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Entrevista ao Jornalista Viriato Teles

Entrevista a Viriato Teles Jornalista, escritor, poeta e um dos jornalistas que mais trabalhou e estudou Zeca Afonso

1 - Tinha 16 anos quando se deu o 25 de Abril. Nessa altura percebeu alguma coisa do que se passava?

– Sim. Eu vinha duma família com grande consciência política, o meu pai era da Oposição e chegou a ser preso pela Pide, e não foi o único na família. Lá em casa sempre se falou de política, por isso posso dizer que sabia muito bem quem é que mandava em Portugal e qual era, digamos, o «lado certo» da realidade daquele tempo. Talvez não soubesse ainda muito bem o que queria, mas já tinha uma noção daquilo que não queria. É claro que tinha uma visão ainda um tanto ingénua da vida, da política e das coisas que realmente importam, mas também já suficientemente madura para saber que o que viria a seguir seria necessariamente melhor do que aquela «apagada e vil tristeza» em que vivíamos.

2 - E agora, o que se lembra dessa época?

– Lembro-me de sobretudo da grande festa que foram aqueles dias, dos sonhos que julgávamos possíveis, da urgência daquele tempo. De repente, sentíamo-nos donos do nosso destino, e isso é uma sensação incrível. Havia tanta coisa para fazer! E, nesses dias, tudo – mas mesmo tudo – nos parecia possível. Eram tempos de aprendizagem permanente, que eu e a minha geração tivemos o privilégio de viver intensamente. Fizemos muitos disparates, é verdade, mas não estou arrependido de nada – nem sequer das coisas que, hoje, não faria com certeza da mesma maneira. É um cliché, mas foram, de facto, os melhores tempos das nossas vidas.

3 – O que é que foi mais importante para si dessa revolução?

– No imediato foram essencialmente duas coisas: a conquista da liberdade e o fim da guerra colonial. Como a maioria dos rapazes da minha idade, eu tinha esse pesadelo aprazado para daí a poucos anos, e mais: já tinha perfeita consciência da injustiça daquela guerra, e por isso começava a pensar em qual iria ser o meu futuro. E o mais provável era que tivesse sido a fuga para o estrangeiro, o exílio. A ideia de ir matar ou morrer em África não fazia mesmo parte dos meus planos. Assim, o 25 de Abril representou, desde logo, o fim desse pesadelo. Desse e de outros. Hoje é difícil conceber a nossa vida de outro modo, mas é importante que não esqueçamos que nem sempre foi assim, e que a liberdade não é um dado adquirido nem uma realidade irreversível. Na actual crise da democracia, em Portugal e na Europa, os valores referenciais do regime são subvertidos a partir de dentro, pelos serventes do mais terrível dos poderes, que é o poder sem rosto da alta finança – os tais «mercados» que ninguém consegue dizer quem são nem onde estão, em nome dos quais todas as malfeitorias são justificadas. Perante isto, a memória de Abril tem de ser muito mais do que uma saudade: tem de ser um impulso para as novas lutas que aí estão. E que vão ser terríveis, não tenhamos dúvidas.

4 - Estudou muito a vida e obra do José Afonso. O que o motivou a trabalhar vários livros sobre esse génio?

– Foi um pouco fruto das circunstâncias. Eu conheci pessoalmente José Afonso ainda em 1974, num espectáculo em Aveiro, poucos meses depois do 25 de Abril. E uns anos mais tarde, já em Lisboa, entrevistei-o pela primeira vez, para o ‘Mundo da Canção’ (uma revista que teve um papel fundamental, antes e depois de 74, na divulgação da melhor música que se fazia em Portugal), e foi assim que fomos desenvolvendo uma amizade que durou até ao seu desaparecimento. Entretanto, em 1983, fui desafiado por uns amigos (Fernando Dacosta, Rogério Rodrigues e Francisco Vale, que tinham fundado a editora Relógio D’Água), para inaugurar uma colecção de «cadernos de reportagem» com aquilo que viria a ser o embrião d’As Voltas de um Andarilho. Nessa altura, à excepção duma antologia de canções organizada anos antes pelo Viale Moutinho, não havia nada publicado sobre José Afonso, e o caderninho esgotou-se num instante. Mais de uma década depois, já em finais dos anos 90, peguei nesse primeiro «esboço», e fiz então o livro. Pelo meio ficaram vinte anos de trabalho como jornalista, durante os quais segui muito de perto o que foi sendo feito na música popular portuguesa. De modo que escrever sobre Zeca se foi tornando uma coisa natural: conhecemo-nos, fomos criando cumplicidades – a que não eram, obviamente, alheias as nossas afinidades políticas – e tudo aconteceu assim, não foi uma coisa planeada.

