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Entrevista a Cláudia Sousa

Como surgiu o gosto pela leitura, pelas histórias e por contares histórias?

O gosto pela leitura surgiu do contacto com bons livros, durante a infância. Os livros eram presentes normais em dias de anos e Natal e eram ainda algo indispensável em períodos de férias e viagens. Para além disso cresci perto da Biblioteca Infanto-Juvenil, do Parque Aquilino Ribeiro, onde passei muito boas tardes. Claro que também há as histórias que ouvimos contar, sem que estejam escritas em lado nenhum. Essa vontade de ouvir contar foi semeada pela minha avó, numa altura em que ainda se usavam candeeiros a petróleo e velas, as falhas de electricidade eram frequentes e a televisão era bem diferente do que é hoje. Contar… ainda não me consegui assumir como contadora de histórias, embora conte histórias e faça leitura em voz alta, com a preocupação de ser uma boa profissional, desde que comecei a trabalhar, já lá vão… alguns anos J. Faz-me sentido, seja pela simples forma de ocupação de tempos livres, como na educação para os valores, para a arte, enfim educação para o ser.

O teu gosto pelas causas sociais surgiu como?

Pela educação que tive, primeiro no ambiente familiar e depois escolar. Tive uma avó bastante católica e esta coisa de fazer bem ao outro era uma característica que ela vivia e por isso ensinava com o exemplo. Houve uma fase que achei que queria ser Educadora de Infância e antes disso professora de Matemática, no 12º ano queria algo mais abrangente, que permitisse trabalhar com varias idades e que pudesse fazer diferença no que diz respeito ao social. A primeira opção foi Educação Social, no Instituto Politécnico do Porto. A média de entrada não era muito alta e, por isso, nem preenchi as opções todas no ingresso de candidatura ao ensino superior.

Como pensaste que ia ser o teu futuro e como ias contribuir para mudar de facto algumas coisas, ou ajudares a melhorar? Seres voluntária partiu daí?

Como pensei quando…? Já pensei tantas coisas e continuo a pensar. E se eu não arranjo trabalho e seu eu não for capaz…? Acho que são perguntas que se fazem quando se acaba um curso. Depois vais percebendo que a experiência é essencial para que possas fazer um bom trabalho, continuar a investigar e a procurar ensinamentos nos livros, nos colegas, no trabalho que outros fazem. Somos sem dúvida um projecto de investigação-acção constante, mesmo quando estamos sem trabalho e isso é tudo o que eu sei sobre o futuro.

Ser voluntária…? Não sei onde foste buscar essa ideia. O voluntariado e o associativismo não são acções muito presentes na minha vida. O facto de ter engravidado no último ano do curso, de ter começado logo a trabalhar e de ter tido o meu segundo filho quando a mais velha tinha três anos, fez com que o tempo não permitisse envolver-me em muito mais. O voluntariado surgiu sempre por causa de algo que eu gostava de fazer, porque alguém me fez um desafio interessante e me disse que não havia dinheiro para pagar ou porque simplesmente me pediram, pedem ajuda.

Por que é que achaste que não devias alterar a tua escrita em relação ao novo acordo?

Tu vives uma vida inteira com uma língua. Essa língua habita-te. Pensas, escreves, lês, falas nessa língua e percebes que não é o facto de teres essa língua que impede que possas compreender outras. Quando alguém te obriga a mudar essa tua característica mexe com o teu ser, e eu não quis aceitar que essa mudança me fosse imposta. Não podes entender daqui que não vá alterá-la amanhã. Quem sabe de português sabe que a nossa língua tem evoluído e sofrido alterações. Não sou contra essas mudanças e evoluções, nem sou contra nenhum esforço que permita aproximar povos. Há uma discussão imensa em relação a esta questão e uma data de argumentos contra e a favor. O meu argumento é bastante simples.

Estudaste sobre a velhice e o envelhecimento. O que aprendeste?

O meu curso tinha essa lacuna. Apreendíamos muito pouco sobre velhice e por isso quando chegou a altura de escolher o local de prática integrada, no último ano, escolhi um espaço de convívio de reformados. Ainda bem que o fiz porque depois disso a experiência com idosos em diferentes contextos tem sido frequente. O que aprendi… aprendi que é sempre preciso aprender mais, que se morre tanto melhor, quanto melhor se vive, que é possível ensinar novos truques a um velho cão e que, em termos sociais, valorizamos muito pouco a velhice, para além de uma data de outras coisas.

Gostavas de trabalhar com a terceira idade? O que te fez virar para as crianças?

Inicialmente, como já disse antes, estava mais virada para a educação formal, escolar, com crianças, mas no 12º ano já tinha uma perspectiva diferente, queria trabalhar com diferentes idades em processos distintos do escolar.

Tens uma paixão pela narração oral. Que influências é que tens tido para o teu trabalho? Que histórias é que gostas de contar?

A minha paixão pela narração oral tem mais a ver com o gostar de ouvir, do que o gostar de contar. Gostar de ouvir histórias, contos e gostar de ouvir as pessoas. Eu conto com livro quase sempre. E para este trabalho de contar tem sido essencial, por um lado o evento Palavras Andarilhas, onde tens contacto com contadores e com bons projectos, nacionais e estrangeiros, onde tens oficinas variadas que são experiências muito enriquecedoras e que devem ser escolhidas com especial cuidado, tendo em conta aquilo que achas precisar mais, e por outro o ler e o contar. Formação, estudo, experiência num ciclo que não acaba. O que gosto de contar é muito variado. Depende essencialmente de quem ouve, do momento em que contas, do motivo porque estás ali a contar. Gosto de coisas belas, mesmo quando falam de coisas feias ou tristes, como a guerra, a morte, a separação, a perca... Gosto de contar coisas belas, mesmo que sejam simples e sirvam apenas para passar o tempo e criar um momento bem-disposto.

