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Entrevista ao Actor Carlos Paulo do Teatro a Comuna

Representou o Henrique Galvão no filme “Assalto ao Santa Maria” e disse à revista Visão que esse homem controverso o fascinava e que estudou todo o seu percurso como preso e como membro do regime. O que aprendeu sobre o estudo que fez para a personagem e também ao representá-la?

1- Quando me debrucei na pesquisa sobre a vida e a obra de Henrique Galvão, fi-lo sobretudo, com a intenção de enfrentar fantasmas do meu passado familiar e encontrar o homem para lá do mito e da personagem histórica.

Quando ocorreu o assalto ao Santa Maria, o meu pai, católico fervoroso e salazarista convicto, obrigava-nos em casa, depois do jantar, a rezar um terço colectivo para pedir a Nossa Senhora de Fátima o resgate do Santa Maria e a protecção de Salazar. Meses depois ali estava eu no Terreiro do Paço a ouvir o discurso de Salazar à Nação: “Temos o Santa Maria”.

Henrique Galvão passou a ser, então, um nome “maldito” no meu imaginário de criança.

Anos depois, já adolescente, iniciei a minha vida teatral, a fazer teatro radiofónico na antiga Emissora Nacional, participando em folhetins e programas para a juventude dirigidos por Odette de Saint-Maurice. E volta a surgir de novo o nome de Henrique Galvão, como o precursor deste tipo de programas, aquando da sua passagem como director da Emissora Nacional. Desta vez Galvão era-me falado como alguém de grande envergadura intelectual e empenhado em criar uma rádio oficial do regime, ligada à divulgação cultural através de programas de literatura, poesia e teatro.

O Henrique Galvão “diabólico traidor da pátria” transformou-se então no homem de carácter, cultura e merecedor da admiração e respeito daqueles que com ele viveram esse período de colaboração e contacto na Emissora Nacional.

Quando muitos anos mais tarde, o Francisco Manso me convida para interpretar a sua personagem no filme “O Assalto ao Santa Maria” eu percebi que era uma “oferta” para olhar para o mítico Galvão como homem, como ser humano e sobretudo como um idealista. Era também um desafio para melhor entender o meu país e um regime que tanto marcou a minha infância e adolescência e a minha vivência familiar.

E fiquei fascinado por conhecer o Henrique Galvão e dar-lhe voz e rosto, porque sempre acreditei que o ser humano é muito mais rico e complexo do que uma “imagem” ou um “símbolo”.

Teve oportunidade de conhecer algumas pessoas envolvidas do Assalto no Festival Internacional de Caracas, através do Grupo de Teatro a Comuna. Em que é que esta mais-valia foi essencial e facilitadora para a construção da sua personagem?

2 – Esse encontro com alguns dos elementos que tinham participado na equipa do assalto ao Santa Maria aconteceu em 1973 quando fomos pela primeira vez ao Festival Internacional de Teatro de Caracas, representar a peça “A CEIA”. Fomos então contactados por uma Junta Democrática Portuguesa que se nos apresentou como uma organização que estava a fazer um trabalho de ligação entre a comunidade portuguesa que ali vivia. Esse trabalho era feito sobretudo através da via cultural: a literatura, a poesia, a música e o teatro. Era também um local de tertúlia e de apoio das diversas comunidades portuguesas que começavam a aparecer na Venezuela.

Quando foram assistir ao nosso espectáculo fizeram questão de colocar uma placa alusiva à nossa presença nesse Teatro, para que a restante população emigrante portuguesa em Caracas sentisse a importância da nossa presença.

Depois convidaram-nos uma noite para uma tertúlia na sede da Associação para conversarmos informalmente, e então percebemos que a estrutura directiva dessa Junta Portuguesa era formada por uma série de elementos que tinham participado na aventura do Assalto ao Santa Maria, e que tinham escolhido Caracas como lugar de exílio, porque no Brasil onde o barco aportou, era mais difícil a sobrevivência, devido às ligações da PIDE portuguesa com a policia do regime do Brasil.

Foi aí que então ouvi pela voz dos seus protagonistas o que foi aquele acto de resistência e idealismo que transformaram o nome do navio em Santa Liberdade, e onde não houve uma gota de sangue ou falta de cuidado e atenção para com os passageiros, na maioria estrangeiros.

