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Entrevista à antropóloga Catarina Casanova

O que é que tens aprendido com as tuas investigações e com as culturas dos países onde tens ido trabalhar no terreno?

Tenho aprendido muito e tenho sempre chegado à conclusão que há um universo de conhecimento para descobrir. Tenho aprendido muito sobre várias espécies de primatas não humanos: gorilas, chimpanzés, calitricídios, babuínos, macacos-uivadores, macacos-aranha, macacos japoneses entre muitos outros. Mas acima de tudo tenho aprendido muito sobre a própria espécie humana. Nos mais diversos países onde tenho estado, tenho conhecido diferentes culturas, diferentes formas de vida e diferentes formas de olhar para o mundo e para a vida. Tenho-me também confrontado com realidades difíceis, com cenários e contextos muito difíceis: desde guerra, a miséria e pobreza extremas. Mas nesses mesmos contextos também tenho vivido das mais comoventes experiências pelas quais já passei: de grande solidariedade, afectos e ternura. De grande humanismo.

Foste para a Antropologia para conhecer o ser humano e o seu percurso. Quando é que se deu a paixão pelos primatas?

O ser humano é um primata. Nós, espécie humana, pertencemos taxonomicamente à classe dos mamíferos e à ordem dos primatas. Mas nas culturas que vivem enquadradas no paradigma judaico-cristão, como é o caso da nossa cultura (chamada de “ocidental”), a percepção do ser humano é acima de tudo preconceituosa, antropocêntrica. Há uma tentativa constante de despir o ser humano da sua animalidade, como se não fosse um mamífero e um primata. Como se nós não fossemos animais mas outra coisa qualquer...quase que divina, criados à imagem e semelhança de algo superior. Isso está presente na forma como a grande maioria dos seres humanos trata os restantes animais: desde aqueles que são usados em experimentação, às cadeias de produção animal, aos animais que vivem no seu habitat natural. E este preconceito não é apenas dirigido aos outros animais. Ele estende-se a outros seres humanos que apresentam características distintas: há uns que acham que foram escolhidos por um deus qualquer e que por isso têm direitos sobre a terra e sobre os outros; há outros que se acham superiores porque têm determinada cor de pele e isso justifica um tratamento degradante relativo a todos os que não exibem esse fenótipo. Sejam quais forem as razões invocadas, estas não passam de preconceitos relativamente aos “outros”. Estes preconceitos são baseados em ideias religiosas, em ideias racistas, em ideias que implicam a exclusão de uns relativamente a outros ou a superioridade de uns face a outros. O antropocentrismo, tal como o racismo, é um preconceito. Os preconceitos são “construções” ou se quiseres, “catalogações” que são cognitivamente produzidas dentro de um determinado “millieux” cultural. Quanto à minha paixão pelos primatas não humanos, ela nasceu nas aulas de Antropologia durante a minha licenciatura. Tive um professor de mente aberta que levava sacos de livros para as aulas para emprestar aos alunos. Livros sobre diversos assuntos. Um dos livros que escolhi foi o “In the shadow of man”, da autoria da Jane Goodall. Levei o livro para casa e assim que abri a primeira página, nunca mais parei. Li o livro (sobre a história dos chimpanzés de Gombe na Tanzânia estudados pela Jane) durante umas horas. Fiquei absolutamente fascinada, quase que hipnotizada.

Para além do estudo dos primatas (não humanos), também tiveste ou tens um projecto de recuperação de chimpanzés na Guiné e tornaste-te conservacionista! Passados 6 anos de teres sido entrevistada pelo Carlos Vaz Marques (Pessoal e Transmissível – TSF) pergunto se é cada vez mais pertinente os primatólogos serem conservacionistas, ou se tem havido progressos quanto à não extinção dos animais?

Defendo que é impossível estudar primatas, sejam de que espécie forem, sem pensar que muitas deles estão em risco de extinção. O cientista, tal como todos os outros, tem obrigação de se preocupar com as outras espécies, espécies essas que se encontram ameaçadas devido ao sistema dominante que reina no planeta, o sistema capitalista. Um cientista tem obrigação de lutar para que no futuro estas espécies não existam apenas um cativeiro. Um mundo de cativos e cativeiros não pode deixar cientistas indiferentes, antes pelo contrário. O cientista pode, enquanto ser humano, tomar partido pelos mais fracos, sejam eles de que espécie forem. Mais do que conservacionista que visa sobretudo mitigar a degradação dos ecossistemas do planeta, defendo que o que há que combater é o sistema que permite essa degradação. Isso sim, implicaria mudanças radicalmente positivas para o futuro de todos nós, para o das restantes espécies e para o próprio planeta.

