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Entrevista a Alda Pires - Poeta

Porque é que só começaste a ganhar vida e a escrever poemas em 2012? De 2001 até 2012 por onde andou a Alda Pires na Companhia deMente?

Ganhei vida em Moçambique, que é onde começo também a escrever. Eram coisas muito sonsinhas que até tenho vergonha de as mostrar mas que me deram os alicerces necessários para escrever olhando sob um prisma social. Curiosamente, foi um missionário comboniano, meu professor de Português, quem me incentivou, a mim e aos meus colegas, a escrever poesia. Quando vi o “Clube dos Poetas Mortos” pela primeira vez, revi na personagem encarnada pelo Robin Williams a figura do Padre Cunha. É importante reconhecer o papel que estes missionários, da Ordem de D. Daniel Comboni, tiveram na consciencialização das populações para a questão da independência dos territórios colonizados. Muitos destes sacerdotes foram cruelmente perseguidos pela PIDE. Depois dos massacres de Tete, todos os combonianos não portugueses foram expulsos de Moçambique pelo papel activo que tiveram denunciando ao Mundo essas atrocidades. Mas, para responder à tua questão: em 2001 e 2003 concebi, apartir de Paris, os figurinos da peça “Lunfado” e “o Baú”, encenações de Carlos Clara Gomes para a Talassos, Produções Artísticas. Só em 2006 trabalhei mais regularmente com a Companhia DeMente, que ainda integro, criando os figurinos da ópera “Auto da Fonte dos Amores” e “Luar21”.

O companheiro argentino por quem te apaixonaste transmitiu-te o seu fascínio pela suíço-argentina Alfonsina Storni (estabelecendo-lhe paralelos e descobrindo similitudes com Florbela Espanca) e pela cantautora e militante social chilena Violeta Parra. Onde é que se vê essa inspiração e influência nos teus poemas?

Foi uma paixão intensa. Ele era, de facto, fascinado pela história de Alfonsina, quase contemporânea de Florbela. A história da morte de Alfonsina Storni é magistralmente descrita nas palavras de Félix Luna na célebre canção de Ariel Ramírez “Alfonsina y el Mar”. Na altura, pareceram-me duas autoras francamente “irmãs” pelos seus percursos angustiados e, ao mesmo tempo, sedentos de vida. Violeta Parra chega-me também pela sua mão, mais como compositora e militante social (e cultural que, afinal, são a mesma coisa). É óbvio que, das três mulheres, Violeta é a que mais enfoque dirige na sua obra à cultura popular. O Chile e toda a América Latina são um alfobre de autores com compromisso social. Poderia enumerar um cento deles e delas mas ficaríamos por aqui com a entrevista e não sei de que espaço dispões. A inspiraçãoque questionas é paixão. É a paixão de escrever que é mais forte do que a vontade de falar, embora me considere uma boa conversadora. A influência? O simples facto de contactar com outra pessoa ou com a obra de outra pessoa faz com que seja influenciada por essa mesma pessoa ou obra. Creio que isto se passa com qualquer de nós. Não existe ninguém em “estado puro”. Nós somos sempre nós mais os outros que passaram por nós ou as coisas dos outros que passaram por nós.

Ao longo da tua vida tens estado activa na vida política. Por que tomaste essa opção de enfrentares políticos e governos que não trabalham em prole do povo, da cultura, e do progresso?