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E foi também o conhecimento de um homem notável – Camilo Mortágua

que nos fez perceber e reviver essa epopeia que bem fez tremer a fachada do regime salazarista... A imprensa Mundial deu eco desse feito enquanto em Portugal nada se sabia pela censura permanente dos meios de comunicação. Dessa vivência com Camilo Mortágua nasceu uma amizade com a Comuna que ainda perdura, atravessando períodos tão disparos como o exílio em Caracas, o regresso no 25 de Abril, as ocupações, a Reforma Agrária, a criação das novas Cooperativas onde íamos representar os nossos espectáculos para angariação de fundos, o lançamento dos seus livros no espaço da Comuna, a partilha de amigos comuns e as tertúlias de que ainda hoje não abdicamos. Quando mais tarde vou então recriar a figura de Henrique Galvão tinha uma profunda confiança naquele ser que me foi transmitido com tanto entusiasmo e admiração. Era sim, um verdadeiro Líder e um homem português que merecia ser conhecido e admirado pelos seus pares. Um almirante que não se vergou!

É autor e coordenador dos espectáculos “A Palavra dos Poetas”, dedicados a poetas do séc. XIX e séc. XX. Como tem sido a experiência de dar voz às palavras dos poetas e que aprendizagem tem tido desde que começou a desenvolver este trabalho?

3 -A minha paixão pelo teatro começou por causa da poesia. Aos 14 anos descobri o Fernando Pessoa da “Mensagem”. Apaixonei-me por Camões aos 15 anos com Os Lusíadas e sobretudo com o poeta dos Sonetos. Com 16 anos assisti à peça “Bocage Alma Sem Mundo” de Luzia Maria Martins no Teatro Estúdio de Lisboa. Esta peça retratava a vida do poeta Bocage e descobri que afinal ele não era o homem das tiradas obscenas e de humor, mas sim um grande poeta. Vi esta peça 1, 2, 3, 10, 15 vezes. Dessa última vez pedi para falar com a directora da companhia Luzia Maria Martins e disse-lhe : Minha senhora depois de ver este espectáculo descobri que a minha vida vai ser esta – quero ser actor!!

Seis meses depois estava a ensaiar nesse Teatro Estúdio de Lisboa, a peça “A Nossa Cidade” sob a direcção da Luzia Maria Martins. Tinha 16 anos e a minha vida teatral começava ali.

E aprendi uma coisa essencial: eu apaixonei-me pelo teatro porque o vi, e apaixonei-me pela poesia porque a li – então a minha função passaria a ser essa – contaminar os outros,

fazê-los apaixonarem-se e como dizia o Jean Genet espalhar “como lepra” o milagre da criação. Daí a Palavra dos Poetas: a partilha de uma das maiores riquezas da nossa língua e da nossa cultura – a Poesia. A aprendizagem que retiro deste trabalho de que me ocupo há 20 anos é uma permanente descoberta e partilha que dá sentido à vida que escolhi: o teatro, a palavra, o prazer do texto.

E muitas vezes no final dessas sessões recebo jovens, com os 16, 17 anos que eu já tive, que me vêem agradecer por lhes ter dado a conhecer novos mundos e a descoberta de novos caminhos para a alma.

Passou pela Companhia do Teatro Estúdio de Lisboa, Teatro Vasco Santana, representou em várias companhias como Casa da Comédia, Paraíso Infantil/Vasco Morgado, Teatro Experimental de Cascais, Companhia de Laura Alves, Companhia Teatral de Angola, Teatro ABC, Companhia Teatral do Chiado, Filipe Lá Féria – Produções, Teatro Meridional, Festival de Teatro de Mérida – Espanha. Foi sócio fundador da Metrul - Teatro do Arco da Velha (1970), Os Bonecreiros - Teatro Laboratório de Lisboa (1971) e da Comuna-Teatro de Pesquisa (1972) onde está até ao momento. Em que é que todo este percurso tem sido essencial e enriquecedor para si, como actor e como homem?

4 – Quando me estreei no Teatro foi já no Teatro Profissional. Nunca frequentei um curso, e nunca tinha tido nenhuma aprendizagem específica relacionada com a representação. Queria ser actor – era tudo. Por isso os meus primeiros 5 anos de profissão foram o meu Conservatório: aprendi fazendo. Daí a diversidade de encenadores com quem trabalhei, porque eu tinha plena consciência de que tudo me iria servir como formação. Aprendi com os diferentes métodos de cada um, como aprendi com os erros e com as descobertas que ia fazendo. Também tive a sorte e graças à minha idade – 16 anos – de fazer todo tipo de Teatro: infantil, musical, experimental, pesquisa. Cada peça, cada nova experiência era como frequentar o meu curso no liceu: um dia chegaria ao 12º ano e poderia pensar: agora sim, já podes frequentar um Curso Superior. E isso viria a acontecer quando fundei a Comuna ao fim de cinco anos de intensa actividade profissional. E pensei: “Agora sim, sou um actor.”

