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Entrevista a Soraia Simões, Autora do Mural Sonoro, investigadora integrada no IHC (FCSH NOVA)

1) Colaboraste no projecto Memórias da Revolução através dos “Sons da Revolução” e canções. Como foi teres trabalhado neste projecto do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL em parceria e com a colaboração de diversas instituições? De que forma foi fundamental para ti teres colaborado no desenvolvimento do “Sons da Revolução”, um dos pilares da Revolução e do PREC?

1) Trabalhei tanto com o Memórias da Revolução como com o Extrema-Esquerda porque não fizémos a Revolução? ambos projectos que contaram com a colaboração do IHC e Mural Sonoro, o segundo da RTP com colaboração do IHC e do Mural Sonoro. O primeiro do IHC tendo como parceiro a RTP. O primeiro a convite da professora Fernanda Rollo (actual Secretária de Estado da Ciência e Ensino Superior) e o segundo a convite dos jornalistas Luís Marinho e Rosário Lira (RTP). O primeiro centrava-se especialmente nas transformações ocorridas no pós 25 de Abril de 1974, especialmente durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC), nesse universo procurei desenhar o modo como as ideias de cultura politizada se materializaram nomeadamente através da música junto a um público urbano, mas também rural, em contexto pós-revolucionário, no segundo partindo da forma como alguns dos sujeitos da canção que entrevistei no âmbito das minhas investigações (algumas dessas entrevistas estão disponíveis em áudio na História Oral do portal Mural Sonoro) associados a uma cultura de resistência das décadas anteriores ao PREC, que se haviam posicionado quer contra o fascismo, a resistência à censura, à ditadura, à Guerra de Libertação ou Colonial, como preferirem, e até em críticas duras às indústrias de espectáculos e culturais acederam quer a um campo discursivo acerca de um Portugal rural no palco de transição democrática como a um conjunto de actividades culturais e criação de repertórios musicais que reflectiram essa mesma conjuntura, na qual o povo, enquanto sinónimo de trabalhador, rural ou operário é frequentemente convocado na transformação política e consolidação da democracia. Foi muito estimulante participar em ambos, especialmente porque os estudos sobre música e cultura são quase sempre o parente pobre das ciências sociais. É uma missão subjacente às investigações que tenho realizado também: procurar demonstrar que por via das canções e dos discursos desses actores da música em campanhas de dinamização cultural, no decorrer dos espectáculos ou nas suas criações musicais conseguiram-se inscrever vários desses assuntos da nossa história recente em vários campos sociais, atingir no fundo uma comunidade muito maior, que tendo como canal o conteúdo literário dessas músicas a eles se conectou.

2) Desenvolveste estes dois trabalhos sobre duas vertentes diferentes mas igualmente importantes do processo da música portuguesa «Geração Rock Rendez Vous», As Beiras, 1995. «'Punked'! Do 'Novo Rock' à Quimera 'Punk' em Portugal», Rua de Baixo, Edic. Agosto de 2009. Antes de teres criado o Mural Sonoro já trabalhavas com memórias musicais e culturais. Estes trabalhos sobre fases importantes da música e cultura foram o que impulsionou o seguimento ou o processo de criação do Mural Sonoro?

2) Estás bem informado! Esse pequeno artigo acerca do RRV esteve relacionado com um trabalho de área escola realizado durante a juventude liceal em Coimbra e que foi posteriormente publicado e adaptado num diário local para o qual escrevi em part-time (As Beiras) entre os 17 e os 20 anos, até crónicas de desporto local (risos) na verdade. Como vivi os anos 90 em Coimbra e acompanhei no terreno a emergência de grande parte das bandas «punk» e «rock» da minha cidade quis cruzar a experiência do RRV que começara uns anos antes na capital, a qual me era relatada pelo meu tio João que no fundo era quem conhecia esses grupos de Lisboa (pausa). Era uma adolescente, ouvi o Rolls Rock do António Sérgio mais tarde, no final dos anos 90, porque ele, e muitas das pessoas que fizeram parte de alguns desses grupos musicais, alguns de quem fiquei amiga, gravavam-no tal como o meu tio. Aí entendi que aquilo que o Sérgio passava nessa altura na rádio era o que nós em Coimbra andavamos a ouvir e a procurar recriar, as bandas especificamente, em espectáculos ao vivo. Essa génese musical e «subcultura» digamos assim. Digamos que o meu primeiro disco em português, herdado no fundo, foi o Sémen dos Xutos. Não era um disco. Era uma k7 gravada da rádio. Tempos existencialistas mas com alguma magia para uma miúda na adolescência numa cidade pequena.

