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Entrevista ao Professor, actor, Dr. André Levy

Represent[ou] Karl Marx em Marx na Baixa, o que tem aprendido sobre a vida e a obra de Karl Marx? Apresenta a peça de forma hilariante. Para si pode ser uma forma positiva de fazer chegar a mensagem e o estudo de Karl Marx às pessoas?

Eu já tinha lido várias obras de Marx e estudado o seu pensamento político e económico, mas não conhecia bem a sua biografia, os aspectos mais pessoais da sua vida. Para me preparar, li várias biografias de Marx, mas também da sua filha Eleanor e do Engels. Apreendi sobretudo sobre a faceta mais humana de Marx: o esposo apaixonado, o pai brincalhão, o camarada solidário, o adversário tenaz, o eterno estudante, o procrastinador, o doente, o caloteiro. O que é apresentado na peça não pretende ser nem creio que seja uma caricatura. Marx era de facto uma pessoa cheia de vida, com um grande e sofisticado sentido de humor — algo patente que surge nas suas obras, mas também presente no seu dia-a-dia. Há relatos de noites passadas às gargalhadas com o Engels enquanto escreviam uma crítica jocosa, de noitadas passadas nos bares, de brincadeiras com suas filhas, mas também de sofrimento pela morte dos seus filhos, da grande pobreza sofrida por si e sua família. Humanizar Marx foi a grande lição, fazer dele não o busto, o ícone, mas o homem. E dado a riqueza da sua vida, Marx torna-se naturalmente mais interessante. E creio que essa aproximação à pessoa ajuda também a compreender a sua obra, a evolução do seu pensamento, a fonte da sua entrega à compreensão e superação da injustiça e crueldade do capitalismo. A peça ao humanizar Marx, ao apresentar o homem, deita abaixo algumas resistências devido a preconceitos, aproxima-o das pessoas, e permite expor algumas das suas ideias, de forma mais informal, e realizar que são muito relevantes para os dias de hoje. Para alguns dos espectadores pode ser o motivo para dar nova consideração às suas ideias, para as estudar. Não é o objectivo da peça, pôr as pessoas a estudar Marx, mas quem o fizer só virá a ganhar com isso.

Para além das teorias marxistas sobre política, sociedade, cultura, Marx também o influenciou através da Biologia Evolutiva como outros marxistas. De que maneira é que essa influência lhe permitiu adquirir mais conhecimentos sobre a biologia evolutiva? De que forma é que nos ajuda a compreender os seres vivos e as suas leis orgânicas? Como é que através do estudo de Marx ganhou o gosto pela Biologia e o motivou a estudar esta matéria?

Eu fui tomando conhecimento do Marxismo e da Biologia Evolutiva ao mesmo tempo, na adolescência, mas por vias independentes. Mas não terá sido por acaso que alguns dos evolucionistas que me atraiam e influenciaram nessa altura, como Richard Lewontin e Stephen Jay Gould, são marxistas. Tanto Marx como Engels leram a ‘Origem das Espécies’ com grande interesse e compreenderam a sua importância. A Biologia Evolutiva é uma ciência histórica, onde se procuram as causas profundas, últimas, "escondidas", dos mecanismos que vemos operar nos indivíduos. A procura do ‘porque as coisas são como são’, ‘porque não são de outra forma’. A dialéctica é fundamental para uma compreensão de como funciona o processo evolutivo e as relações ecológicas, e faz um importante contraponto ao reducionismo e determinismo que prevalece em áreas como a genética. A biologia evolutiva é uma teoria que no século XIX (e ainda nos dias de hoje) foi campo de batalha entre o materialismo e o idealismo, na forma do criacionismo. Há pois vários raízes filosóficas comuns entre o marxismo e a biologia (evolutiva), como eu a perspectivo.

Representou várias peças e esteve inserido num projecto sobre William Shakespeare. Quão enriquecedor foi entrar nas personagens criadas por este Mestre do Teatro? Ao estudar as peças, e o trabalho dele, o que é que lhe permitiu conhecer e aprofundar o seu trabalho de construção de actor e como pessoa culta?

(Antes de mais, Shakespeare era um favorito na família Marx, sendo muitas vezes lido e representado em família. Aliás, Shakespeare foi um dos autores que Marx usou para aprender inglês, após ter mudado para Londres.)