Para além de concluíres que os chimpanzés também criam, fazem política e são racionais, o que aprendeste mais com eles e o que é que te faz aprender mais sobre eles?

Os chimpanzés são uma espécie muito interessante, sobretudo os bonobos. São o que nós apelidamos de modelo “peace and love” ou “make love, not war”. Os bonobos, uma espécie de chimpanzés que só existe na zona central africana (antigo Zaíre) e que resolve os seus problemas, os seus conflitos, através do sexo. Vivem em comunidades multi-macho/multi-fêmea onde as fêmeas dominam hierarquicamente os machos, ou seja, têm prioridade de acesso a todos os recursos. São uma espécie extremamente pacífica quando comparada com outros chimpanzés. Podemos aprender muito com os bonobos. Mas também podemos aprender muito com os outros chimpanzés. Os chimpanzés ajudam-nos a entender melhor a espécie humana. E quem diz os chimpanzés, diz outras das espécies de primatas que estudo.

Como é possível reduzir ou pôr um fim ao tráfico de animais e à pressão demográfica humana? E se estes eram dois principais pontos para a extinção dos primatas não humanos no seu habitat natural, questiono-te se até então têm conseguido travar este problema gravíssimo.

Não se tem conseguido travar muito. Infelizmente o estado de depredação a que as florestas e restantes ecossistemas estão sujeitos ilustra bem a natureza voraz do sistema económico dominante em que vivemos. Enquanto este sistema se mantiver, devido à natureza do mesmo, que busca o lucro e a acumulação de capital, todas as medidas que possamos tentar implementar são acima de tudo de mitigação do problema e nunca de resolução do mesmo. Nada neste sistema é sustentável. Para que isso fosse assim, apenas se utilizariam os recursos necessários deixando os restantes para as gerações futuras. Ora o objectivo do sistema não é esse mas sim o da acumulação de capital pelo que quanto mais recursos se explorarem, melhor. Enumeras espécies se têm extinguido nos últimos anos. Por exemplo, no caso dos primatas, é escandaloso o que se passa com os orangotangos. Aquilo que se denomina de biocombustível ou “combustível verde” tem sido o mote para destruir as últimas manchas de floresta que ainda existiam na Indonésia. Estas manchas florestais albergavam as diminutas populações de orangotangos e agora estão a ser destruídas para plantação de palmares que depois produzem o óleo de palma. Como está visto, este combustível de verde não tem nada e veio acelerar o desaparecimento dos orangotangos e das florestas. Adicionalmente, as populações humanas que viviam dos recursos que existiam nestas ilhas de floresta perderam o seu sustento e tiveram que abandonar os sítios onde viviam. Estão hoje na miséria pois se anteriormente viviam em interdependência do ecossistema que lhes dava o seu sustento, agora, esse ecossistema já não existe: foi arrasado por gigantescas plantações de palmeiras. As grandes companhias que vendem este combustível, não contentes com os lucros escandalosos que já obtiveram, resolveram avançar para o continente africano para continuar o seu plano de destruição de florestas para plantar palmares. Podemos organizar boicotes a estas companhias, não comprando os seus produtos: desde o “bio”combustível até todos os produtos que usam óleo de palma em algum ponto da cadeia de produção (e não são poucos: desde produtos alimentares a produtos de higiene como por exemplo champôs). Pontualmente há campanhas que visam boicotar determinados produtos e que têm resultado em contextos específicos. Mas isso não impede estes grande grupos de irem parasitar um outro sítio qualquer e outra população qualquer. Concluíndo, o boicote, embora possa resultar pontualmente, não muda a natureza do sistema. É o sistema que é preciso mudar.

Numa apresentação sobre uma entrevista que concedeste à TSF em 2005, dizias que em 20 anos os chimpanzés poderão só existir nos Jardins Zoológicos! A gravidade e a preocupação mantêm-se? Como se pode alertar e consciencializar o povo para o grave rumo que estamos a permitir e que o mundo está a levar?

