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Entrevista a António Chagas Dias

Entrevista a António Chagas Dias Activista Contra o Novo Acordo Ortográfico

Numa conversa e observação sobre o acordo ortográfico e o Malaca Casteleiro, dizias-me: “O que me move é a própria ideia de Estado que está por trás de uma coisa assim. Um Estado que decide por cima das pessoas não as serve...” Para ti, quais são as razões para considerares e afirmares, que: "o estado está por trás de uma coisa assim?" Quais são as tuas motivações para combater este acordo? Como consideras que se pode deitar abaixo a enorme massa de aceitação e obediência que tem acontecido desde a sua imposição?

O modo como o AO90 entrou na nossa vida é reflexo de uma ideia de dirigismo cultural que não subscrevo, e que considero ultrapassada e menorizante da cidadania. Foi um estudo encomendado pelo poder político, contestado pelos pares dos especialistas que o elaboraram, e que sempre assentou em conceitos discutíveis, como a necessidade de aproximação ortográfica entre as variantes do português, a aproximação da escrita à fonética, e a responsabilidade do poder estatal na sua implementação. Cada um destes conceitos é discutível por si só, mas o terceiro é o mais insidioso, porque é sintoma daquilo a que os cidadãos são normalmente sujeitos: a uma programação assente no facto consumado, a um exercício de resignação, e a uma arrogância do poder político, travestida de tecnicidade e de intenções sonantes. Este estado de coisas deveria indignar qualquer pessoa que ama a liberdade. Por isso, a minha principal motivação para combater este acordo é que este documento, o tratado internacional que sustenta, e as estruturas que o promovem e difundem são emanações de uma realidade datada e ultrapassada, de onde está arredada a participação dos cidadãos e a racionalidade e responsabilidade mínimas exigidas à coisa pública. Na minha opinião, existem vários modos para contrariar a aceitação e obediência cegas, mas todos começam pela reflexão e pela informação. Este é um debate que facilmente resvala para o boçal, não por culpa do tema, mas porque não existe tradição de reflexão. E é isso que pretendo fazer com a minha acção: provocar a consciencialização, a reflexão, o debate, em suma, o envolvimento das pessoas.

Uma das tuas lutas é contra a ideia peregrina das pessoas que aderiram ao acordo ortográfico. Que dizem estar desfasado no tempo, que é tempo perdido politicamente, que os anti-acordo ortográfico não estudaram, que são Velhos do Restelo. Para além da má alusão aos Lusíadas de Camões, como vês este tipo de análise que se reflecte na maioria dos acordistas e como se pode fazer ver a realidade? Os argumentos mais espampanantes de parte a parte falham por vezes o alvo; quando defensores do acordo defendem que quem está contra o mesmo não o conhece, estão a discutir no mesmo nível dos opositores do acordo que manifestam a sua indignidade com exemplos de grafias absurdas, mesmo que inexistentes. Ambos estão, efectivamente, errados; os defensores do acordo defendem-no porque sim, tal como os opositores do acordo; a defesa ou oposição dependem da emoção, e não da racionalidade.

E a racionalidade do AO90 é nula por várias razões. Primeiro, porque os processos de evolução linguística não são idênticos no espaço onde se fala português. Isto implica que teremos sempre evoluções diferentes, e que, a haver ajustes à ortografia, estes serão aplicados necessariamente às variantes locais. Depois, porque assenta numa lógica supranacional que, vista por exemplo do lado de África, é uma lógica neo-colonialista. Ainda, porque o próprio documento abre azo a dúvidas quanto à aplicabilidade, abrangência e universalidade. Finalmente, porque o processo administrativo da sua aprovação e implementação não foi devidamente conduzido do ponto de vista da tramitação jurídica; e este ponto é importante: mesmo um processo completamente isento de irracionalidade (como o da implementação do AO90), ao ser submetido ao escrutínio e decisão públicos, não poderá nunca deixar a suspeita de que à sua entrada em vigor estão associadas dúvidas.

Estiveste envolvido na génese desta petição: Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990 e estás com um grupo a preparar uma plataforma contra o novo AO. De que forma pode ser impulsionador para a luta e desmistificar e/ou eliminar conceitos, preconceitos, erros e várias perspectivas erradas acerca deste acordo imposto?