-3-De cada encenador, de cada companhia, de cada projecto, ficou sobretudo a memória da aprendizagem permanente, da partilha deslumbrada com actores que tudo me ensinaram. Eles foram os meus Mestres que tudo me ensinaram e me deixaram tudo:

Luzia Maria Martins, Helena Félix, Laura Alves, Paulo Renato, Raul Solnado, Armando Cortez, Canto e Castro, Eunice Muñoz, e os meus “irmãos” Mário Viegas e Filipe La Féria, como depois na Comuna foram o João Mota e a Manuela de Freitas.

Hoje sei que tive muita sorte em partilhar todo esse crescimento com eles, mas também tenho a consciência de que tudo fiz para o merecer.

Tem feito todo o tipo de teatro desde o infantil, comédia, musical, drama, café-teatro, revista, mais de 80 peças e tem representado textos de pessoas tão ilustres como: Garcia Lorca, Shakespeare, Gil Vicente, Alves Redol, Natália Correia ou Samuel Becket. Trabalhou com Mário Viegas, João Mota e Armando Cortez. O facto de ter representado estes autores e com estes actores, e ter feito um pouco de tudo, tê-lo-á certamente feito crescer e aprender. Em que é que se reflecte esse crescimento e essa aprendizagem?

5– Aprendi sobretudo uma noção essencial – o Teatro contém tudo, como a vida: o drama, a tragédia, o humor, a fantasia, a infância, os sonhos.

Aprendi que o Teatro não tem molduras, nem géneros maiores ou menores. Que a diversidade é a maior riqueza desta forma de criação, tal como na vida em que a maior riqueza é a partilha. Viver e partilhar, tudo isso nos faz ser uma pessoa mais lúcida, mais sensível, mais livre e mais aberto ao mundo e aos outros.

Aprendi com o actor que dentro de mim tudo existe: o amor, o ódio, o ciúme, a maldade, a avareza, a inocência, o medo – tudo.

Aprendi que o crescimento como ser humano é sobretudo isso: a escolha permanente, o risco permanente. Mais do que julgar, condenar, criticar o Teatro ensinou-me a olhar, a perceber, a compreender, a aceitar, a amar os outros.

Ensinou-me também a humildade de aprender que cada nova peça é sempre um recomeço, que cada novo texto e cada novo autor são sempre uma nova descoberta, que cada novo personagem é um mergulho profundo e atento nos meus sentimentos, nas minhas crenças, nas minhas emoções.

Viver através da criação é ter a consciência plena do sagrado e do profano; do efémero e do eterno, do zero ao infinito.

E compreendi-vivendo o que Peter Brook nos dizia: “O actor é o espaço vazio onde habita um texto”. Tal como aprendi aquilo que Pessoa me ensinou: Saudades, só do futuro.

Foi professor de teatro nos vários cursos que a A Comuna realizou. O que significa para si partilhar o saber e a experiência de palco com os mais novos?

6 – Esses cursos têm sobretudo a riqueza de cultivar a partilha e a descoberta. Como homem e como actor exigem-me a disponibilidade absoluta de ver, ouvir, compreender e sobretudo, ter a consciência daquilo que o João Mota me ensinou: cada actor é um, tal

como cada pessoa é uma – não há dois iguais.

Nunca tive o desejo de ser encenador, mas compreendi e aprendi que poderia partilhar com os outros a minha experiência de criação como formador. Ajudá-los a descobrir todo o potencial que cada um de nós é portador e dar-lhes técnicas e ferramentas para o desenvolver sem sobressaltos, nem exames, nem testes. Com exigência, mas sobretudo com disponibilidade, com cumplicidade.

Aprendi que, tal como me ensinaram a mim, cada um de nós deve descobrir o seu caminho para atingir a plenitude única e irrepetível da criação. A capacidade de sermos mais do que aparentemente somos.

Para mim esses Cursos são sobretudo uma passagem de testemunho, de experiências e de aprendizagem, que me ajudaram a ser mais humilde e atento, cada vez mais disponível para ver, ouvir e perceber que a mudança é permanente e única. E que cada um é um – esta é a riqueza mais profunda e misteriosa do ser humano

Através de A Comuna participou nos mais importantes Festivais de Teatro de todo o mundo em mais de vinte países da Europa, América, África e Ásia. Que contribuição trouxeram para o seu trabalho de actor todas estas experiências, cultura e sabedoria obtidas nessas viagens?

7 – A maior riqueza que essa experiência me proporcionou, foi a aprendizagem da relativização. Tudo é relativo. Tínhamos em Portugal um público disponível, fiel, e entusiasmado.

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Vivemos dois períodos políticos antagónicos: a ditadura – com censura e ameaças permanentes, e a democracia – com a descoberta colectiva da vida em liberdade.

