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Entrevista à actriz e encenadora Fernanda Lapa, da Escola de Mulheres.

Começou no Teatro dos Alunos Universitários de Lisboa e na Casa da Comédia. Como é que esta passagem inicial por estes grupos foram determinantes para o seu percurso enquanto actriz? De que forma a motivaram a iniciar esse caminho pelo teatro?

Quando na Faculdade de Letras comecei a fazer Teatro já a minha paixão por ele era muito clara. No Liceu de Oeiras já tinha tentado encenar uma obra de Garrett com alguns colegas, o que não veio a acontecer porque o Reitor queria que o fizesse com a Mocidade Portuguesa e eu recusei. Por essa altura eu não sabia muito bem o que fazer com o meu futuro profissional. Os meus Pais não autorizavam que eu entrasse para o Conservatório, apesar de a minha mãe ter lá feito o curso de piano e canto. É que nesses anos 60, bastava a chamada Instrução Primária para se poder fazer o curso de Teatro, e os meus Pais exigiam que eu fizesse um Curso Superior e fosse Doutora! Resolvi fazer testes no Instituto de Orientação Profissional. Parece que o resultado foi bastante “desorientador” e fui obrigada a ter uma entrevista com o Psicólogo. Apareceu-me um homem alto, com grandes óculos, uma boca com muitos dentes e grandes gargalhadas sonoras. Reconheci-o imediatamente, era o Bernardo Santareno! Ficámos amigos até ao fim dos seus dias e, claro, incentivou-me desde o primeiro momento a não desistir da minha paixão. Creio que foi ele que me levou mais tarde ao Fernando Amado, Director da Casa da Comédia, e a paixão cresceu e nunca morreu até agora, já lá vão 53 anos!

Obteve uma bolsa¹ em 79 onde estudou na Escola Superior de Encenação de Varsóvia e depois estagiou nos Teatros Laboratório de Grotowski, Contemporâneo de Wroclaw e no Stary de Cracóvia. Como é que foi a experiência? De que forma é que foi um importante incentivo para o seu percurso?

Foi também o Bernardo quem me incentivou a fazer um estágio de Teatro na Polónia dos finais dos anos 70. Três grandes inovadores pontificavam então no Teatro Polaco – Szajna, Grotowski e Kantor. Szajna trouxe a Lisboa a sua obra “Replika”, fruto da sua vivência como sobrevivente dos Campos de Concentração de Auschwitz e Buchenwald. Conheci-o nessa altura e ele convidou-me a ir até Varsóvia, não só para assistir ao seu trabalho com a sua Companhia, mas para fazer aulas de Encenação na Escola Superior de Teatro, da qual era um dos Directores. Uma vez conseguida a bolsa, resolvemos que seria enriquecedor partilhar de outras experiências, como as do Grotowski ou do Kantor ou de outros Teatros de grande qualidade artística mas mais convencionais. O sonho quase morreu quando regressei a Portugal, esperava-me o desemprego. Tinha três filhas adolescentes, uma casa para pagar, precisávamos sobreviver. Servi às mesas no restaurante de um amigo, dei aulas de teatro em várias Escolas, montei alguns espectáculos com dinheiros que ia conseguindo aqui e ali junto de algumas empresas mais generosas. Comecei a ser convidada para Encenar, raramente para trabalhar como actriz.

Criou o grupo de Teatro Escola de Mulheres, com Isabel Medina, com o intuito de quebrar o papel de sub-alternidade que a mulher tinha e tem no Teatro Português. Desde que criaram este grupo em 1995, que barreiras conseguiram ultrapassar, que mensagens têm conseguido passar?

