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Entrevista a Mário Cruz - Fotógrafo

O que o motivou a trabalhar com realidades como o tráfico e a exploração infantil do Senegal e da Guiné?

O poder muito particular que a fotografia tem no que trata a constituir testemunho e prova. Percebi que uma das desculpas para a falta de resolução deste problema era precisamente a falta de prova. Sendo eu fotojornalista tornou-se evidente tanto a nível profissional como pessoal que eu teria de arriscar para conseguir obter essa prova, eventualmente criar os documentos que permitissem originar discussão e por consequência ajudar a gerar medidas que enfrentassem este problema.

Realizou a reportagem Talibés, Escravos dos Tempos Modernos. Como é que se processou este trabalho?

Eu tive conhecimento do desaparecimento de crianças guineenses quando estava na Guiné-Bissau em 2009. Passados alguns anos e depois de ter acumulado experiência profissional através da realização de outros projetos pessoais decidi começar a investigar o que se passava. Quando descobri a subversão da tradição Talibé no Senegal comecei a construir uma rede de contactos que me permitiu o acesso a esta realidade. A reportagem conta a história de milhares de rapazes entre os 5 e os 17 anos de idade que são forçados a mendigar nas ruas senegalesas pelos seus falsos professores corânicos. É um problema que atravessa fronteiras e que não está no fluxo noticioso diário das nossas vidas. São mais de 50mil crianças nesta situação. Sofrem agressões físicas, são violadas e por vezes assassinadas numa sociedade que muitas vezes as ignora.

Em 2016, após ter recebido o prémio Temas Contemporâneos do World Press Photo e denunciado assim, a situação trágica das crianças senegalesas, considera que deu um passo muito importante, que contribuiu para um melhor futuro destas crianças?

Creio que sim. O World Press Photo apesar de não passar de um prémio de fotografia tem uma audiência muito grande, por ser o prémio maior do fotojornalismo acaba também por criar uma pressão direta e indireta sobre os assuntos que distingue.

Muitas das fotografias que foram premiadas são hoje distribuídas em boletins de alerta, distribuídos por forças policiais senegalesas. Mais, o objetivo desta reportagem foi sempre criar uma prova física em forma de livro que pressionasse as autoridades locais mas também internacionais. O mesmo livro está hoje presente em inúmeras escolas do Senegal e da Guiné-Bissau para que as futuras gerações percebam o que aconteceu e o que não pode voltar a acontecer. Nesta problemática dos Talibes o acesso à informação é da maior importância.

Falou em entrevista ao Público que a situação era preocupante e assustadora. Ao abordar a gravidade da problemática, o facto de ainda existirem situações horrendas, é a sua forma de combater e denunciar estas realidades através da objectiva?

Sem dúvida. O que despertou o meu interesse no fotojornalismo foi precisamente a sua capacidade em denunciar problemas e histórias que merecem a nossa atenção e uma mudança urgente. Iniciei os meus projetos pessoais precisamente para documentar temas escondidos e/ou ignorados.

Refere que há cada vez mais dificuldade em publicar trabalhos deste género. Como é que se pode mudar o paradigma, lutar por uma maior abertura e consciencialização das pessoas e dos meios de comunicação?

Começa por o público, nós – os consumidores de informação, exigir(mos) mais e melhor jornalismo. Há espaço para tudo, o que não pode faltar é espaço para jornalismo com profundidade e qualidade.

Quem assume as opções editorias e se queixa dos baixos números de leitores não percebe que a precariedade, o tudo para “última hora”, entrevistas sem conteúdo e apenas histórias para o entretenimento não são a base do jornalismo e acaba por desvirtuar e falhar o seu dever.

Para si de que forma é que se deve olhar, e analisar os trabalhos que tem feito sobre a miséria, escravidão?

Espero que sejam vistos como documentos que devem ser discutidos por aquilo que retratam. Tenho consciência que são temas que nos incomodam e isso quer dizer muito do que deve ser um trabalho jornalístico. Em primeiro e último desejo quero que as minhas fotografias criem reação.

Disse: “É muito gratificante ver famílias a observar estas fotos. Para elas é uma surpresa, mas o choque inicial depressa se transforma numa vontade de mudar as coisas”. Após o público ler o livro, qual a reacção que espera provocar, no sentido da mobilização para a alteração deste paradigma? Como pensa que a situação irá mudar?

Como já referi, o acesso à informação é imperativo. As famílias senegalesas e guineenses têm hoje uma ferramenta que permite prevenir que mais crianças sejam confiadas a falsos professores corânicos. As futuras gerações saberão o passado de milhares de rapazes e estarão munidas de informação para que este processo de subversão não se repita.

O livro é também utilizado por várias associações locais e ONG internacionais como prova da realidade talibe.

Depois destes trabalhos fotográficos de denúncia de realidades como a escravatura, os maus tratos e a exploração infantil, quais são os seus projectos para o futuro? O que pretende mostrar e denunciar?

Os meus projetos demoram tempo a realizar devido à complexidade dos temas. Passo muito mais tempo a investigar, a conhecer, a ganhar acesso e a criar confiança do que a fotografar. A única certeza que tenho é que no futuro tentarei manter este percurso de trazer visibilidade para aquilo que não se vê.

Quais são os seus sonhos para crianças que vivam nestas condições, para os países em desenvolvimento e para Portugal?

Não vivo numa utopia, mas acredito que o jornalismo de qualidade poderá ser o recurso mais valioso contra a violação dos direitos humanos em qualquer parte do mundo, inclusive, em Portugal.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Ana Bastos

30 de Abril de 2018

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