Não é tanto assim, isso de estar activa na vida política... Apenas exerço o direito e o dever de cidadania que não se esgota na urna de voto. E que todos nós deveríamos exercer com mais intensidade. Se te referes aos meus tempos de juventude, isso é outra história pois a vida que comecei a viver com o meu companheiro, pai da minha filha, que era militante Montanero e que exerceu actividade clandestina tanto no Brasil como na Argentina, obrigou-me a ter outro tipo de rotinas, algumas delas que ainda hoje persistem em mim. Por exemplo: hoje ainda tenho o “vício” que aprendi nesses tempos de não me sentar num café ou num restaurante de costas para a porta de entrada. Mesmo irracionalmente vou “controlando” quem entra. Nunca me consegui livrar desta rotina, o que, normalmente, exaspera as pessoas com quem estou porque dou mais atenção à porta do que a quem me acompanha. Mas, nessa altura, eu ainda estava muito “verdinha” pois tinha passado muito rapidamente por vários cenários quase antagónicos: a vida numa colónia portuguesa, seguida do processo de independência dessa colónia, momento ao qual não assisti; depois, aterrar em Portugal na então mais jovem democracia do mundo, seguida da desilusão que foi o 25 de Novembro de 75. E, três anos depois, ir viver uma vida de paixão intensa com o homem que foi responsável pela arquitectura da minha alma política em dois países onde ainda existiam ditaduras: Brasil e Argentina. E, nesses dois países, eu tinha a experiência que podia partilhar com brasileiros e argentinos que viam na Revolução dos Cravos um incentivo à sua luta. Eu era para eles uma testemunha próxima do que significava ter “habitado” uma Revolução romântica, como a Portuguesa. Curiosamente, desde Moçambique e durante todos esses percursos carreguei sempre comigo a trilogia “Os Subterrâneos da Liberdade” de Jorge Amado. Ainda hoje os tenho, com outras capas, de outros livros, de outros autores, por medida de segurança. Estão puídas e esfarrapadas pelos anos e pelo uso. Como imaginas, uma gaiata de vinte anos, influenciada por todo aquele romance fabuloso, saída dum processo como foi o PREC, senti-me animada para a luta duma maneira superlativa. E sentia-me como se fosse uma personagem a quem o Mestre Amado tenha dado vida pois via-me naquele mundo de meandros secretos. Mas confesso que a realidade não era assim tão romântica. Era muito duro constatar que um companheiro ou uma companheira tinham sido “desaparecidos”. Eu nunca tive propriamente uma experiência de organização. Tive algumas pequenas tarefas mas não passou disso. Nada de grave se comparado com o peso que recaía sobre os ombros de muitos dos companheiros e companheiras.

Foste perseguida. O que nos podes contar sobre isso? Prefiro não o fazer, sabes? Trata-se de honrar aqueles que de facto foram realmente perseguidos em países onde houve ditaduras musculadas ou não. Se o fizesse, poderíamos generalizar dizendo que todo povo brasileiro e todo o povo argentino – as realidades clandestinas que conheci mais de perto – também foram perseguidos. O que, não sendo mentira, não é completamente verdade. As perseguições de que fui alvo visavam atingir o meu companheiro que, entretanto, conseguiu fugir. Desde esse momento deixei de ser objecto daquilo a que chamas perseguição. Daí eu deduzir da minha fraca importância na luta clandestina.

Enquanto estiveste na clandestinidade, o que é que aprendeste da vida, da luta e da cultura? Aprendi a coisa mais valiosa da vida: A confiança no todo e o sentido de compromisso. São pedras basilares do funcionamento dum colectivo, seja ele qual for. E isso serve para todos os planos que citas.

E em que é que esse facto beneficiou a tua escrita e a tua força na luta? Não me considero necessariamente uma escritora “engagée” pois não me comparo com autores fabulosos que escreveram com mestria a partir das suas vivências clandestinas ou dos seus compromissos – lá está, o sentido de compromisso -. Autores como Brecht, Zeca Afonso, António Jacinto, Victor Jara, a já citada Violeta Parra, Nicolás Guillén, Mario Benedetti ou Pablo Neruda, a Fiama Hasse Paes Brandão, o Soeiro Pereira Gomes, souberam escrever os seus sentidos de compromissos de formas ainda inultrapassadas. Quanto à minha força na luta também não é uma coisa por aí além: há inúmera gente, ilustres heróis e heroínas anónimos, que são chamados a combater pela liberdade e pelos direitos de todos os outros (de mim, de ti, de muitos) duma maneira diária e consecutiva, sem abrandar os seus esforços ou sem rejeitar cargas. Esses são os verdadeiros heróis.