Em 1993 e depois de algumas conversas com várias actrizes, entre as quais a Isabel Medina, a Cucha Carvalheiro e a Cristina Carvalhal (que tinha sido minha aluna) resolvemos fazer um estudo sobre a participação das Mulheres no Teatro Português. Chegámos a resultados impressionantes – raros textos de autoria feminina eram levados à cena, raríssimas as Encenações feitas por mulheres, raríssimas as mulheres com cargos técnico/artísticos (iluminação, cenografia, construção de cenários, etc), duas ou três mulheres em cargos de Direcção de Companhias apoiadas pelo Estado num panorama de mais de uma centena. A maioria das Mulheres de Teatro em Portugal esperava ser escolhida, nunca tinha a possibilidade de escolher quer o projecto, quer os seus colaboradores. Resolvemos então formarmos a Companhia “Escola de Mulheres” e juntaram-se a nós: uma Produtora - a Conceição Cabrita, uma Coreógrafa – a Marta Lapa e uma Secretária – a Aida Soutullo. Em 1995, depois de nos ser recusado apoio por parte da Secretaria de Estado da Cultura, tivemos a grata surpresa de sermos convidadas, pela então Directora dos Serviços ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, a Professora Yvette Centeno, a apresentar “As Bacantes” nos Encontros ACARTE de saudosa memória! Desde então temos tido uma produção contínua de espectáculos e assistimos ao aparecimento de jovens Encenadoras, Autoras, Directoras de Companhia, Cenógrafas, Iluminadoras, Directoras Técnicas etc. Todas elas com a qualidade profissional e artística que se exige tanto a homens como a mulheres.

Participou em séries históricas como “Pedro e Inês”, o “Processo dos Távoras”, e da história mais recente sobre um dos maiores escândalos do Estado Novo: “Ballet Rose – Vidas Proibidas”. Para si abordar a História através da representação é muito enriquecedor para si? E ter participado numa série sobre uma das histórias mais negras sobre o Estado Novo foi muito importante para si?

Tenho saudades de algumas séries televisivas de qualidade em que participei. Relembro “O Processo dos Távoras”, “A Raia dos Medos”e “O Ballet Rose” entre outras. Eram séries de grande exigência artística, produzidas com rigor, seriedade e grande cuidado estético. Não eram produtos de consumo rápido e digestivo, faziam-nos reflectir sobre a nossa própria identidade nacional. Se nos “Távoras” assistimos a manobras políticas que acabam em actos bárbaros como a decapitação e a fogueira, no entanto somos obrigados a entender como a Aristocracia, que conspirava juntamente com a Igreja para manter os seus privilégios feudais, estava do lado errado da História e do Progresso. Os “Ballet Rose”, infelizmente truncados na edição final, mostram-nos como os políticos e os homens do capital acobertados pela hipocrisia do sistema salazarento não recuam a usar repugnantemente os seres mais fragilizados da humanidade – as mulheres e as crianças. Pelos vistos, o processo ficou a hibernar, mas as práticas continuaram em surdina até aos nossos dias, no mundo e no nosso País.

Trabalhou com o Almada Negreiros e representou uma peça² do Almada com encenação de Fernando Amado. Como é que foi a experiência? O que aprendeu?

Esses dois grandes Mestres, Almada e Fernando Amado, tão diferentes e tão unidos no amor pelas artes, deram-me sobretudo a humildade de entender que nunca poderia esgotar a capacidade de entender. A humildade de não ficar fascinada pelo elogio. A humildade de tratar o texto literário ou poético com respeito e paixão, investigando-o dramaturgicamente, mas investigando-o também com todo o corpo, corpo onde cabe a voz e a emoção. Nunca os esquecerei!

Deu formação no Chapitô e tem dado aulas nas mais variadas escolas superiores (em baixo, a listagem das escolas - 3) para si como é importante a partilha de saberes e experiências para as gerações vindouras?!

Dando aulas aprendo. Não é um lugar comum que estou a repetir, é realmente um confronto emotivo com jovens que estão a crescer e precisam de alguns pontos de partida para a longa caminhada para a profissão artística que escolheram. A Arte não se aprende, aprendem-se algumas técnicas, e são tantas e tão variadas! Aprende-se a pensar a Arte. Aprende-se a conhecer-se a si próprio. Aprende-se a conhecer o seu próprio corpo, (voz e emoções incluídas) e a usá-lo em função da personagem, da obra ou da estética proposta. Ensinar tudo isto não depende de um só professor: depende de uma equipe empenhada no jovem que quer ser Actor, depende do jovem que quer ser Actor. Mas é um desafio estimulante ver crescer para o Teatro, ao longo de várias gerações, tantos que foram nossos alunos. Nalguns deixámos marcas, tal como os meus Mestres me deixaram a mim. Outros, nem nunca mais se lembram que passei pelas suas vidas. Não importa, é apaixonante e é por isso que continuo com grande prazer a dar aulas de Teatro, agora na Escola Profissional de Teatro de Cascais, cujo Director é esse grande amante do Teatro – o Carlos Avilez.

