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Entrevista ao cantor Janita Salomé

Em 1983 participou no penúltimo encontro de amigos “concerto” do Zeca Afonso. Que memórias guarda desse concerto e dos momentos com o Zeca em palco e na vida?

«1- Um encontro de amigos deixa sempre (ou quase) boas memórias. Naquele dia senti o amargo da consciência de que ia (íamos) perder o Zeca e eu prefiro lembrá-lo pujante, voz brilhante, genial, grande poeta e amigo tanto no palco como na vida.

Que sentimento lhe traz esse encontro de amigos “concerto”, sendo com certeza uma data muito especial. Que pode dizer sobre esse dia e sobre tudo o que aconteceu em palco?

2 - Falar disso é entrar num espaço da minha intimidade que eu prefiro não abrir. Guardo para mim essas memórias.

Participou no último disco do José Afonso que foi cantado por amigos; foi um disco especial para si? O que significou? E o concerto com o seu irmão no CCB em homenagem ao Zeca?

3 - Senti-me profundamente honrado por ter sido convidado pelo Zeca a cantar as suas canções e essa circunstância faz-me pensar que se trata de um disco realmente muito especial, inclusivamente porque nele participaram as minhas filhas no tema «Galinhas do mato» (as vozes a solo que lhe dão início). Quanto ao concerto com o meu irmão Vitorino no CCB, foi acima de tudo um acto de justiça associado a um prazer enorme em cantar a bela música e poesia do Zeca.

Hoje quando canta a Grândola Vila Morena, ou outra música do Zeca, o que sente? É para si muito importante cantá-lo? O que aprendeu com ele e com toda aquela vivência das cantigas, dos encontros de amigos e da luta contra a pide e a ditadura política?

4 - O Zeca e as vivências que com ele partilhei estão inscritos a fogo na minha memória. Com ele aprendi o que ensina a experiência com o homem que ele foi: sábio, carismático, generoso, terno, implacável na crítica e luta contra a terrível e odienta violência da ditadura fascista. Em todos os meus concertos canto e cantarei temas da sua autoria.

Como foram os tempos do pós 25 de Abril?

5 - Agitados, luminosos prenhes do encantamento de quem acreditava que o mundo iria mudar às suas mãos, mas o Outono veio depressa, leia-se, o desencanto…

Que balanço faz destes anos de canto?

6 - O Zeca, Adriano, Vitorino, José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Fausto, entre outros foram os precursores do que viria a ser a música portuguesa depois do 25 de Abril e o seu decisivo contributo foi determinante para um olhar ainda hoje carregado de expectativas optimistas sobre o futuro da nossa música, mal-grado tudo o que ao longo dos anos tem vindo a ser feito para destruir esta realidade identitária que nos custou muitos anos de luta, sacrifícios, torturas e mortes. A nossa história encarregar-se-á do julgamento. Não deixaremos de cantar!

Também nos anos 80 participou num filme sobre a sua terra Alentejana, o Redondo. Como se sentiu ao falar sobre as suas origens e as tradições locais?

7 - Ai do povo que não cuide da sua memória, dos seus valores, da sua identidade… Foram-se os anéis mas não os dedos. Com ou sem cante alentejano eu seria sempre músico.

Os Alentejanos têm a tradição de cantar em coros. Isso contribuiu para que se tornasse músico? Aos 18 anos foi para Lisboa trabalhar como funcionário judicial. Esse era o trabalho que desejava ou embarcou porque precisava de dinheiro para viver?

8 - Foram anos de transição, uma vez que dedicar-me à música era o meu propósito final.

A opção de viver da música veio em 1980. Decidiu profissionalizar-se depois de se juntar ao seu irmão Vitorino, ao José Mário, Zeca Afonso…?

9 - O Zé Mário veio mais tarde. Fundamentais para a minha profissionalização foram o meu irmão Vitorino e o Zeca e a vontade de me dedicar à música já era muito antiga, como atrás disse.