Quando fiz essa reportagem alargada para o RDB (publicada em 2009) onde juntei o Zé Pedro (Xutos), o Pedro Coelho (Mata Ratos), o Almendra (Peste e Sida), o Jorge Bruto e Pinela (Capitão Fantasma), a Vanda Gonçalves, entre outros, o objectivo foi traçar por vida de história oral, das suas memórias, aquilo que foi o que muitos apelidaram de «movimento punk» cá e aí designei de «quimera punk». É um trabalho num registo culturalista, que era o que se pretendia dada a natureza da revista. Um dia publico, depois de ver como está o som, no portal Mural Sonoro essas conversas na íntegra com um enquadramento diferente. Foi uma tarde bem passada para esse trabalho, no largo do Carmo todos, à excepção do Zé Pedro com o qual combinei em Paredes de Coura o registo, pois iriamos lá estar os dois, no mesmo recinto de convidados.

A segunda metade dos anos 70, quando surgem os Xutos, e os anos 80, quando a maioria destes grupos começa a gravar são marcados por vários factores de ordem política, cultural e económica, desde logo: a entrada na CEE, o crescimento de publicações culturais, de editoras, algumas multinacionais, etc. É um período bastante interessante para este campo, que a indústria alcunhou de «boom do rock nacional». É um período de afirmação das próprias indústrias discográficas e de publicação de conteúdos junto do grande público. Não é à toa que surgem nos últimos anos tantas investigações científicas dedicadas a este período.

Respondendo concretamente à questão sobre o seguimento, a relação dos primeiros trabalhos com o Mural Sonoro (pausa)... Na prática trabalho sobre música há muitos mais anos que a minha vida académica acerca dela, se isto responde. Acho que sim (risos).

3) Publicaste em Junho a tua segunda obra, desta vez com a chancela da Editora Caleidoscópio, o audiolivro RAPublicar. A micro-história que fez história numa Lisboa adiada: 1986-1996 sobre os primeiros 10 anos do «rap português». Como foi esse processo de conversas e entrevistas? Referiste ao DN que querias demonstrar a dimensão desta prática na e para a sociedade e cultura popular com aquilo que foram alguns dos seus primeiros agentes e impulsionadores. Consideras um dever cumprido?

Considero que as vozes mais invisibilizadas ou os assuntos menos visíveis de alguns e de algumas desses e dessas protagonistas tiveram aí palco e ficam, desse modo, registados na primeira pessoa. Concorde ou discorde com algumas das suas perspectivas acerca dos assuntos que levanto, que são os assuntos da minha investigação neste campo. Considero esse objectivo cumprido. Custar-me-ia, reparando durante o meu trabalho de campo em alguns omissos e invisibilidades que não se podiam expor, deste modo, numa tese de natureza científica, que o meu contributo fosse apenas um conjunto de debates e uma tese académica, achei que isto era o melhor modo de devolver a disponibilidade destas pessoas comigo, e a importância dos assuntos que elas levantaram na cultura popular e por terem sido as primeiras a fazê-lo, à sociedade fixando para isso as suas memórias, isto é as entrevistas que realizei e algumas das conversas que mantive durante o trabalho de pesquisa.

Acho que um investigador deve fazer investigação, no seu sentido mais nobre, qualquer pessoa que vá para o campo à procura de se compreender então esqueça. Vá fazer uma auto-biografia. Isso não é investigação. Criar convivialidade com aquilo que não foi o nosso meio directo de crescimento ou de actuação, reforçar interesses, contactos, pontes, fontes e diálogos e contribuir para a inscrição de leituras renovadas no seguimento disso é o que se pretende a montante e a jusante de um investigador. Não numa perspectiva de reciclar e devolver à comunidade, mas de conseguir tirar da invisibilidade a importância, trazendo para o corpo de texto a nota de rodapé e permitindo que ela interaja, sendo parte desse processo. É o que acho.

3) Participaste numa oficina com o rapper Cadi a convite do Bloco de Esquerda intitulada “O Rap É Uma Arma”. Que conclusões desse trabalho se devem tirar e de que forma se deve ver o Rap? O que aprendeste com estas oficinas, discussões, palestras, entrevistas e toda a análise e investigação, todo o trabalho desenvolvido?