Claro que se mantêm, aliás, mais actual do que nunca. As projecções que têm sido publicadas não são de facto animadoras. A estas projecções juntam-se as notícias do terreno onde assistimos a destruição e mais destruição: é a desflorestação pela indústria madeireira, é a desflorestação para a agricultura, é a desflorestação para a plantação de palmares e outras monoculturas de dimensões gigantes, é o bushmeat. A forma como o sistema económico dominante olha para os outros animais é sempre para obtenção do lucro, como é aliás, a forma como olha para o próprio ser humano: como um recurso explorável e simultaneamente descartável. O capitalismo vê o ser humano e as restantes espécies como meras mercadorias. Enquanto esta visão não mudar, será difícil fazer frente a este tipo de devastação. A solução está na mudança de sistema, na mudança de políticas. Não bastam políticas de mitigação ou atenuação do problema. É preciso resolver de facto o problema e isso implica mudar o próprio sistema. Ou seja, por exemplo, podemos assinar petições, podemos organizar boicotes a determinados grupos económicos mas nunca esquecendo que isso são medidas que não resolvem o problema ou seja, não mudam a natureza do sistema que é de exploração. Para resolvermos é preciso mudar de sistema. Temos que lutar por um mundo mais solidário, mais igualitário, mais humano. Claro que muitos cruzam os braços: afinal é muito mais fácil dizer que isso não é possível do que lutar toda uma vida para que assim seja.

És uma das poucas pessoas comunistas que não vê o Estaline como o sanguinário, mas como um grande camarada e o que desenvolveu um enorme trabalho na URSS, dando continuidade ao trabalho de Lenine. Qual a razão para pensares assim?

Em primeiro lugar não acredito que seja dos poucos comunistas que tenha essa ideia que descreves do Staline. O Staline teve um papel muito importante na derrota do nazi-fascismo. Isso é inegável. Quem conhece a história não apenas da revolução russa mas da II Guerra Mundial, quem lê e não se limita a repetir o que dizem os media propriedade dos grande grupos económicos sabe que o Staline teve esse papel incontornável. Se o Staline era perfeito? Claro que não (aliás não existe tal ser humano!). Se cometeu erros? Seguramente que os cometeu e muitos. O Staline esteve muitos anos à frente de um colectivo, o da ex-URSS que antes e depois da II GM delineou planos quinquenais responsáveis por aumentos de produção à volta dos 18% ao ano, números esses nunca conseguidos em mais lado nenhum e em mais sistema nenhum. Staline é bastante atacado, sobretudo pela direita ou por aqueles que dizendo-se de esquerda se limitam a repetir percepções falsas sobre este estadista e que são, algumas delas, baseadas nas mentiras de Goebbles e companhia e que foram mais tarde propagadas via conservadores nos EUA (na altura da chamada guerra fria), usando professores de Harvard para legitimar as mentiras nazis contra Staline, chegando estes inclusive a compará-lo com Hitler. Que disparate! Mas há milhares que repetem a cassete dos media dominantes como se de verdades absolutas se tratasse....e nunca leram de facto um único livro sobre a II Guerra Mundial, ou sobre Staline. Ou se leram foi o tal que “legitimou cientificamente” a mentira com o carimbo de Harvard. Adicionalmente, o papel que Staline teve na reforma agrária na ex-URSS foi igualmente importante. Staline é atacado exactamente por tudo isto: por ter posto em prática muitos dos ensinamentos de Lenine, porque provou que o capitalismo era uma farsa.

O que te levou a estudar a vida e obra de Estaline e ver o que era certo e errado? Na tua opinião, por que é que ainda há muitos comunistas a acreditarem que Estaline foi igual a Hitler?

Eu não estudei a vida e a obra do Staline. Li alguns livros sobre o assunto tal como li outros livros e artigos sobre outras pessoas. Isso não faz de mim especialista sobre o assunto. Tenho muitíssimo que aprender; aliás nunca terei tempo suficiente para estudar tudo o que me interessa, tudo o que me intriga, tudo o que me apaixona. Mas enquanto comunista tenho obrigação de me informar, de estudar e de não me limitar a repetir o que dizem os media dominantes. Sei muito bem o que me disseram os media dominantes sobre, por exemplo, os acontecimentos na Ucrânia com os pseudo-democratas “maidanos”. O chamado sector direito, o Svoboda e a sua adoração por Hitler foi algo que descobri através de meios de comunicação fora do “mainstream”. Se não acreditei no que os media dominantes vomitavam hora após hora sobre estes pretensos democratas “maidanos”, porque acreditaria no que dizem ou disseram sobre Staline (ou outro comunista qualquer)? Isso é um contra-senso. O PCP e os militantes comunistas estiveram e têm estado na linha da frente de denúncia sobre este ressurgimento do nazismo. Aliás, e é importante que isto seja dito. tal como estiveram na linha da frente contra a ditadura fascista de Salazar e Caetano. Quando Salazar apela à chamada União Nacional dando ordens para dissolver todos os partidos políticos, o PCP foi o único partido que não se dissolveu e passou a estar organizado clandestinamente e a combater activamente o fascismo. Muitos camaradas nossos tombaram nas prisões fascistas sob tortura da PIDE, no campo de concentração do Tarrafal, porque nunca capitularam ou venderam princípios e ideais.