5 - Que importância teve o Zeca para si e que importância devia ter para o país?

– Teve uma enorme importância, claro. Ele é seguramente uma das minhas principais referências de vida, e não exagero se disser que muito do que sou hoje o devo a ele, tanto do ponto de vista humano como estético e político. E só tenho pena que Portugal ainda não tenha plena consciência da enorme importância e do real valor de pessoas como José Afonso. Nós temos aquela mania muito nossa de nos compararmos aos outros partindo quase sempre de uma posição de subalternidade: dizemos que Aveiro é «a Veneza de Portugal» ou que o Parque Mayer é «a Broadway portuguesa», tal como somos capazes de dizer que José Afonso é «o nosso Pete Seeger» ou «o nosso Bob Dylan». Quando, a bem do rigor, deveríamos dizer que eles é que são os Zecas norte-americanos. Sem favor: José Afonso é um compositor ao nível dos melhores do mundo, e eu gostava muito que isto fosse um dado adquirido. Basta pensarmos em discos como o Cantigas do Maio ou o Venham Mais Cinco, que têm mais de 40 anos, e continuam a estar muitos pontos acima de muito do que hoje se faz, em qualquer parte do mundo.

6 - Trabalhou com o encenador, músico e autor Carlos Clara Gomes no espectáculo “A Formiga num Carreiro”. Este foi um trabalho muito importante para si? O que nos pode dizer sobre esta peça que escreveu?

– Esse espectáculo foi um desafio do Carlos, um velho amigo dos tempos em que eu era um jovem repórter. A ideia era fazer um roteiro para uma série de cantigas de José Afonso que ele queria apresentar. O meu texto funcionava como «fio condutor» desse espectáculo, digamos assim, e foi só isso o que fiz. De resto, nem cheguei a ver o espectáculo, na altura não tive oportunidade de ir a Viseu. Mas tive ecos de que resultou muito bem.

7 - Para alguém que até então só tinha trabalhado como jornalista, o que o fez trabalhar na música em co-autoria com o Eduardo Paes de Mamede para o disco “Não Me Digas o Que Sei”? Como correu essa experiência? Foi o facto de ter trabalhado o primeiro livro sobre o Zeca que o fez participar na elaboração deste disco?

– Não, não teve nada a ver. Foi um desafio do meu amigo Ed, que conhecia algumas das minhas veleidades para-poéticas e me convidou para fazer as letras duma série de canções para uma então jovem actriz e cantora, Argentina Rocha. Esse disco deveria ter sido o primeiro passo para um trabalho de maior fôlego que, por razões diversas, não chegou a acontecer. Sobraram umas quantas cantigas, e muitos anos mais tarde, foi com uma delas que ganhámos o Festival de Salónica, na Grécia [em 1992]. Foi a primeira vitória portuguesa num festival internacional de cantigas, apesar de pouca gente se ter dado conta. E pontualmente fui fazendo mais algumas: ainda recentemente escrevi uma espécie de fado, a meias com um autor e intérprete chamado Ricardo Fino, publicou agora o primeiro cd em nome próprio.

8 - Para a televisão, também como co-autor, trabalhou com o Mário Zambujal em “Lá Em Casa Tudo Bem”. Foi um privilégio trabalhar com aqueles belíssimos actores? O que tirou de saber e experiência? Foi um projecto que lhe deu mais prazer por fazer rir o público?

– Foi também uma coisa episódica, que meu deu algum gozo, é claro, mas o meu papel foi mesmo só o de argumentista pontual. Mais uma vez, a partir do desafio dum amigo, neste caso o Mário Zambujal, que era o autor da série, e precisava de ajuda nos argumentos. Foi o que fiz, e é claro que me deu prazer. Era uma série bem-disposta, de entretenimento ligeiro, sem grandes pretensões, mas que tinha um elenco de luxo, encabeçado pelo Raul Solnado: o Manuel Cavaco, a Margarida Carpinteiro, o Armando Cortez...

9 - Em 2007 escreveu o guião do espectáculo “As Palavras de Abril”. Para si, é realmente essencial falar-se do 25 de Abril e da Revolução? Acha que se devia falar mais sobre o tempo de Salazar/Caetano e a Pide/DGS?

