dos marcadores culturais nas Américas dos nossos dias, mas também repercussões na Europa e graves consequências sociais e políticas em África ) tem uma importância histórica de enorme relevância que marca não só a actualidade, nomeadamente com a forte e interventiva presença dos Afro-descendentes, mas também devido aos vestígios culturais que permanecem um pouco por tudo o mundo, já que as migrações africanas tiveram continuidade em vários espaços do mundo, em outros contextos históricos que se seguiram ao fim do tráfico esclavagista.

A dimensão e a importância deste fenómeno histórico marcado pela violência, nas várias

sociedades do mundo que o viveram e que o reflectem, impõem o seu estudo, a sua difusão, o

seu ensino : o fenómeno faz parte das suas Histórias e o seu rigoroso conhecimento constitui,

para além do saber sobre o passado, um factor fundamental para a desmontagem de ideias e

de preconceitos que se foram fixando, criando leituras de desvalorização e de inferiorização

dos Africanos, que mesmo em situação de dominação desenvolveram estratégias de

sobrevivência física e de preservação de valores culturais, hoje presentes nas sociedades

actuais. Os Museus podem e devem ser espaços de conhecimento, de ensino, de educação e de

divulgação cultural transmitindo a História, dando a conhecer de forma dinâmica os muitos problemas históricos do passado, apontando soluções necessárias no presente e traçando caminhos do futuro: este foi o objectivo que presidiu aos projectos levados a cabo nos dois espacos museológicos referidos, situados em contextos históricos e culturais diferentes. Um em Portugal (Lagos), outro na Guiné-Bissau (Cacheu), ambos ligados ao fenómeno da escravatura e do tráfico de escravos africanos revelam, naturalmente de forma diferente, passados que marcaram a história portuguesa e a história das populações africanas, em geral, guineenses, em particular.

No caso português, a questão da escravatura e do comércio de escravos, que marcou a história das relações dos Portugueses com os Africanos durante vários séculos, foi objecto de um silêncio quase generalizado dos historiadores durante muito tempo, apenas quebrado momentaneamente no século XIX pelas opções abolicionistas de Sá da Bandeira e dos seus seguidores, que denunciaram o sistema esclavagista e aboliram o tráfico e a escravatura nas colónias portuguesas. Mas os tempos oitocentistas trouxeram as ideias e teorias que fixavam

'cientificamente' a inferiorização dos Africanos, remetendo-os para um espaço infra-humano, sem história, sem escrita, sem civilização, confortando assim o passado esclavagista europeu e a conquista e a exploração coloniais europeias organizadas a partir dos finais do século XIX. Neste processo de desvalorização dos Africanos, que alimentou as teorias e as ideologias legitimadoras do colonialismo do século XX - até quase ao século XXI, no caso português -, assumiu um papel importante pelos seus escritos e pela sua influência no espaço intelectual português a figura de Oliveira Martins que, nas décadas de 1880-1890, anunciava " ...abundam os documentos que nos mostram no negro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo do antropóide, e bem pouco digno do nome de homem". De mercadoria e escravo, no passado esclavagista, a selvagem e indígena, na actualidade colonial novecentista, o Africano viu recusadas a sua inteligência e a sua humanidade.

Quanto à questão da escravatura e do comércio de escravos em África tem vindo a ocupar um papel relevante na investigação histórica africana, depois de um longo silêncio hoje ultrapassado graças ao desenvolvimento de uma historiografia africana cada vez mais preocupada em esclarecer os fenómenos históricos que marcaram o seu passado e que foram ignorados ou muitas vezes deturpados pelas historiografias coloniais. Hoje, as investigações sobre a escravatura e o tráfico de escravos sublinham sobretudo a singularidade e a violência de um sistema europeu imposto às populações africanas, que as escravizava, des-socializava, des-territorializava, escamoteando ainda por vezes a participação dos chefes africanos no negócio dos escravos com os europeus instalados no litoral. Estes temas são hoje estudados com mais rigor, inserindo-os nos diferentes contextos políticos regionais (reinos, impérios, Estados africanos da época) trabalhando sobre as redes comerciais internas e sobre as relações inter-africanas, e procurando reflectir sobre a especificidade das formas de escravatura ou, dizendo com mais precisão, de dependência africanas, desde sempre existentes nas sociedades de África.

