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Entrevista à actriz Carla Chambel

Em 2009, esteve em digressão com a peça “Xerazade Não Está Só” com encenação de Maria João Trindade. A peça é sobre a Xerazade contar a história de Simbade, o Marinheiro, reflectindo a sua situação e da sua irmã. A peça já foi apresentada há algum tempo, mas o que aprendeu ao dar voz a esta personagem e abordar a situação de refugiado? Tendo em conta as constantes situações de refugiados, como é que se pode tirar lições desta peça?

O António Torrado consegue sempre de uma forma simples introduzir nos seus textos questões importantes sobre a humanidade, os valores, os perigos que assaltam a nossa sociedade. Neste XERAZADE NÃO ESTÁ SÓ ele brinca com o clássico das Mil E Uma Noites. Em vez da Xerazade contar histórias à sua irmã para iludir o Sultão homicida, ela conta as histórias para iludir os sons da guerra. É com essas histórias que, sozinhas, conseguem vencer o medo do perigo e as mantêm unidas. Na célebre questão que se propagou nos últimos tempos sobre "o que levarias na mochila se tivesses que partir como refugiado", penso que, se o pão é tão importante para o estômago, então a cultura, a música, as histórias, qualquer forma de arte, serão igualmente fundamentais para alimentar o cérebro e a alma nos momentos difíceis.

Já foi encenada por João Perry, Fernanda Lapa, João Mota, João Lourenço e Carlos Avilez. E representou peças de William Shakespeare, Berolt Brecht, Almeida Garrett, Dostoievski, Luís Sepúlveda. Tendo trabalhado com estes encenadores e com peças destes autores o que lhe proporcionaram em termos de aprendizagem? Como a fizeram crescer enquanto actriz?

Essa experiência é o que me caracteriza como freelancer. O facto de ter trabalhado sempre com encenadores diferentes, companhias diferentes, registos diferentes, permitiu-me apreender formas diferentes de trabalhar, pensar, de fazer arte. Isso para mim é das maiores riquezas que um artista pode ter. Permite não estagnar, obriga a ter sempre a disponibilidade alerta para estar pronta para um novo trabalho sem preconceitos.

Representou Iva Delgado, filha de Humberto Delgado, em “Operação Outono”, como participou no filme “Julgamento” e na série “Até Amanhã Camaradas”. Como é para si poder representar a história sombria de Portugal do Estado Novo através da clandestinidade e sobre o momento trágico da morte do Humberto Delgado, ou de “Julgamento”?

Primeiro de tudo uma enorme honra. Depois aproveitei para conhecer melhor a história do nosso país e nada como uma forma lúdica para ser mais divertido fazê-lo. Ao tentar colocar-me no lugar de cada um daqueles personagens permitiu-me ganhar consciência da distância que temos hoje em dia daquela forma de vida. O dado adquirido da Liberdade é de repente posto em causa e fez-me reavaliar a importância e o respeito que lhe devo. E um enorme agradecimento que devemos àquelas pessoas que deram a sua vida por nós.

Em 2008, fez de Celeste Rodrigues para “Amália – O Filme”. Como foi para si ter representado uma grande fadista e participar num filme sobre a Amália, que marcou gerações de fadistas e ainda contínua a marcar? O que é que significou este trabalho para si?

Este trabalho significou conhecer um outro lado desta família que respira o Fado. O lado da cumplicidade entre as duas irmãs, as dificuldades que passaram, mas também os momentos divertidos que viveram pois ambas tinham excelente sentido de humor. Essa relação também se reflectiu no meu trabalho com a Sandra Barata Belo (Amália) em que a generosidade e o respeito que tínhamos ambas pelas personagens e entre nós, fez com que mergulhássemos num processo muito bonito de inter-ajuda. Mais do que o lado mais visível destas figuras da nossa cultura, procurámos também os seus lados lunares mais ocultos e isso aproximou-nos, ficámos mais cúmplices. E por fim entregámos isso ao público que, muito generosamente também, deu-nos os melhores feedbacks.

Claro que depois é muito interessante ver o percurso profissional da Amália e de como isso se repercutiu na sua família, mas para nós o percurso foi o dos afectos.

Em 2014, foi convidada pelo projecto “Fingerprint” para ser a júri portuguesa para o desafio proposto a jovens dos 16 aos 25 anos para que identificassem obstáculos que os rodeassem sobre o exercício dos direitos humanos na UE. O que a motivou a abraçar este projecto através de júri? De que forma é que é importante esta atenção pelos Direitos Humanos pela situação diária do país, do mundo?

Julgo que a abordagem dos temas que preocupam a sociedade através de uma forma criativa é a melhor forma de despertar o colectivo e fazer com que a humanidade reflicta sobre as suas acções. Abracei de imediato esta proposta pois acredito que, como artista e como cidadã, também devo ter um ponto de vista sobre estes temas. O facto de ter tido a oportunidade de ver curtas-metragens de jovens europeus permitiu-me estar mais próxima das suas preocupações, perceber os seus pontos de vista e como incrivelmente surgem mensagens comuns embora venham de países diferentes.