Tenho uma adoração por Shakespeare desde pequeno. Lia-o mesmo sem o entender a maior parte, apenas pelo gosto da música das palavras. Mais tarde fui vendo peças, continuando a ler, entendendo melhor, mas foi apenas através da representação que realmente logrei alcançar a genialidade das peças. A primeira peça onde entrei como actor foiMidsummer Night's Dream. Tinha um papel pequeno, com poucas falas, mas discutir a peça, ensaiar, apresentar para diferentes públicos, abriu-me portas à compreensão. Fiquei viciado. Quando a peça terminou, dediquei-me a memorizar as falas de Hamlet, já então a minha obra literária favorita. Recomendo vivamente memorizar algumas falas de uma peça, ou poema. A partir do momento em que se interiorizam as palavras e estas se tornam nossas, em que as dizemos várias vezes, em dias diferentes, com diferentes estados de espírito, entoações e intenções distintas, vamos ganhando perspectiva sobre o conteúdo e significado, e no caso de Shakespeare, da riqueza de leituras e interpretações. Passado alguns meses pude integrar o elenco do Hamlet, e esse foi outro salto. Não interpretei o papel de Hamlet, mas o texto já me era muito familiar. E pude então vê-lo ganhar corpo, espaço. Ver novas dimensões através da relação entre os actores, e estes e os públicos. Estas peças de Shakespeare que representei nos EUA eram pensadas para idas a escolas, portanto para públicos mais jovens, e muitas vezes actuávamos de manhã cedo. O público era um desafio grande. Mas o retorno foi muitas vezes imenso, pois os textos de Shakespeare são efectivamente universais e actuais. Nessas peças, o meu processo como actor foi muito a partir do texto. Só mais tarde tive papéis e textos que se prestaram a processos de construção de personagem a partir das suas histórias interiores. Marx foi exemplo disso.

Estudou improviso e trabalhou com o Grupo Os Improváveis. Como actor, como é que o improviso lhe dá calo e como foi a experiência de representar com um dos melhores grupos de improviso português?

Comecei a aprender improviso ainda nos EUA. É uma abordagem diferente, que faz uso de instrumentos distintos que o ensaio de uma peça. Não há possibilidade de construir um personagem, pois antes da cena esse não existe. Antes do improviso não há personagens, relações, espaço. É tudo criado no momento. O que se aprende pois, além das regras dos diferentes formatos de improviso, é flexibilidade e ginástica mental, abertura e aceitação, confiança em nós mesmos e nos parceiros, um espírito de construção colectiva. Fora do seu contexto, o improviso tem sido útil sobretudo nos ensaios, na exploração de personagens e cenas. O Marx na Baixa foi exemplo disso. Houve muita coisa (voz, postura, interpretação) que resultou de improvisações durante os ensaios.

Mas o improviso é um fim em si mesmo. É ser imensamente divertido e gratificante. Quando regressei a Portugal quis continuar a fazer teatro, incluindo improviso, mas na altura não havia oferta. Fiquei muito feliz quando passado vários anos começaram a surgir grupos de improviso, e agarrei a oportunidade de ter uma formação com os Improváveis (foram várias, na verdade). No panorama Português, são o grupo que melhor representa esta arte, pela qualidade e variedade de formas, pela contínua aprendizagem e evolução, por compreenderem que a comédia no improviso vem da entrega à construção improvisada (por mais estranha que seja) e não da piada brejeira e fácil. São excelentes professores, muito generosos e humildes. Aprender e actuar com eles foi uma grande honra.

Aquando do seu doutoramento nos EUA apreendeu, aprendeu, praticou representação no Theatre Three; de que forma é que essa aprendizagem e essa prática foram uma mais-valia?

[Bom, ‘mais-valia’ é a parte valor da força de trabalho expropriada pelo capital ;]

O Theatre Three corresponde ao que nos EUA se chama teatro comunitário: um grupo mantido em parte pelo apoio da comunidade e que em torno integra a comunidade em algumas das suas produções. Eu fui parar ao teatro por acaso, uma tarde que passeava pela vila de Port Jefferson, entrei no teatro e vi que ofereciam cursos de teatro. Fiz o curso no Verão, e foi muito gratificante. Senti prazer e à vontade, um escape para um lado mais criativo e brincalhão, mais criança. Foi muito terapêutico para mim. Na altura estava a meio do doutoramento, anos muito centrados no estudo e em torno da universidade, e a precisar desse escape. Foi também uma aprendizagem útil para comunicar ciência e dar aulas. Assim, foi uma lufada de ar fresco, abriu-me novos círculos sociais e outros focos de atenção, e devolveu-me algum amor-próprio pois tinha algum jeito. Repeti esse curso mais duas vezes. Depois fiz ainda mais dois cursos de teatro mais avançado, e uma coisa leva a outra, comecei com uma peça, depois outra, etc.