É muito importante que as pessoas participem, e que sintam que existem plataformas onde podem reunir os seus pontos de vista. A luta contra o AO dura desde antes que este foi pela primeira vez apresentado e aprovado. Essa luta tem de ser conhecida e divulgada; a melhor forma de desmistificar e eliminar preconceitos é contar a história toda, tal e qual se passou e passa, e confrontar as pessoas com essa história, para que tomem posição no debate.

Referes numa discussão com o Malaca Casteleiro no Acordo Ortográfico em debate – TVI, "que a forma política é a menos aplicável de todas as razões para a existência deste novo acordo." Todas as alterações, acordos e reformas anteriores a este acordo, foram igualmente políticas e tinham o mesmo propósito, de que forma todas estas alterações, imposições e falta de ligação ao povo pela língua, podem ter contribuído para este estado calamitoso da língua?

A razão política é a menos aplicável de todas as razões para este acordo porque, como referi, só intervém ao nível da imposição; não houve aqui qualquer “política”; não houve discussão pública prévia à decisão, e nem sequer se apresentou uma estratégia pública que enquadrasse esta decisão. Por isso é que, de todas as razões, a política é a menos adequada. As normas e convenções desenvolvidas antes deste acordo foram-no num tempo em que não vivíamos em liberdade e não podíamos revoltar-nos contra os desmandos do poder. Tentar que hoje as pessoas tenham o mesmo tipo de aceitação cega, e repetir essa mecânica, mesmo que mascarada de sugestão, é estrondoso. Além disso, o grau de literacia em Portugal nunca foi tão elevado; nunca se escreveram tantos artigos, estudos, livros e demais conteúdos em Portugal como agora; pensar que se pode impor uma alteração deste teor a uma sociedade sem existir previamente um envolvimento com quem usa o idioma todos os dias é só mais um reflexo do pensamento ditatorial que este AO90 tão bem corporiza.

E em que é que a ortografia se unificou e de que forma a ortografia/língua/cultura se tem denegrido desde a aplicação deste acordo e desde a reforma de 1911? Como tradutor de profissão, de que forma o novo acordo te tem prejudicado? E como tem prejudicado todo o processo de tradução e o trabalho de tradução nos seus vários formatos? Tendo em conta as várias variantes do AO, os vários vocabulários, as ortografias que continuam a ser usadas como português de Portugal e do Brasil, como facilita a tarefa dos tradutores e de outros profissionais que são ou possam vir a ser obrigados a trabalhar com o novo acordo?

A ortografia não se unificou; se antes subsistiam dois modelos/variantes (o modelo americano e o modelo europeu), agora existem pelo menos três (os anteriores e o “acordizado”), mas que são na verdade muitos mais, tantos quantos as decisões individuais de “ortografia” que este acordo prevê. Não sou apenas tradutor; essa é uma das actividades a que me dedico. Mas é inelutável que a introdução do AO veio agitar o sector da tradução. Para um tradutor, paradoxalmente, a existência de mais variantes é uma oportunidade de mercado: se antes traduzia apenas para português europeu, agora traduzo para português europeu pré-acordo e para português europeu pós-acordo. A tarefa dos tradutores tornou-se mais complexa, já que para além da excelência na tradução temos de preocupar-nos com a consistência da variante ortográfica, temos o dever de informar os nossos clientes quanto ao que está a acontecer, e temos de agir contra a nossa consciência nos casos em que nos solicitarem traduções em variantes com as quais não concordamos. De qualquer forma, devo aqui salientar que um bom tradutor para português distingue claramente os dois modelos/variantes que referi no início da resposta, de tal forma que no mercado internacional estas duas variantes continuam (e continuarão) a ser distintas; um bom tradutor para português europeu não é necessariamente um bom tradutor para português americano, e vice-versa; e esta realidade não é beliscada pela existência do AO.

Quais são os teus sonhos para Portugal?

Que se construa todos os dias, que o construamos pelo debate e pelo consenso até onde nos deixarem, e pela luta quando não nos permitirem outra solução.

Obrigado pelo teu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques Correcção: Carla Carniça

28 de Fevereiro de 2018

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