Foi, a par de Paulo Pires, a personagem principal do filme “Quarta Divisão”, de Joaquim Leitão. Para si como foi dar vida e voz a este problema tão delicado e tão pouco retratado e discutido em Portugal como é o desaparecimento duma criança?

Todo o filme foi um desafio. Primeiro o facto de interpretar uma sub-comandante da polícia já foi só por si algo único na minha carreira. Um personagem duro, objectivo, com características específicas como luta, porte de arma, etc, obrigaram-me a fazer um claro desvio daquilo que sou habitualmente no meu dia-a-dia. Foi muito intenso e divertido. Depois o filme tratava de vários temas: o desaparecimento de uma criança, mas também de pedofilia, violência doméstica tanto nos meios pobres como nas elites. Neste ponto o filme tinha o objectivo de alertar para cada uma destas temáticas em geral. E para cada uma destas situações importava que a minha personagem Helena tivesse sensibilidade suficiente para os tratar distintamente. E no final o objectivo era fazer-se justiça, encontrar os culpados e condená-los, mas como não há provas, a minha personagem decidiu fazer justiça pelas suas próprias mãos, o ato que a desmistifica como heroína desta história.

Participou, igualmente, na série “João Semana”, no filme “20.13 Purgatório”, de Joaquim Leitão, no filme “O Mistério da Estrada de Sintra”, de Jorge Paixão da Costa, e na série “Pedro e Inês”. Representar sobre a História de Portugal, sobre a História da Guerra do Purgatório, da Paixão de “Pedro e Inês” e do conto dum dos maiores escritores portugueses é para si muito importante e enriquecedor?

Sem dúvida. "Fazer época" é um dos sonhos da maioria dos actores. E não se trata de o fazer para vestir roupas diferentes, de outros tempos, trata-se acima de tudo de fazer uma verdadeira viagem no tempo e respirar outra forma de vida, outros hábitos, outras tecnologias, outros comportamentos. Um leque riquíssimo de caminhos por descobrir e tornar nossos quando fazemos aqueles personagens. Por outro lado abordar temas da nossa história faz com que conheçamos melhor aquilo que somos, de onde vimos, como chegámos até aqui. Recordar grandes escritores, personalidades da nossa história, momentos marcantes da nossa vida, é valorizar a nossa cultura, a nossa identidade. Tantos mais há aí por descobrir!

Quais são os seus sonhos para a cultura, para a representação e para Portugal?

Ui. Essa pergunta é três em uma! Desejo que os portugueses amem e respeitem cada vez mais a nossa cultura. Julgo que já ultrapassámos aquela ideia de vergonha que em tempos tínhamos (do Galo de Barcelos às cores da bandeira). Hoje em dia vê-se um despertar em todo o lado de amor pela nossa identidade que se reflecte no artesanato, na gastronomia, na música, etc, no turismo em expansão. Mas também desejo que estejamos abertos a outras culturas e que orgulhosamente sejamos um país que recebe os outros de mãos dadas. Desejo que a cultura se torne cada vez mais uma razão de investimento e de desenvolvimento económico em vez de ser só vista como uma subsídio-dependente. Vemos as marcas a investir nos festivais de música, por exemplo. É um princípio. Mas seria bom que olhassem também para as artes que têm correntes de público mais pequenas: a dança, o teatro, por exemplo. Vejo a minha geração a chegar aos lugares importantes. Um Tiago Rodrigues como director do TNDMII, ou um Nuno Lopes a ganhar um Leão em Veneza. Isto dá-me um enorme orgulho mas também a consciência de que este é o Meu tempo. O tempo de agir em prol da minha arte, da minha cidade, do meu país.

Quanto à representação desejo que o público continue crescente. Os teatros têm feito um esforço para se aproximar do público nos últimos 20 anos e isso tem trazido frutos. Vejo hoje em dia as salas cheias, de todas as idades. A oferta diversificou-se, desde os espectáculos para bebés aos espectáculos com séniores. Há uma riqueza imensa que só peca por estar restrita à grande Lisboa e Porto. Falta chegar ao resto do país com a mesma "fervilhância" que vejo na grande cidade. Quanto à ficção, que muitas das vezes se intitula de qualidade, (e o é efectivamente porque é feita por excelentes profissionais), só desejo que tenha melhores condições de trabalho, que os orçamentos dos canais para as produtoras não sejam tão à justa, que os timings de entrega dos trabalhos não se imponham para ontem, que a carga horária não seja de 60h semanais. Esta é a história comum a todos os trabalhos que tenho feito em televisão e por isso os resultados que vemos no ecrã são verdadeiros milagres, fruto da dedicação de equipas inteiras, desde a realização à figuração, passando por todas as áreas técnicas e artísticas, sem excepção.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Obrigada eu, grande abraço.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Mário Martins

21 de Setembro de 2016

20 de Setembro de 2016

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