Ao longo da sua vasta carreira, a sua área de investigação tem abrangido diversos temas sempre ligados à África, entre eles - para além da " Rota dos escravos" e da escravatura -, o colonialismo e a situação colonial, a história de Angola e da África central, a presença africana em Portugal e outras problemáticas ligadas à história da África, que se reflectem em várias publicações. Entre elas, salientam-se: Percursos da Modernidade em Angola. Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX, Lisboa,1997; São Tomé e Príncipe. A invenção de uma sociedade, Lisboa, 2000; O Pássaro do Mel. Estudos de História Africana, Lisboa, 2003; Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África - Séculos XV-XX, Lisboa, 2004; Território e Identidade – A Construção da Angola Colonial, Lisboa, 2004; A Herança Africana em Portugal, Lisboa, 2009; Os Africanos em Portugal, História e Memória, séculos XV-XXI, Lisboa, 2011; “Colonialismo e História”, in Dicionário de Historiadores Portugueses, Lisboa, 2014; "Classificar o Outro: historização e flutuação dos conceitos", in Reis Negres, Cabells Blancs, Terra Vermella, Barcelona, 2016; “Os Africanos em Portugal: integração e africanidade”, in História Geral da África, 9, Paris, UNESCO, no prelo; “ Modalidades da ‘escravatura’ no centro-sul de África ”, in História Geral da África, 9, Paris, UNESCO, no prelo. Também ao longo de quase 40 anos se dedicou a leccionar História de África, que introduziu em 1974-75 na Faculdade de Letras de Lisboa, e História das relações afro-portuguesas na mesma Faculdade, criando e coordenando os Programas de Mestrado e de Doutoramento em História de África, bem como a Licenciatura em Estudos Africanos na Universidade de Lisboa, entre 1999 e 2009.

PM: O que a tem levado a incluir esta vasta área temática nos seus estudos? Tem sido gratificante poder aprender sobre a história da África, sobre a história colonial, sobre a história dos Africanos em Portugal e sobre as suas relações? Que experiências tem tirado daí? Que tratamento, visão e atenção devem ser dados a estes estudos e qual a relação que temos com esta parte importante da nossa história portuguesa?

ICH: Se o meu interesse pela África vem de longe, da adolescência e de um contacto difuso através de imprensa estrangeira com as realidades marcadas pela violência vividas por Africanos ou seus descendentes, quer em África, quer na América do Norte nos anos Sessenta, foi sobretudo a universidade francesa que, no início da década de Setenta me permitiu estudar e compreender a História da África que, em Portugal, era não só inexistente no quadro universitário e naturalmente em todo o ensino da História, como recusada era a sua presença no âmbito da história universal: a África e os Africanos eram considerados povos sem uma história autónoma - eram, quando muito, uma espécie de apêndices da história dos Portugueses em África, servindo para alimentar a heroicidade portuguesa -, tal como não tinham religião, cultura, sistema político e território organizados, antes da chegada e da colonização levada a cabo pelos Europeus, em geral, e pelos Portugueses, em particular. Em Portugal, os tempos eram ainda os do colonialismo que haveria de durar até 1974 e as ideias de desvalorização dos Africanos e do seu enselvajamento, de recusa da sua autonomia histórica associadas às ideias de valorização da secular presença portuguesa em África e das benfeitorias para os povos africanos daí resultantes, legitimavam a dominação e a guerra colonial portuguesas, num momento histórico em que se assistia de uma forma generalizada ao fim dos impérios e à independência dos povos colonizados. Durante vários séculos, os Portugueses, instalados em alguns pontos do litoral do continente africano estabeleceram relações com inúmeros Estados e povos africanos, mantendo preferencialmente contactos de natureza comercial, marcados sobretudo pelo comércio de escravos e pela violência esclavagista, seguindo-se, na segunda metade do século XIX, um comércio de mercadorias africanas, como o marfim, a cera, a borracha, as oleaginosas, produzidas pelos Africanos, que gerou em África um período de mudança revelador das capacidades políticas, técnicas, culturais das sociedades africanas, pondo em evidência uma apropriação selectiva de propostas inovadoras europeias. Esta situação oitocentista marcada por dinâmicas africanas originais, viria a ser destruída pela ocupação e colonização portuguesas, a partir dos finais do século XIX, que alteraram de forma violenta os territórios existentes, os sistemas políticos e as estruturas africanas seculares, impondo um sistema de dominação e de exploração, generalizado pelos Europeus em África.