Digamos que reforcei o que tem sido a linha de orientação principal do meu trabalho com o Mural Sonoro, que é a da noção clara de que é na intersecção de domínios de conhecimento e de experiências que reside a riqueza deste tipo de encontros e projectos. Quanto às conclusões ao modo como se «deve ver o RAP» não tenho nenhuma conclusão, como podes imaginar, sobre aquilo que considero que deve ter uma natureza crítica, performática, cultural e musical plural, heterogénea, inortodoxa. Ou seja, não considero que deva haver um manual de «como se deve ver» seja o que for. Cada qual vê consoante as suas lentes e visões do mundo cultural, e assim é desejável que seja, numa sociedade democrática.

O projecto de tese que apresentei tem o título RAProduções​ ​de​ ​memória,​ ​afirmação,​ ​resistências:os primeiros​ passos​ ​do​ ​RAP feito​ ​em​ ​Portugal ​ ​(1986​ ​-​ ​1998) e propõe aprofundar a reflexão crítica sobre questões como a experiência transatlântica, as temáticas das esferas das desigualdades sociais, identitárias, económicas e de novos modelos de educação junto da comunidade jovem das décadas de 80 e 90 tendo como vector principal o papel pioneiro assumido por esta prática durante a sua emergência no nosso país e consequente afirmação na cultura popular no geral, ou seja noutros domínios como: o cinema de autor, a televisão, a dança, as artes plásticas e de rua: breakdance, flygirls, graffitti, muralismo, e da música popular no século XX através da introdução de uma narrativa crítica nova na música popular produzida em Portugal e de modelos de representação sonoros, performáticos e discursivos igualmente principiantes em contexto português, como os beat box, Mcing, rapping, djing, spoken work.

A tese pretende mostrar que os assuntos do universo histórico, mas também social e político, como esses de que dei exemplo, marcaram a existência diária destas comunidades nas primeiras décadas da sua afirmação no cenário cultural nacional e que, com a sua chegada aos mass media no início da década de 90, tendo como canal a expressão do seu corpo, da sua música e das suas «identidades culturais» inferiram, em discurso directo, um protagonismo aos antagonismos, ou seja: a um modo cru de «cantar» essas experiências até aí presentes exclusivamente na rua e invisibilizadas do contexto de difusão mediática, do mesmo modo que auferem para uma franja da sociedade com pouca participação crítica ou política activa (a comunidade jovem nascida na década de 70 no geral, a comunidade africana e a descendente de vários tipos de imigração no contexto pós guerra em especial) um lugar de fala junto da indústria cultural — universos discográfico e de espectáculos —, da cidade de Lisboa e da sociedade contemporânea pós revolução.

Talvez mais tarde origine outra publicação, com a mesma Editora. Logo se vê.

4) Estiveste na 1ª Sessão do Ciclo de conferências e debates do projecto RAPortugal 1986 – 1999 - RAPoder no Portugal urbano pós 25 de Abril. Também estiveste na Associação José Afonso em Julho , em Grândola para o colóquio - concerto «Como se Fora seu Filho» e sei que apresentaste uma comunicação nesse dia intitulada «MusicAtenta e RAP. - ´Tudo depende da bala e da pontaria´: do exílio às ruas (1961 - 1994)». Fizeste outras sessões a partir do audiolivro. Para ti como tem sido discutires este estudo e partir do Rap , a partir das palavras que se cantam, explicar a história contemporânea do país? De que forma este estudo e estas vertentes são fulcrais para a reflexão e análise ou podem ser fundamentais ? Partindo do tema do colóquio, como é que o Rap se pode cruzar com a obrigação do exílio e a luta das ruas?