“O País Precisa da Juventude” é o título de um texto seu para a revista “O Militante” do PCP. Primeiro, como se mobiliza a juventude para a frente da luta? Em segundo, refere que: “O sector público – incluindo Universidades, Laboratórios do Estado e Sector Empresarial do Estado – constitui o pilar estruturante de qualquer sistema científico e tecnológico nacional.” Tendo em conta os ferozes ataques e a enorme precariedade, como se deve lutar e encarar este trabalho de desenvolvimento do sistema científico e tecnológico? A emigração e o desemprego são altíssimos para os jovens e não só. Como se deve passar a mensagem para a luta e a consciência do que estão a passar?

Como mobilizar para a luta, quer seja a juventude ou outro grupo etário, é uma questão central que não tem resposta fácil. Infelizmente, motivos de descontentamento não faltam. Crítico é pois persuadir as pessoas a irem canalizar o seu descontentamento para lá da simples queixa, e a entenderem que existem alternativas (algo que a ideologia dominante contraria com alguma eficácia), que estas não tomarão corpo sem acção concreta, e que tal acção requer o seu envolvimento movimento colectivo de protesto e construção dessa alternativa. Igualmente importante é ir construindo e fortalecendo um movimento colectivo consequente, seja ele um sindicato ou associação de estudantes, ou outra. Na escola secundária participei numa AE que contrariamente às anteriores deu importância às causas dos estudantes, na altura a PGA. Em vez de se limitar a organizar torneios desportivos e festas, divulgou informação aos estudantes e organizou participação nos protestos nacionais. E muitos envolveram-se.

Ao nível do Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN) os desafios são semelhantes. A maior parte dos docentes e investigadores conhece bem os problemas de congelamentos das carreiras, da precariedade dos bolseiros e ou docentes contratados, dos orçamentos reduzidos, e melhor que ninguém compreendem o contributo positivo que o SCTN pode dar ao país. O que falta é organização em torno da luta pela alternativa. E isso é algo que se tem de ir construindo, mudando atitudes e reforçando uma frente unida que envolva os diferentes elementos do SCTN.

Numa das fotografias que tem no seu facebook é sobre a Nato: Paz Sim Nato Não. Que perspectiva tem sobre a Nato? Sobre relações internacionais também abordou nos seus textos o facto de a contínua tentativa ilegalização do PCU (1) através do mediatismo; que consequências graves podem daí advir? Abordou também a péssima situação do Iémen e a enorme falta de direitos nos EUA. Como comunista, como vê os perigos para os direitos humanos, para a paz e o completo retrocesso social e o terror da guerra? Como vê a grave situação portuguesa de total perda de soberania, direitos e sucessivos ataques à dignidade humana?

A NATO é um braço militar do imperialismo ocidental, sobretudo dos EUA. Estamos já muito longe da ideia de uma NATO como aliança de países que se comprometem a ajudar em caso de serem atacados, para um instrumento agressivo, para avançar interesses geopolíticos, operando seja onde for, à margem de outras instâncias internacionais como as NU. A NATO é um dos grandes desestabilizadores da paz mundial, por exemplo devido à expansão no Leste da Europa, com bases e exercícios militares, ameaçando directamente a Rússia.

O imperialismo ocidental, seja pela NATO, UE ou intervenção directa dos seus grandes poderes militares, apoia quem lhes convém no momento, sem olhar para futuras repercussões (como o reforçar de organizações terroristas, como foi o caso da al-Qaeda ou ISIS) ou atropelos à democracia. Tal foi o caso na Ucrânia. Os EUA e o UE alimentaram as forças que vieram a realizar o golpe de estado, com a ajuda da comunicação social dominante, sem se preocuparem que entre essas forças estão elementos neo-fascistas. A ilegalização do PCU é um sinal preocupante da ascensão das forças de extrema-direita. Não é possível entender a resposta da comunidade Russa na Ucrânia sem reconhecer a ameaça que este ascenso representa.

Existem inúmeras situações no mundo que são causa de grande preocupação, situações de guerra, conflito, miséria, repressão. É triste pensar que a humanidade alcançou enormes avanços médicos, industriais, agrícolas, mas persistem doenças que poderiam ser evitadas, pobreza e fome. Aumentam as disparidades económicas entre países e dentro de países. A democracia é pervertida pelos grandes grupos económicos, com prejuízo dos direitos laborais e humanos. Mas como se diz frequentemente no PCP, com grandes perigos coexistem grandes potencialidades. A história não é linear, uniforme. Tem avanços e recuos, e por vezes dá saltos, quando menos se espera. Há que persistir resistindo, lutando, preparando e construindo um futuro melhor.

Quais são os seus sonhos para Portugal?

Aqueles que tenho para qualquer país ou povo, que todos possamos viver em paz e justiça, com os meios necessários para desenvolver o nosso potencial.

(1) Partido Comunista Ucraniano

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: J. M.

25 De Agosto De 2015

Correcção: J.M.

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