O que tens aprendido com a Festa do Avante? Qual foi a contribuição desta Festa para o ser que és?

A Festa do Avante é como uma grande comunidade de camaradas e amigos onde a fraternidade, camaradagem e amizade são a regra. No final da década de 80 e na década de 90 passava os meus meses de férias na construção da Festa. A trabalhar gratuitamente como todos nós, a trabalhar para o nosso colectivo que é o Partido. Esse ideal de camaradagem, de solidariedade, de construção e que é simultaneamente de partilha de experiências é algo que só ocorre em Portugal num partido como o PCP. O nosso Partido é o partido da luta pelo sonho e pela construção de um mundo melhor. Na Festa do Avante! respiramos e vivemos o sonho no dia-a-dia. E essa é uma grande experiência de aprendizagem. Eu, tal como todos os meus camaradas, somos também o resultado dessa experiência, dessa partilha.

O teu pai terá tido, certamente, alguma (ou muita) influência para te tornares comunista, mas o que é que te fez verdadeiramente seguir esse caminho?

O meu pai nunca me disse onde votar ou que opção política tomar. Sempre fui livre de fazer as minhas escolhas. Claro que ser filha de alguém que lutou na clandestinidade e que sofreu as torturas da PIDE não podia deixar de influenciar as minhas escolhas e o meu caminho. E quem diz o meu pai diz outros familiares meus que tiveram percursos de resistência ao fascismo, alguns mais acesos que outros. Mesmo tendo 2 ou 3 anos, a luta de resistência ao fascismo marcou-me profundamente e teve um papel determinante nas minhas escolhas políticas. Há coisas que não se esquecem....

O que tens aprendido com essa tua opção, em que é que ela te complementa e de que forma é que pode contribuir para um presente e futuro mais digno, justo, libertário?

Ser comunista é motivo de orgulho. Implica perceber que o mundo em que vivemos – com explorados e exploradores – não é algo que faça parte da natureza humana, antes pelo contrário. O ser humano tem respirado exploração desde o Neolítico com a agricultura, a produção de excedentes e a limitação de acesso aos mesmos de milhões por um punhado. O feudalismo continuou essa exploração que obviamente não parou com a revolução industrial. Mas se olharmos para comunidades por exemplo de caçadores-recolectores, sabemos que estamos perante sociedades igualitárias, solidárias e coesas. Nessas sociedades não há exploração do homem pelo homem. Tal como durante décadas a sociedade soviética foi eminentemente mais justa e solidária que qualquer sociedade capitalista à face da terra. A ex-URSS apresentou conquistas do ponto de vista económico, social, científico (entre outras dimensões) que não foram igualadas por mais nenhum sistema. E naturalmente também tinha os seus problemas. Sabemos que é possível um mundo melhor. Enquanto vivermos num mundo onde uns quantos têm tudo e milhões e milhões nada têm, haverá comunistas na linha da frente a combater as injustiças. Enquanto vivermos num mundo onde milhões morrem à fome enquanto outros às vezes até destróem alimentos por causa de quotas de produção que não podem ser ultrapassadas para não afectar essa entidade chamada de “mercado”, haverá razões de sobra para existirem comunistas. Os comunistas têm estado presentes e estarão no combate à exploração e às injustiças. Ser comunista é também motivo de alegria porque sabemos que o nosso sonho sairá vitorioso. É uma questão de tempo. O ideal comunista é o mais bonito de todos e por isso também é invencível.

Como vês a situação dos bolseiros universitários e investigadores, da escola pública, universitária e dos respectivos alunos?