Quando é que surgiu o gosto pelo teatro? Que estilo te dá mais gozo? Creio que foi ainda em Moçambique, pela mão do tal Padre Cunha. Mas não sei o momento ao certo, é daquelas coisas que não sabes precisar o momento, o clique. Sabes como é quando dás conta que já estás apaixonado? Eu lembro-me que senti essa paixão ainda em Moçambique. O quando não sei. Identifico-me muito com o Teatro pobre, com o teatro popular. Gosto muito do teatro africano e latino-americano. O Brasil, a Argentina e o México têm, nesse campo, coisas fantásticas. Assim como Cuba e Venezuela. Em Portugal, gosto muito do trabalho da ACERT de Tondela ou do Teatro de Montemuro. Ou do Teatro ao Largo. Noutros registos, gosto também muito do Bando ou d'A Barraca, são referências importantes. Adoro criar para pequenas comunidades, onde tens toda a população a assistir ou a participar de alguma maneira. É uma coisa que não consegues ter num grande centro urbano. E não interessa se essa pequena comunidade só tem 300 habitantes. O importante é que estão lá TODOS os habitantes dessa comunidade.

Em Paris, conheceste a obra de Anaïs Nim aquando da tua digressão pela Europa. Como foi viver o mundo dela através da sua escrita? Até que ponto isso contribuiu para te tornares melhor escritora e onde é que essa aprendizagem se reflecte na tua escrita?

De facto conheci muito tardiamente a obra de Anaïs Nim. Quando me deparei com a escrita desta mulher, abordando a sexualidade sem qualquer reserva mental, trazendo o erotismo para a escrita literária segundo o prisma feminino, numa coutada de caça que, até então, era exclusivamente dominada pela cultura masculina, foi como se me tivesse sido colocado um raio de luz diante de mim. Anaïs acaba por expressar-se outorgando às mulheres o direito a tomarem as rédeas da suas sexualidades. Foi chocante, quando foi publicada, mas hoje já muitas mulheres escrevem “despudoradamente”, se quisermos usar essa expressão. Quanto à aprendizagem de que falas, já te referi o que são, para mim, as influências. Eu sou, necessariamente uma mulher diferente depois de ter lido o “Delta de Vénus” ou “Passarinhos”, da Anaïs. Como também sou uma mulher diferente depois de ter ouvido “A Sagração da Primavera”, do Stravinsky. Ou de ter vivido o PREC. Tudo nos torna diferentes. O tempo e a análise histórica que fazemos de nós mesmos nesse tempo é que determinará se ficámos diferentes para melhor ou para pior. Mas, aí, conta sempre o padrão de valores que utilizamos quando fazemos essas relexões sobre nós mesmos. Somos assim, mudamos. E a coerência não significa ficar presa a um valor que tinha determinado “valor” - passe a redundância -, em determinada altura. A coerência significa estar e estarmos sintonizados com o tempo histórico que vivemos em cada momento das nossas vidas. Não se deve, porém, confundir isto com alegadas “modernices”. Nunca renego o meu passado nem as minhas raízes: são a minha identidade. Direi, talvez, que hoje faria determinadas coisas de outra maneira. Ou não. Depende, lá está, do que consideramos como “valor histórico” em dado momento das nossas vidas. A história é sempre a bitola de aferição. E tudo é história: desde a “grande” História social e política de colectivos de gentes como a “pequena” história de cada um de nós. Não se pode nunca analisar a floresta sem a árvore nem a árvore sem a floresta.

Como activista e poetisa, como vês a imposição da cultura de plástico nas televisões e a forma como o Governo trata a cultura?

Vais-me desculpar mas prefiro a designação poeta, também para feminino. Poetisa soa-me a diminutivo. Se calhar é um problema meu. Esta é, aliás, a única concessão que eu faço ao Novo Acordo Ortográfico e que eu já usava, tanto para um género como para o outro, antes do Conselho de Sábios ter inventado o NAO. Importa referir: É porque sou activista e cidadã com deveres que sou poeta e não o contrário. Trata-se duma postura na vida. E é nesse papel de cidadã que olho com perplexidade para a programação oca e perigosamente “light” das diversas operadoras de televisão. É claro que os Governos não são inocentes neste processo. São, no meu ponto de vista, os responsáveis pela verificação e fiscalização do Serviço Público a que as TV's se comprometeram a cumprir para que lhes fossem atribuídos os alvarás respectivos. E que não cumprem. E não basta fazer serviço público atirando um magazine cultural para depois de dois programas enlatados, No outro dia assisti a um reportagem fabulosa sobre a presença portuguesa no mundo às 4 da manhã!... Desta forma não é Serviço Público... Mas o serviço público não se resume exclusivamente aos magazines culturais e a reportagens como aquela. Serviço Público implica ter a Humanidade no centro da equação. E ter a Humanidade no centro da equação não significa promover campanhas de caridadezinha. Isso é remendar um pano roto. Urge, na verdade, tecer novo pano. Mas tudo isto tem que ser visto à luz dum quadro global, dum diferente projecto de mundo.