Que importância teve o CD Utopia no ano em que se comemoravam os 30 anos da Revolução de Abril e tê-lo cantado com o seu irmão Vitorino? Sentia que era essencial comemorar-se e falar-se da revolução que abriu portas ao mundo?

10 - Eu e o meu irmão Vitorino acompanhámos de perto uma parte significativa do percurso do Zeca e a importância fundamental que a sua obra teve na história da resistência à ditadura salazarista por um lado, mas não deixamos nem deixaremos de contribuir para o seu reconhecimento como grande poeta, cantor e claramente o mais versátil e inspirado compositor do século XX português. Posto isto, e porque vivemos tempos de retrocesso até à poucos anos impensáveis cantá-lo é imperioso, diria, obrigatório.

Participou como a actor numa peça adaptada por Hélder Costa para o grupo a Barraca na Peça “Margarida do Monte”, do qual fez duas músicas. Gostou desta estreia pelo teatro e de compor para teatro?

11 - A passagem pelo teatro foi fugaz mas útil. Teve importância naquilo que é hoje a minha linguagem gestual em palco. Compor para teatro é desafiante e nesse sentido, posso dizer que gostei da experiência.

Enquanto cumpria o serviço militar em Moçambique participou no disco "Canções proibidas: o Cancioneiro do Niassa", com as canções de campo da guerra colonial, onde se destacaram também outros cantores como Rui Veloso, Paulo de Carvalho e Carlos do Carmo, e outros. Que importância teve este disco para a luta contra a guerra colonial e a ditadura?

12 - A gravação desse disco aconteceu muitos anos após o fim da Guerra Colonial (1999, se não estou em erro). Estas canções, compostas na frente de combate foram certamente desgastantes para o regime fascista-colonialista no conjunto das diversas e arriscadas acções de luta que tiveram lugar tanto nas colónias como em Portugal. Aqui volto a lembrar Zeca, Adriano, José Mário Branco, Vitorino ou Fausto, Manuel alegre e outros antifascistas que arriscaram ou deram a vida na luta contra o odiento regime que tantos anos nos oprimiu.

Tendo em conta a composição deste disco, alguma vez temeu pela vida?

13 - Uma vez envolvido na guerra, senti uma profunda revolta e simultaneamente a consciência aguda de que apesar de tudo e com todos os riscos, era necessário fazer algo contra aquela situação, o que fiz de viola na mão cantando canções do Zeca e do Adriano ou passando a palavra de Manuel Alegre, cujos poemas circulavam de mão-em-mão entre soldados, sargentos e oficiais. Recordo um espectáculo para militares no cinema da cidade de Tete (Moçambique) em que cantei «As mãos» de Manuel Alegre e Adriano Correia de Oliveira e recebi de imediato voz de prisão. No entanto, «alguém» comentou junto do Comando Operacional de Tete que eu tinha chegado do «mato» dias antes e não estava bom da cabeça. Assim me livraram de uma grande carga de trabalhos. Vivi situações terríveis: minas, emboscadas, ataques ao quartel, mas de tudo saí ileso fisicamente. No que respeita ao foro psicológico já não posso dizer o mesmo, pois ainda hoje sofro de distúrbios do sono e tenho sequelas do estado amnésico a que cheguei no fim da guerra… Como tropa durante a guerra colonial, pode dizer-nos o que sentiu, o que viveu, e o que aprendeu no tempo em que esteve na guerra?

Enquanto músico de canções, modas alentejanas e músicas tradicionais portuguesas, é um privilégio para si cantá-las e mostrá-las ao público?

14 - É um privilégio e uma obrigação. Volto a dizer ai do povo que não cuida da sua memória, resumindo da sua identidade!

Quais são os seus sonhos para Portugal?

15 - Portugueses mais exigentes e informados para, com a consciência aguçada, melhor decidirem sobre os caminhos deste país.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques

20 de Maio de 2014


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