É como a canção do Zé Mário (José Mário Branco) no GAC dizia. No fundo qualquer cantiga, aliás isto é extensível a qualquer prática no universo das artes performativas não tem de ser a canção, é uma arma, tudo depende da bala e da pontaria. Depende do que diz cantando, da eficácia com que diz, e do meio, contexto, grupo social ou pessoa à qual se dirige. O RAP tem uma particularidade, começa por ser um conjunto de palavras digamos que cuspidas ou cantadas, se preferires, com ritmo mas sem melodia, foi esse o lado da abrangente «cultura hip-hop», como a definem com os vários pilares, os seus primeiros protagonistas, que me interessou e especificamente nesses anos. E esses anos são marcados por lutas mas também pela mercadorização destas e de outras práticas culturais e pelo modo como estes sujeitos actuam nos seus quotidianos e nas suas práticas artísticas face a isso. Há 3 trabalhos académicos sobre esta prática, todos no meu estado da arte naturalmente, o do António Contador, o da Teresa Fradique e um de fim de licenciatura do Rui Cidra, mas talvez por terem sido realizados numa fase em que as perspectivas eram de uma sociedade e tempo comuns todos colocam a sua lente na «mercadorização» dos produtos culturais e na sua legitimação por políticas socioculturais numa sociedade pós-colonial. Termo aliás que eu evito, uso com aspas e algum custo. Políticas essas, através das quais, parafraseando Teresa Fradique do seu livro editado em 2003 pela Dom Quixote, se «vendem» não só o «outro» como a experiência de sê-lo, que no caso desta prática artística se enforma na categorização: «afrocêntrica» e«americocêntrica» de geração e etnicidades, luso-africanismo e modelos culturais juvenis maioritariamente negros, como demonstra o trabalho do António Contador.

Ambas as investigações partem de uma análise sobre o «lugar do outro» e a partir de uma perspectiva comparativa com o modelo internacional, especialmente anglo-americano que lhes serviu de primeira referência, por outro lado descuram a inscrição dos assuntos narrados pelas primeiras mulheres a fazer RAP em Portugal, também elas descendentes na sua larga maioria de africanos a viver em Portugal. A não inscrição dos assuntos que elas levantam no decorrer destas investigações: o sexismo, o machismo e a violência doméstica em simultâneo com o racismo, invisibiliza uma das lutas travadas no seio da mesma prática cultural.

Mas, repara, a existência de subalternização de género dentro de grupos culturais subalternizados é invisível na bibliografia sobre este primeiro período. Apesar dela estar patente, quer no discurso destas protagonistas como nos repertórios e cassetes caseiras. O papel político, de uma política nem sempre visível, «infra-política» roubando aqui esta expressão a outro autor, e várias vezes incompreendida e, portanto invisível, da maioria dos rappers neste período é inexpressivo nas investigações sobre este período. Estando o foco mais na dependência e inevitabilidade do «epifenómeno» a partir de uma acção exterior. O que se pode também dever ao facto de serem ambos trabalhos de investigação que resultam de trabalhos de campo pioneiros, no momento em que a prática ainda dava os primeiros passos em território nacional, não existindo tempo suficiente para «mudar de lentes». Uma das coisas que aprendi numa sessão de Antropologia e Movimentos Sociais que a Paula Godinho dá é que às vezes a mudança de tempo também nos permite mudar de lentes. A discussão sobre género no campo do RAP não foi efectivamente feita neste período, como outras. O investigador deixa sempre uma ponta para o que vem a seguir. Somos assim. Passamos a vida a deixar uma conclusão e uma questão subentendida, tantas vezes, para o que vem a seguir procurar quiçá responder (risos).

5) Para ti, que tens dirigido o Mural Sonoro desde o seu início, como é que tem sido abordar, discutir, e mostrar o trabalho sobre música popular da última metade do século XX até meados dos anos 90, abordando vários estilos musicais através de tantos músicos, compositores e construtores de instrumentos - todo este trabalho musical popular, destes músicos, sobre a forma como todos se relacionaram com estes assuntos da sociedade portuguesa?

Em poucas palavras: o melhor que levo deste trabalho. Aquele ideia, que não é minha, mas que descaradamente reformulo e repito para mim: a de que a riqueza do nosso pensamento tido como «inovador» é não mais do que fruto da soma de muitas mentes.

6) Quais são os teus sonhos para Portugal?

Talvez por completar 41 anos de vida dia 7 de Dezembro tenho aberto um bocadito mais a pestana sobre as vidas nas cidades maiores, como Lisboa (pausa), então digamos que não são bem sonhos, talvez sejam desejos. Os de um país menos preconceituoso e mais receptivo a quem pense diferente, esteja ou não próximo das nossas crenças culturais, grupos ou colectivos de pertença, um país de menos amiguismos ou interesses que vão para além do bem comum, que premeie o outro pela verticalidade e espírito de trabalho ou competências e ajuíze apenas quem conhece e não pelo que aparentemente vê. O que vemos e reproduzimos de quem nem conhecemos pessoalmente é quase sempre um reflexo do modo como nos vemos no mundo.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Jú Matias

4 de Dezembro de 2017

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