Em primeiro lugar os bolseiros universitários deveriam ser trabalhadores científicos pertencentes aos quadros das instituições onde trabalham ao invés de terem o estatuto de “bolseiro”. A grande maioria dos bolseiros assegura funções fundamentais nas universidades e unidade de investigação e desenvolvimento, funções essas que deveriam ser cumpridas por trabalhadores que pertencessem aos quadros. O mesmo é válido para os investigadores, para os Ciência. Quanto à escola pública, o seu plano de desmantelamento – tal como o do Serviço Nacional de Saúde e outros serviços públicos – teve início com a contra-revolução e desde aí que não tem parado. Enquanto professora estou em contacto com uma realidade indesmentível: há cada vez mais estudantes que não conseguem pagar propinas, que não conseguem pagar um quarto, que não conseguem comprar os livros que necessitam, que não têm dinheiro para os transportes e muitas vezes nem para se alimentarem decentemente. Hoje em muitas faculdades vemos milhares de estudantes, professores e funcionários que levam tupperwares com comida para se conseguirem manter. Esta é uma realidade indesmentível. Podemos ouvir na TV os ministros da república a debitarem que o país está melhor, que ninguém deixa de estudar por falta de recursos ou que não têm conhecimento de estudantes que desistam da faculdade por falta de dinheiro. É uma mentira descarada. Quem está nas escolas sabe-o e contacta com essa realidade todos os dias. O que decide hoje a permanência no ensino são as notas...mas são as notas da carteira e não as classificações. O direito ao Ensino – tal como à saúde – está claro na nossa Constituição. Mas desde que se iniciou o processo contra-revolucionário com o governo de Mário Soares que temos vindo a assistir progressiva e gradualmente à destruição do ensino público, temos assistido a reformas das carreiras docentes que cada vez mais transformam os professores em administrativos, reformas que fragilizam a qualidade do ensino como por exemplo Bolonha, reformas que tornam as decisões dos órgãos de gestão cada vez mais concentradas em vez de participadas. Temos uma gestão das universidades que é “presidencialista”: cargos unipessoais de presidentes ou directores, e onde muitas vezes os Conselhos Pedagógicos e Científicos estão subordinados a processos administrativos e cada vez menos participados. Isto é a subversão não apenas dos princípios da escola pública como da escola democrática. Cada reforma que é implementada é pior que a anterior. Neste momento quem manda nas universidades são entidades exteriores à mesma como o “mercado”. Dizem que as universidades têm que ouvir o “mercado”. Ora não pode ser o dinheiro a decidir quais as áreas científicas que se desenvolvem. Se assim fosse só haveria dinheiro para as áreas científicas que trazem “negócios” e dinheiro: por exemplo a indústria bio-farmacêutica. Mas é o que se passa nos dias de hoje, e mesmo nesta área, que não existam dúvidas: a dotação de fundos para investigação por exemplo ao nível de patologias já é comandada pelo dinheiro, pelas possibilidades de acumulação de capital. A dotação de fundos para malária ou para doenças como Alzheimer é escandalosamente diferente do ponto de vista dos montantes investidos. A resposta é clara: a malária é uma doença que existe sobretudo em contextos de grande pobreza e por isso essas populações não têm dinheiro para pagar os medicamentos. O mesmo já não se pode dizer do exemplo do Alzheimer. Isto é desumano, é inqualificável. Isto é o capitalismo, é o mercado a funcionar. O “mercado” dentro das universidades tem implicado a presença de inúmeros banqueiros em conselhos da universidade com poder decisório. A universidade não precisa deles. Então os banqueiros, esses “homens de negócios” que especularam financeiramente e nos levaram à ruína agora vêm ensinar o quê às universidades? Não queremos ser especialistas em roubo e em gestão danosa. E tudo isto tem sido permitido porque os sucessivos governos ampararam e amparam os golpes destes parasitas. Afinal, os sucessivos governos PS, PSD com ou sem CDS que há 38 anos gerem os destinos do nosso país são os representantes políticos de quem tem dinheiro e não do povo. O que assistimos neste preciso momento é aos últimos dias da escola pública e democrática. E se não fossem os protestos esse processo de destruição já estaria concluído. Há que lutar para não permitir que tal aconteça. Todas as conquistas que quem trabalha e vive honestamente do trabalho foram sempre conseguidas com muita luta. Nada nos foi oferecido, antes pelo contrário: foi sempre tudo arrancado a ferros. Essa tem sido a história da exploração. Cada vez mais voltamos ao antigamente: onde só os filhos dos ricos é que estudavam e isso não podemos permitir. Hoje vivemos na ditadura do grande capital. O nosso país de democrático cada vez tem menos.

Depois de estudares e conheceres o ser humano e o percurso de como chegámos até aqui, não te desilude que, devido ao capitalismo e a sucessivas guerras egoístas que impõem a pobreza, a miséria e o fascismo, se esteja a deitar fora o desenvolvimento, a evolução e o progresso?