Qual a tua opinião em relação à política nacional, à destruição do Serviço Nacional de Saúde, Segurança Social, todas as privatizações, a Troika, o pagamento dos dinheiros roubados por banqueiros e outros?

Fazes muitas perguntas juntas mas posso responder-te a todas com a resposta a uma delas: Tudo vai bater no sistema financeiro vigente, no roubo desenfreado praticado pelos banqueiros desde sempre e que agora está a atingir o seu apogeu. Mas a esse apogeu seguir-se-á, sem dúvida, o seu perigeu. Podemos estar a assistir às convulsões, ao estertor, dum sistema político decrépito, injusto e desumano. Será isto o fim do capitalismo? Não sei. Mas espero que sim. Espero que desta depuração dolorosa nasçam novos modelos que tenham a Humanidade no seu centro de preocupações. Ao contrário do que temos agora: um sistema que escraviza a Humanidade e a põe a trabalhar para a sua manutenção. Precisamos urgentemente dum sistema sócio-económico que reformula várias questões como o direito à Dignidade e o direito à Felicidade. E, até, o próprio direito ao Amor. Porque, como a Liberdade, só se tem efectivamente desde que haja condições para que todos os cidadãos e cidadãs exerçam esse mesmo direito.

E todos sabemos que a maneira mais rápida para extinguir um direito é deixar de exercê-lo.

Em 2012 Daniela Madanelo, uma colega de teatro, interpretou os teus poemas na peça “Cenas de Gaja”. O que sentiste ao veres alguém vestindo a tua pele e dando-te vida em palco?

A palavra mais acertada é: Alegria. Uma Alegria enorme. Primeiro, porque a Daniela é uma excelente actriz que soube encarnar o papel de várias mulheres que habitam os meus poemas como num condomínio. Mas, mais importante do que isso – o que não é pouco – foi impressionante sentir os diferentes respirares, as diferentes vidas que tanto a encenação como a interpretação deram ao que eu criei. É como se voltássemos a encontrar, ao fim de muitos anos, um filho parido por nós. Faz-nos lembrar sempre o momento em que nos separámos dele: reconhecemos o seu riso, o seu olhar, mas ficamos fascinados pela quantidade de coisas novas que ele nos traz. E isso é enriquecedor. Qualquer reencontro é enriquecedor.

Para o espectáculo da Companhia DeMente - “CONTRALTO-VOZES PELA IGUALDADE” escreveste os dois primeiros poemas. Desde então tens conseguido levar a tua avante na luta pela igualdade? Vou responder-te de outra forma: essa luta tem avançado e dado alguns frutos, uns mais visíveis do que outros porque tem havido muita gente a contribuir para essa mesma luta. Mulheres e homens. Não são dois poemas meus que fazem isso.

Quais são as tuas próximas lutas e os teus próximos trabalhos?

Estarei a trabalhar com a Companhia DeMente e com outros grupos. Como artista e como cidadã.

Na tua vida de viagem, em Moçambique, Viseu, em França, no Brasil, Argentina ou na clandestinidade, e também no teu convívio com outros autores, tiveste certamente muitas histórias interessantes. Podes partilhar alguma connosco?

Muitas dessas histórias já foram derramadas nas outras perguntas.

Quais são os teus sonhos para Portugal?

Apesar da minha alma viajeira e apesar desta pátria ter sempre tido essa vocação, que os nossos entes queridos não tenham que daqui sair para sobreviverem. Que Portugal se torne um País viável. Uma verdadeira República no seu mais digno sentido.

Obrigado pelo teu tempo, votos de bom trabalho. Obrigada eu.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Fátima Simões

1 de Setembro de 2014

31 de Agosto de 2014

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