Quando das nossas participações nos grandes festivais internacionais de Teatro, também sentimos esse antagonismo: antes do 25 de Abril atraíamos um público que queria perceber e sentir o que é fazer teatro num país com uma ditadura e uma guerra

permanente em África. Éramos então recebidos com curiosidade e admiração em países tão diferentes como a Polónia ou a Colômbia.

Depois do 25 de Abril éramos recebidos como os heróis de uma revolução sem violência e os portadores de uma nova mensagem: a festa dos cravos nas espingardas. E aí sim, sentimos que foi o mundo que se abriu para nos receber. Fizemos espectáculos em todos os grandes festivais de Teatro na Europa, na América e em África.

Para mim como actor e ser humano foi sobretudo a troca de experiências e a relação directa com outros criadores e outras culturas. Aprendi, também, que a língua não é um obstáculo para a relação com os outros – no Teatro a imagem e a presença física do actor estabelece todas as pontes para lá das diferentes línguas e culturas.

Vi e senti público emocionado com “A Ceia” na Hungria, em França, como na Costa Rica ou no México.

Também foi a ocasião única de conhecer e partilhar experiências com grandes criadores e curadores do Teatro em todo o mundo: Peter Brook, Dario Fo, Jack Lang, Grotowski, Nuria Espert e tantos outros. Percebi então que nós não éramos nem melhores nem piores – éramos nós, com a nossa paixão de criar espectáculos que fossem testemunhos da nossa vivência, das nossas descobertas, da nossa cultura.

Representou Aristides de Sousa Mendes - O Cônsul de Bordéus e Operação Outono. Ter participado em dois filmes sobre o Estado Novo/ 2ª Guerra Mundial e sobre o assassinato do General Humberto Delgado pela Pide foi uma forma de partilhar a História, representando-a. Até que ponto estas participações foram gratificantes para si?

8 – A minha participação nesses filmes foi sempre ditada pelo interesse e a riqueza dos temas propostos: factos reais da nossa história recente.

Houve durante muitos anos uma lacuna muito dolorosa na abordagem destes temas: se antes do 25 de Abril era impossível devido ao regime político, após a revolução deixou de haver desculpas. Por isso meu entusiasmo e vontade em participar nesses projectos. Na minha vida artística (49 anos) não fiz muitos filmes, mas os que aceitei fazer foi sempre essa razão principal: a história recente de Portugal, sem epopeias nem triunfalismos, mas com a reflexão e cuidado que ela merece. Henrique Galvão, Aristides de Sousa Mendes, Humberto Delgado merecem com toda a justiça essa evocação das suas vidas e obras.

Como actor era o prazer acrescido de estar a contribuir para uma maior compreensão e memória dessas vivências. O Teatro é efémero – vive e morre em cada noite, e só a memória de cada espectador o fará perdurar. O cinema, pelo contrário, ficará para sempre como um documento vivo. Daqui a cinquenta anos alguém poderá ver estes filmes e tomar conhecimento destas vidas e eu sentir-me-ei sempre recompensado por ter ajudado a perseverar esses testemunhos.

Ao longo de todos estes anos de representação, passou com certeza por muitas situações engraçadas. Quer partilhar alguma connosco?

9- Passei de facto por muitas situações especiais que, hoje com o tempo posso chamar de engraçadas. Uma que me lembro sempre – estávamos a fazer um espectáculo na Guatemala, “O Fogo”, num Festival de Teatro Internacional. O espectáculo foi representado num pavilhão enorme, a humidade era tão intensa que os projectores fumegavam e o chão da cena (um plástico acrílico branco) estava sempre molhado. Cada vez que um de nós entrava em cena escorregava ou caía. As quedas foram permanentes durante o espectáculo... mas nós actores sempre seguros como se nada tivesse acontecido. Chegámos ao fim destroçados. No dia seguinte no jornal mais importante da Cidade da Guatemala, saía uma crítica entusiástica, dizendo que o elenco da Comuna é composto por actores fantásticos e malabaristas e contorcionistas de classe internacional.

Quais são os seus sonhos para Portugal?

10 – Os meus sonhos para Portugal, ou melhor o “meu sonho” é de que se cumpra o Quinto Império do Padre António Viera até Fernando Pessoa: que este país pequeno e único se transforme através da língua e da cultura numa pátria sem religiões, nem raças, nem diferenças, mas sim num espaço que sirva de exemplo para o mundo do que seria a verdadeira globalização. Todos iguais e todos diferentes. Com a riqueza única da partilha de culturas e civilizações.

Pedro,

espero que sirva para o seu trabalho e muito obrigado por se ter lembrado de mim.

Um abraço fraterno do

Carlos Paulo

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques Correcção: Fátima Simões

09 de Novembro de 2016

09 de Novembro de 2016

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