Desilusões fazem parte do percurso de todos nós. Se me perguntassem na altura do fim da ex-União Soviética se seria possível termos uma América Latina mais progressista e anti-imperialista, se calhar iria dizer que seria difícil. Mas a história move-se. Se há coisa que sabemos é que a realidade é mutável. E outra coisa que os comunistas sabem é que cruzar os braços não é solução pois desistir de lutar é desistir de lutar por um mundo mais justo. Podemos até perder batalhas, mas os comunistas estão seguros que não vão perder a guerra contra a exploração e as injustiças. Isso é certo. É uma questão de tempo.

Como vês, por um lado, a situação da Ucrânia e da Venezuela e, por outro lado, a situação dos países afectados pela Troika/FMI/BCE?

Venezuela e Ucrânia são contextos muito diferentes mas onde o imperialismo está a tentar intervir e por isso são situações simultaneamente semelhantes. Enquanto na Venezuela, país progressista e que alcançou grandes realizações sociais e económicas nos últimos anos como a diminuição drástica da pobreza e da pobreza extrema, os grandes avanços de ponto de vista da saúde e da educação, na Ucrânia havia (e há) uma situação de acentuada degradação da situação económica e social, aliás como em praticamente todos os países que pertenciam ao chamado bloco de leste. A Venezuela tem o azar de ter a maior reserva de petróleo do mundo e isso faz com que fique permanentemente debaixo da mira do imperialismo. O método é sempre o mesmo: se o capital não consegue eleger os seus representantes políticos via sufrágio universal, o que faz é criar condições para o surgimento de golpes de estado, sejam em versão “soft” ou “hard core”. Na Venezuela continua em curso um espécie de golpe de estado “light” onde o imperialismo já investiu milhões e milhões de dólares. O povo tem vindo para a rua manifestar-se a favor do governo democraticamente eleito. Na verdade, nas últimas eleições (poder local) foi diminuto o nº de autarquias que não votaram no partido do Presidente Maduro. Na Ucrânia tínhamos um governo de corruptos democraticamente eleito e que foram substituídos por um banqueiro, igualmente corrupto mas posto no poder sem qualquer sufrágio universal. Mas há um problema, de entre muitos, é que este banqueiro corrupto tem como seu braço direito o Svoboda, o sector direito, os nazis. Os nazis estão à frente de vários ministérios, inclusive o da Defesa. O que se passa na Ucrânia é o choque de dois blocos capitalistas: o de Obama e UE e o de Putin. Se houver que tomar partidos, a opção é mais que clara e ela nunca envolverá os nazis...mas nunca esquecendo que Putin, apesar de fazer frente aos EUA e à UE tem uma natureza igual àqueles que se opõe. Mas apoiar ou tomar partido da extrema-direita e dos nazis só porque não gosto do Putin e do que ele representa parece-me ilógico. Quanto aos países que estão sob o jugo da troika, há situações diversas embora em todos eles quem esteja no poder sejam representantes políticos do capital. Quer na Grécia, quer em Itália, quer em Portugal ou Espanha passeiam-se pelas cadeiras governativas serventuários da Goldman Sachs, Banco Mundial ou FMI: desde Draghi, a Carlos Moedas e Vitor Gaspar, são funcionários do capital...aliás nunca o deixaram de ser. Costumo dizer que a Goldman Sachs abriu uma sucursal na Europa que são os próprios governos europeus. É como meter uma raposa dentro de uma capoeira. O mesmo se pode afirmar de muitos que estão no BCE. São parasitas que se vendem, vendem o seu país e os seus conterrâneos ao grande capital. A UE é uma estratégia de dominância que formaliza a exploração e opressão dos países chamados “periféricos” e mais fracos aos países exploradores como a Alemanha. Tal como o Euro nos veio retirar independência e controlo sobre aspectos fundamentais da nossa economia, algo para o qual o PCP se cansou de alertar mas na altura foi chamado de uma espécie de “velho do Restelo”. Hoje está à vista de todos o resultado. Por isso o PCP diz que esta Europa não é sequer reformável. O FMI e o BM são estruturas de dominância e de exploração imperialista. Foram corridos – e bem – da América Latina e agora buscam novos sítios e novos povos para parasitar. E os parasitas que ocupam as cadeiras do FMI e do BM, desde a Sra Lagarde até muitos outros cometeram aquilo que considero terem sido crimes económicos contra os seus próprios países, sendo que alguns, para além disso, estão a braços com a justiça nos seus próprios países por processos pouco transparentes e negócios corruptos. A Sra. Lagarde é um desses personagens. E vem esta corja armar-se em “especial de corrida” querendo dar-nos lições de como gerir um país e as suas riquezas....que moralidade tem? O que eles estão aqui a fazer é a roubar o povo, a roubar o país e os seus recursos, com a conivência da troika nativa: PS, PSD e CDS. Aliás, como disse o deputado do PCP, João Oliveira, comportam-se como “gestores de negócios” da troika estrangeira e dos interesses da mesma aqui em Portugal. É de facto um espectáculo degradante ver o ponto a que chegaram estes partidos da troika nativa: a forma como pisam a Constituição, o seu povo e o seu país. De facto repugnância é a única palavra que se me ocorre para classificar esses “organismos”. Vendem-se por “tuta e meia”. Eu costumo chamar-lhes prostitutos, prostitutos de ideais, de princípios, de dignidade. São bem piores do que aqueles que vendem o corpo para pagar as contas. Depois de se venderem princípios e dignidade, de vender a própria pátria, já não resta mais nada. Ainda ontem, 16 de Abril, o PCP apresentou na AR a proposta de renegociação da dívida - coisa que por exemplo o PS veio dizer para os jornais já há umas semanas que era a solução – e adivinhem como votou o PS? Pois, votou contra. Aliás é importante dizer que desde 2011 que o PCP defende que há que renegociar a dívida, os seus montantes, juros, prazos, e há parte da dívida que é ilegítima e que por isso não deve ser paga. Na altura o PCP foi atacado por praticamente todas as forças políticas devido á sua posição. Hoje anda para aí uma coisa abundantemente difundida chamada de “manifesto dos 70” (ou dos 74, sei lá) que defende o mesmo: a renegociação da dívida. Não defende a renegociação no mesmo plano que o PCP defende, pois continuam a defender que exista uma subjugação de Portugal às estruturas de agressão como o FMI, BM e a UE. O PCP defende que as pessoas e o país estão primeiro que essa coisa chamada de “mercado” que parece que tem vontade própria e toma decisões. De qualquer modo, para quem dizia que as nossas propostas eram irrealistas..... Está nas mãos do povo português libertar-se das amarras que nos estão a tentar impor. Tal como está nas mãos dos restantes povos que estão na mesma situação, mudar o seu destino. O destino é aquilo que fizermos dele. É o povo que constrói o seu próprio destino. Quando as pessoas se aperceberem disso e da força que tem, as coisas vão ser diferentes.