Com Sinde Filipe foi co-autora do programa “Cancioneiro”, um programa de poesia na RTP. Para si, partilhar poesia e cultura para o público, como este programa e todo o seu trabalho como actriz e encenadora, é uma grande mais-valia? Como se pode e deve promover e ou lutar para que se volte a ter programas deste género? E mais força no Teatro na Cultura?

Fui sempre uma grande leitora de poesia – e recitadora compulsiva, para mim própria e para os poucos que gostavam de me ouvir! Tive a enorme sorte de poder privar com grandes poetas – o José Gomes Ferreira, o Carlos de Oliveira, a Sophia de Mello Breyner, o Joaquim Namorado, o Manuel Gusmão, a Maria Velho da Costa, o Orlando Costa, a Maria Teresa Horta, o Egipto Gonçalves, o Mário Dionísio, o Armindo Rodrigues, o Manuel da Fonseca, a Natália Correia, o Herberto Hélder, o Ary dos Santos etc. etc. No rescaldo do 25 de Abril, a maioria destes poetas, que estavam proibidos de ser ditos, eram quase desconhecidos do chamado público. A grande divulgadora da poesia portuguesa tinha sido a Maria Barroso e por isso os poetas tinham por ela um enorme sentimento de gratidão. Outro grande dizedor era o Mário Viegas que mais tarde veio a ter um programa de grande audiência – “As Palavras Ditas”. Era urgente na altura divulgar estes poetas da resistência. Fui convidada pela RTP a organizar uma série de programas sobre eles. Chamei o Sinde Filipe, também ele amante da Poesia e, em conjunto, preparámos uma série de programas com a colaboração dos Poetas ainda vivos, e o apoio discretíssimo do Carlos de Oliveira, sempre avesso a publicidade. Foi ele quem me falou do Políbio Gomes dos Santos que eu desconhecia e me propôs o seu grande Mestre, o Afonso Duarte. Infelizmente o programa foi cancelado ao fim de 8 ou 9 edições! Continuei a divulgar a poesia portuguesa e estrangeira, agora com Sessões organizadas por todo o País pelo extinto jornal “O Diário”,e sempre gratuitamente. Acompanhava-me sempre o Carlos Paredes. Que enorme privilégio! Neste momento, a minha Companhia – a Escola de Mulheres – tem vindo a desenvolver , há já alguns anos, uma série de sessões de leituras encenadas, onde a poesia, a música, os autores e os actores se conjugam para dar voz aos jovens Poetas. A coordenadora é a Marta Lapa e normalmente as sessões intituladas “Da Voz Humana” são apresentadas com entrada livre na livraria Ler Devagar, na LX Factory. É bom passarmos o testemunho!

Quais são os seus sonhos para o teatro especialmente do teatro feito por mulheres, e sobre as mulheres, para a cultura e para Portugal?

Diz o Poeta que “o sonho comanda a vida” e eu sou comandada pelo sonho a não ficar sentada à espera que o Futuro aconteça. Por isso continuo a lutar como posso, com a minha voz e juntando-me à voz dos outros, para que se cumpra o prometido na nossa Constituição – que a Cultura, a Arte e consequentemente o Teatro, seja um Direito adquirido por todos, quer na sua fruição quer na sua criação, independentemente de serem homens ou mulheres. E como não se pode “cortar as asas aos artistas”, cada criador deverá ser inteiramente livre para criar e humilde o suficiente para se sujeitar às críticas fundamentadas.

¹ Da Secretaria de Estado da Cultura

²Deseja-se Mulher

3 Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa e na Escola de Artes da Universidade de Évora, onde dirigiu o Departamento de Teatro e foi Professora Catedrática Convidada. Presentemente lecciona na Escola Profissional de Teatro de Cascais

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques Correcção: Mário Martins

15 de Novembro de 2016

15 de Novembro de 2016

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