– É importante porque só conhecendo o passado é que podemos viver o presente e construir o futuro. E, hoje, existe por vezes uma tendência para branquear ou atenuar as marcas desse passado, às vezes de forma subtil, outras vezes descaradamente. Fala-se do «antigo regime» ou do «regime autoritário», em vez de se falar do fascismo e da ditadura, e esta transfiguração da linguagem não é necessariamente inocente. As coisas são também a nomeação que fazemos delas. Daí essa necessidade de preservar a memória e de chamar «os bois pelos nomes». Para além disso, os tempos que vivemos estão muito sombrios, e isto não é uma simples figura de estilo: nos últimos anos a democracia tem sido reiteradamente violentada, os direitos conquistados estão a ser destruídos. O retrocesso social a que assistimos e a impunidade dos poderosos são sintomas muito preocupantes.

10 - Tem trabalhado muito sobre o Zeca Afonso, um dos símbolos da Revolução de Abril; tem entrevistas com defensores da Democracia como Vasco Gonçalves, José Mário Branco, Carlos do Carmo e Mário Viegas. O que aprendeu com eles sobre a luta que travaram e o que lhe transmitiram sobre o 25 de Abril?

– Aprendi muito, sem dúvida. Nesse sentido, eu creio que tenho sido um privilegiado. Muito graças à profissão que escolhi, através da qual tive a oportunidade de conhecer muita gente e pude conviver com alguns seres de excepção, e de me tornar amigo de vários deles. Por outro lado, eu cheguei a Lisboa numa época em que ainda existiam tertúlias e lugares de encontro de malta do cinema, da literatura, da música. Frequentei durante anos a última dessas tertúlias, que se espalhava por três cafés do Largo da Misericórdia – a que chamávamos o «triângulo das Bermudas», pois que dali se ia facilmente para a perdição… Por ali andava muita e boa gente, como o Manuel da Fonseca, o Cardoso Pires, o Herberto Helder, o Luís Pignateli, o José Carlos González, o Baptista-Bastos. E o Adriano Correia de Oliveira, o Vitorino e o Janita. O Zeca, embora raramente, também por lá passava. Também andei muito pelo Parque Mayer, onde pontificava o Mário Alberto, pintor e cenógrafo sobre quem organizei um livro de recordações e memórias. Além disso, tive também a sorte de ter trabalhado com alguns dos maiores jornalistas portugueses, casos do Miguel Serrano, do Fernando Assis Pacheco, do Afonso Praça, da Edite Soeiro, do Adelino Tavares da Silva. Enfim, seria uma lista longa, a que se juntam todos esses nomes de que falou e muitos mais. Houve entrevistas e reportagens que me deixaram marcas indeléveis, felizmente.

11 – Por exemplo?

- Assim de repente lembro-me desde logo dessa primeira entrevista a José Afonso, de que já falámos. E de outra, com Léo Ferré, que foi um deslumbramento. Ou com Amália, uma conversa surpreendente e que me revelou uma mulher muito mais interessante do que eu podia imaginar. De reportagens tive várias inesquecíveis: na Nicarágua do tempo da revolução sandinista, por exemplo. Estava-se em 1984, e aquilo era um 25 de Abril que já durava há cinco anos! Marcante também, por diferentes razões, foi a cobertura das primeiras eleições na Roménia após a queda de Çeausescu, que fiz para O Jornal. Também parecia um 25 de Abril, porém visto ao espelho: onde nós vociferávamos o fascismo, eles bradavam contra o comunismo…

12 - A reportagem sobre Che Guevara, em que participou, e o trabalho com o Carlos do Carmo contribuíram para a pessoa que é hoje?

– São trabalhos muito diferentes. O livro sobre o Carlos do Carmo é uma longa entrevista feita a propósito do Prémio José Afonso, e portanto é um trabalho circunstancial. Já A Utopia segundo Che Guevara resulta dum conjunto de reportagens e entrevistas que fiz ao longo de vários anos, da minha ligação afectiva a Cuba, da admiração profunda que tenho por aquele povo orgulhoso e determinado. Mas contribuíram, com certeza, como quase tudo o que tenho feito.

13 - O seu contributo para a luta e para a intervenção social e política é mostrar o trabalho deles às pessoas?

– A escrita é a minha ferramenta, tento usá-la o melhor que posso e sei. E dar a conhecer os outros também é uma forma de me conhecer melhor a mim mesmo. Eu não tenho necessariamente uma intenção deliberada de intervenção social ou política, mas isso acaba por ser inevitável. Eu não acredito na «objectividade» jornalística, naquele sentido asséptico que agrada tanto a tantos patrões da comunicação. De resto, é essa a melhor tradição da imprensa portuguesa: aquela, como diz o meu querido Baptista-Bastos, «que nunca enjeitou a participação afectiva, sem desleixar a qualidade da prosa e sem ignorar a ética do ofício». É daí que eu sou, e orgulho-me disso.