No Facebook fizeste um comentário numa das publicações sobre a presença de uma personalidade importante da política europeia a “Sra. Excelentíssima” Lagarde. Respondias-me sobre o facto de dizer que não houve justiça no pós-revolução dos Cravos e dizias “Pedro, estamos sempre a aprender. Já aprendemos muito com o 25 de Abril. No novo faremos melhor.” O que é que tens aprendido com o 25 de Abril e com os sucessivos erros? Na tua perspectiva é possível fazer-se uma nova revolução? Ou conseguir-se-á finalmente cumprir a Revolução dos Cravos?

Abril está por cumprir pois teve aspectos inacabados. Tal como muitas das conquistas de Abril começaram a ser atacadas logo na contra-revolução e por isso hoje são algo distante. Aqueles que atacam as conquistas de Abril, são os mesmos que em Abril foram obrigados a serem “democratas” pois até aí sempre tinham apoiado o fascismo. São os mesmos que estiveram com o fascismo até dia 24 e que imediatamente apoiaram a contra-revolução. Embora a nossa Constituição já não seja a de 1976 (foi desfigurada pelos partidos da troika nativa), trata-se ainda de um texto progressista e de grande humanidade e que ainda espelha o que foram as conquistas e o espírito de Abril. E também é por isso que mesmo não a cumprindo, este poder político que está à frente dos destinos do país teima em passar a cassete que é preciso mudar a Constituição. Sabemos bem porquê. É um ajuste de contas com cheiro a bafio. Depois vêm dizer que o texto é “ideológico”....como se o que eles defendem não o fosse. Querem tentar enganar as pessoas vestindo as suas opções ideológicas de “tecnicidade”. São tudo menos isso: as suas opções e escolhas políticas não são pelos explorados e pelos oprimidos, antes pelo contrário. Roubam direitos às pessoas – direitos muitos deles conseguidos com o 25 de Abril (salário mínimo nacional, serviço nacional de saúde, educação gratuita, direitos laborais, subsídios de férias e natal, dias de férias, etc) e depois vêm dizer-nos que se preocupam com os mais desfavorecidos. Roubam a dignidade às pessoas através de políticas que facilitam o despedimento e depois organizam galas e eventos de caridade onde choram lágrimas de crocodilo pelos “pobrezinhos” (que eles próprios criaram). Roubam direitos às pessoas e obrigam-nas a andar de mão estendida a mendigar por um pedaço de pão. Que grande exercício de hipocrisia e cinismo fecharem centros de saúde, maternidades, hospitais, escolas, cantinas, favorecerem os despedimentos dificultando a vida às famílias que depois perdem tectos, perdem até a capacidade de alimentar os seus filhos e depois vêm dizer que estão “preocupados com os portugueses”. Isto é um insulto à inteligência das pessoas. Alguns têm a desfaçatez de afirmar que “o país está melhor”...como se o país não fossem as pessoas! O deputado do PCP Miguel Tiago caracterizou muito bem o que significava dizer que o país estava melhor ao referir que o país dos ministros da república é o da banca, dos lucros, da opulência obscena e da economia de casino e não o de quem vive do trabalho. Está nas mãos do povo cumprir Abril.