Esta é uma longa história que, se pertence à história africana, constitui também uma parte muito significativa da história portuguesa que deve ser valorizada, revista, estudada e ensinada, com o rigor necessário a um conhecimento que permita compreender o positivo e o negativo de relações seculares, marcadas por várias formas de violência sobre as populações de África.

"EU SOU HISTORIADORA"

"Peço-te que me recomendes um psicólogo e tu mandas-me um preto?”, dizia alguém a um amigo a quem tinha pedido uma sugestão de um psicólogo para a sua empresa. O preconceito, a discriminação, a recusa da diferença e da igualdade dos homens, atitudes forjadas ao longo da História, fundamentam a minha investigação, que procura esclarecer o hoje, interrogando o passado e traçando caminhos do amanhã." (2) Refere ainda neste vídeo https://edupreconceito.wordpress.com/2013/04/19/isabel-castro-henriques/ que é impossível compreender o preconceito sem recuar no tempo.

PM: Como acha que é possível reverter todo este preconceito e ignorância ainda totalmente presentes na nossa sociedade portuguesa como são exemplo os bairros nos arredores de Lisboa? Quais são os seus sonhos para Portugal e para África?

ICH: A construção do preconceito em relação aos Africanos resulta de um longo processo histórico, continuado e alimentado por diferentes situações e contextos históricos que se foram sucedendo durante vários séculos, sobretudo desde o século XV, com a presença crescente de homens e mulheres negros introduzidos como escravos em Portugal e depois com as políticas e ideologias da dominação colonial portuguesa em África estabelecida nos finais de Oitocentos e durante um longo século XX, agravado pela violência da guerra. A mudança, isto é, a reversão do preconceito, é certamente uma dura e demorada tarefa que implica eliminar a ignorância, estudar os fenómenos históricos em África, centrados nos Africanos e nos processos seculares internos de transformação social, política, económica, religiosa, e divulgar o conhecimento histórico da África e dos Africanos, através dos vários níveis do ensino, das diferentes formas possíveis de educação e de formação de jovens e menos jovens, das muitas possibilidades e domínios que a actividade cultural oferece, da organização de acções destinadas a reflectir sobre a diferença que caracteriza a humanidade, sobre o respeito para com o Outro, sobre o dever de solidariedade entre os homens....

Quanto aos sonhos…certamente muitos. Para além do fim dos vários tipos de pobreza e das várias formas de violência, o fim do racismo, do preconceito, da discriminação.... que existem um pouco por todo o mundo.

Outubro 2018

1- https://pascal.iseg.utl.pt/~cesa/index.php/menucesa/equipa-de-investigacao/379

2- http://www.cienciaviva.pt/mulheresnaciencia/index.asp?id=212

Obrigado pelo teu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques Correcção: Fátima Simões

30 de Outubro de 2018

31 de Outubro de 2018

Recent Posts 
bottom of page