14- Para si é importante trabalhar a memória das pessoas e o trabalho que os artistas fazem? Foi isso que o motivou a usar Carlos Paredes como personagem de ficção, no livro colectivo Movimentos Perpétuos?

– A memória é o mais essencial do património dum país, é o verdadeiro e mais autêntico património imaterial da humanidade. Porque só conhecendo o passado podemos construir o futuro. Para esse livro escrevi um conto, «O Sonhador de Amigos», cujo protagonista não é necessariamente o Carlos Paredes, mas se inspira nele, nas coisas que conversávamos, naquilo que ele é e representa. Foi uma homenagem e uma pequena contribuição para essa tal memória. Dele e de nós.

15 - Que balanço faz destes mais de 30 anos de trabalho no jornalismo? Tem alguma história que queira contar?

– Apesar de tudo, creio que o balanço ainda é positivo. Como disse atrás, tive o privilégio de conviver com grandes mestres, daqueles que já não há. Sou da primeira geração de jornalistas do pós-25 de Abril, e por isso pude viver de perto muito do que de melhor esses anos nos deram. Havia tempo para gastar em ócios aparentes, mas que na realidade eram verdadeiras lições de vida. E conheci gente magnífica. E outros, que afinal eram menos magníficos do que supunha, também. Mas tudo isso nos ajuda a crescer. E a ser.

16 - Sendo jornalista, como vê o jornalismo de hoje? E como pessoa que trabalha na cultura, como acha que se pode melhorar a situação de modo a não a deixar morrer?

– Vejo o jornalismo com muita preocupação. E tenho a noção de que, hoje, dificilmente escolheria esta profissão, pela muito simples razão de que o jornalismo, tal como eu o entendo e sei praticar, esse já acabou. E acabou quando a notícia e o leitor deixaram de ser o mais importante. Hoje fala-se muito em «conteúdos», que é uma palavra que diz tudo e não diz nada. E as notícias passaram a ser avaliadas na lógica do «vende» ou «não-vende», independentemente do real interesse da informação que veicula. Não que não haja bons profissionais, nomeadamente entre os mais jovens: ao contrário do que por vezes se diz, há excelentes jornalistas na geração que tem hoje 20, 30 e tal anos. O problema não são eles, é todo o sistema: a precarização da profissão, a mania de que todos podem fazer tudo, principalmente nos sítios vocacionados para os chamados «produtos multiplataforma». Hoje há redacções onde o mesmo repórter tem por vezes de ser um quatro-em-um: redactor, fotógrafo, operador de vídeo, operador de áudio. Obviamente, alguma coisa tem de sair mal, já que ninguém sabe tudo. Chamam a isto «sinergias», «rentabilização de recursos», essas coisas. E o resultado é um cada vez maior empobrecimento da informação. E, consequentemente, da democracia. Isto só pode melhorar quando e se a sociedade decidir repensar o seu próprio funcionamento e a comunicação social assumir o papel de serviço público que deve ser. Quando e como será, não faço ideia.

17- É guionista, co-autor de alguns programas de televisão, já fez reportagens, vários artigos, entrevistas, colaborou em música, já trabalhou também em teatro, promoção de festivais de música folk, entre outros que pode ter na manga. O que lhe falta fazer? Foi importante arriscar em diversas actividades?

O – Eu tenho alguma tendência para diversificar interesses e actividades. Gosto de conhecer, gosto de experimentar, desde que seja em áreas onde me sinta à vontade: gosto muito de escrever canções, mas não me passaria pela cabeça cantá-las, por exemplo. O que me falta fazer? Ui, tanta coisa. Para já, acabar o próximo livro. E depois logo se vê.

18 - Quais são os seus sonhos para Portugal?

O – Que este País volte a reencontrar-se e a descobrir o que tem de melhor. Somos capazes disso, já o fizemos e não foi apenas em 1974. E parece-me que já está na altura de voltarmos «a ir para a rua e gritar». E fazer o que não chegou a ser feito. A gente merece.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Fátima Simões

(São várias as entrevistas a várias personalidades com trabalho feito na luta, na intervenção social, era de todo impossível referi-los todos, e referir todos esses trabalhos) 09 de Outubro de 2014

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