Que futuro vês para este País e para as tuas filhas?

Não deixo de analisar o que se passa presentemente no nosso país e o que se adivinha para um futuro a curto e médio prazo e de facto a situação é muito má. Com este (des)governo à frente dos destinos do nosso país, o que podemos esperar é que a situação seja cada vez pior. Mas que não existam ilusões: com o PS não vai ser diferente. Andamos na dança das cadeiras há 38 anos e o slogan é sempre o mesmo: vira o disco e toca o mesmo, cada um pior que o outro pois vão-se aprofundando os ataques ás conquistas de Abril. E cada governo que vier será pior que o anterior uma vez que cria condições para que o seguinte avance no roubo das conquistas de Abril. Mas os comunistas são eternos optimistas. Os comunistas estão convictos que é possível um mundo melhor, sem explorados e oprimidos. É por isso que lutamos. Como disse há pouco, sabemos que é uma questão de tempo. Não quero que as minhas filhas olhem para mim e se interroguem porque não lutei pelos meus direitos e por uma vida melhor, sobretudo sabendo que ao não lutar, estava também a deixar um mundo pior para elas. Quero que as minhas filhas se orgulhem da sua mãe. Quero ensinar às minhas filhas aquilo que os meus pais me ensinaram a mim: a importância de ter dignidade, de ter princípios e ideais. A importância de lutar por um mundo mais justo, mais solidário. A importância de estar do lado de quem menos tem e de agir em consonância, querendo transformar o mundo.

Tens alguma história gostasses de nos contar sobre as tuas expedições/aventuras ou outra?

Embora tenha vivido coisas sessões de trabalho de campo muito positivas e outras muito negativas, não há nenhuma em particular que queira destacar. Acho que o que importava ser dito, já o está: cada um que siga a sua paixão independentemente do que outros possam dizer. Todos os caminhos e todas as escolhas nos colocam desafios, dificuldades. A diferença entre as pessoas está entre aqueles que desistem dos seus sonhos e aqueles que não abdicam dos mesmos.

Quais são os teus sonhos para Portugal?

A aplicação do programa do PCP para o nosso país. Sei que viveríamos num Portugal mais humano, mais justo, que se preocupava com as pessoas e não com os bancos. Um Portugal onde existe uma economia mista, com sectores estratégicos na mão do Estado, onde todos tenham direito à educação gratuita de qualidade nos vários níveis de ensino, onde todos tenham acesso á saúde e à justiça, independentemente da sua condição económica. Um país que tem nas suas mãos o seu próprio destino e não é controlado por estrangeiros, um país onde o trabalho não é explorado e quem trabalha recebe um valor justo pela sua mão de obra. Um país onde parasitas dos que falei há pouco não são beneficiados, não fogem à justiça, não são perdoados em milhões e milhões de impostos ou dívidas. Nesse Portugal a terra é de quem a trabalha. Actualmente grandes proprietários têm inúmeros benefícios e os pequenos e médios são prejudicados em detrimento dos primeiros. Isso não é aceitável. Hoje temos milhares de hectares de terra não cultivada, temos uma frota pesqueira que não existe, temos uma indústria que foi desmantelada. Tudo isso foi feito sob governos da troika nativa: ora PSD, ora PS, com o sem CDS. Chegou a altura de dar voz aos mais fracos e essa altura é Abril. É esse o Portugal com o qual sonho mas nunca deixando de lutar pela concretização desse mesmo sonho.

Obrigado pelo teu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras Entrevista por: Pedro Marques Correcção por: Fátima Simões

23 de Abril de 2014

22 de Abril de 2014

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