As histórias que contas e os livros que lês, são escolhidos para passares alguma mensagem? Se sim, por que razão?

Desde logo que o livro e a leitura são tesouros. E depois disso, ou ao mesmo tempo do que isso, tudo o resto.

Que importância tem para ti a leitura, a literatura, os jogos, as animações, a música...? Concordas com a falta de promoção à cultura e à escola pública?

A cultura, a arte, o saber são essenciais, pilares básicos na formação do Homem, experiências que podem não te trazer matéria, mas que te fazem crescer enquanto pessoa, enquanto ser. Infelizmente, crescemos pouco e em muitas circunstâncias até ficamos mais pequenos. Às vezes é só isso que o poder decisivo quer que aconteça, que fiquemos cada vez mais pequeninos, “fechados em formigueiros”, espíritos atrofiados, sem esperança, sem sonhos, sem vontade…

O facto de teres ficado desempregada, foi um ponto essencial para não virares a cara a luta e teres feito já vários projectos?

Não, sinto que a luta tinha mais impacto quando trabalhava, tinha um significado diferente e que a quantidade de projectos e experiências era maior quando trabalhava. Sempre trabalhei para o estado, contínuo a trabalhar, embora esteja desempregada. O estado são as pessoas. Nunca deixei de dizer o que pensava em relação ao certo e ao errado, ao melhor e ao pior, por ter um patrão, um chefe, ou até uma equipa que tinha um comportamento diferente de mim. O desemprego permitiu-me dar mais atenção aos meus filhos, à família, permitiu-me ter mais tempo para investigar e fazer coisas que gosto, mas que não estão directamente relacionadas com a profissão. Trabalhei em projectos financiados e houve momentos que tive que dizer: “Estes projectos não existem para tu ou eu termos trabalho, estes projectos existem para que nós trabalhemos para os outros.” Quando isto é sentido como vocação, modo de vida, ou necessidade interna, não é o facto de teres um contrato, ou não, que muda a tua maneira de ser ou estar, ou que é sentido como essencial. Essencial é a necessidade que te faz fazer caminho, tentar, errar, aprender e continuar.

Essa mesma situação fez-te tentar melhorar cada vez mais e seres única no que fazes?

A situação de desemprego fez-me olhar para outras possibilidades, ser melhor do que eu própria foi a única fórmula de competição, que aprendi desde sempre e que tento praticar nos diferentes ambientes, como pessoa, como mãe, como profissional. Há coisas difíceis, há coisas que às vezes penso que nunca vou conseguir, há aspectos em que as falhas são recorrentes e aprendemos que são fragilidades a que temos que estar mais atentos ainda. Não quero ser única, quero ter pares, quero estar acompanhada, quero ver-me reflectida nos outros, gostava que outros se vissem reflectidos em mim. Sei que sou única, “biopsicossocialmente” falando, mas em relação a motivações e objectivos, gosto de sentir que são muitas as pessoas como eu.

Como vês a precariedade e o desemprego – embora não sejam positivos, tens conseguido promover trabalhos, mas como vês que pode ser a solução de muita gente nessa situação, por exemplo de artistas?

Basicamente já não os posso ver… É uma tristeza, um desespero, uma canseira. Nas cidades torna-se mais sufocante. Não há terra onde possas pensar em produzir, criar os teus alimentos. A fome é terrível. Numa sociedade que vive à volta do dinheiro, não o ter, torna-te dependente, da solidariedade, da caridade… Os lobos estão aí, à espera para atacar as presas. São pacientes, estão dispostos a esperar que batas no fundo para te deitarem os dentes e sugarem até onde lhes apetecer. Resistência, tenacidade e união…

A tua experiência no projecto da Cáritas foi gratificante?

Todos os trabalhos que tive foram gratificantes, mesmo os que não foram na minha área. Mas gratificante não é sinónimo de fácil, nem de felicidade. Foi doloroso muitas vezes. Apercebi-me que as instituições não sentem a necessidade de ser arrojadas, de arriscar processos novos e diferentes, trabalhei com uma equipa e, a partir de determinado momento, comecei a sentir que tínhamos poucos objectivos comuns. Senti-me sozinha e desesperada muitas vezes. Tentei agarrar-me às coisas para fazer, às pessoas, e foi daí que veio aquilo que agradeço ter recebido e que fez com que tivesse sido gratificante.

O facto de teres trabalhado com temas como o alcoolismo, o abandono escolar – e as suas prevenções –, a promoção de igualdade de oportunidades, e outros tantos temas que faziam parte do projecto, fizeram com que tomasses mais atenção a estes problemas?

Sim claro. Uma atenção que não vem do conhecimento teórico ou do pensar sobre o assunto, mas do contacto e vivência de tantos aspectos dessas problemáticas.

Que soluções vês para, por exemplo, prevenir o abandono escolar, o alcoolismo, para a reabilitação de cidadãos que vivem em habitações degradadas, ou mesmo na rua?

Na conjuntura actual parece ainda mais difícil ver, prevenir, reabilitar… Para haver resultados em qualquer uma das áreas sinto que é essencial mudar mentalidades. Não só de quem é “vítima” do problema, mas também das instituições que pretendem intervir nestas problemáticas e da própria sociedade. Tens uma taxa de desemprego enorme e em contínuo crescimento, tens impostos a aumentar, tens pais que deixam de pagar impostos para os filhos não passarem fome, tens um estado que corta bolsas de estudo aos filhos daqueles que não têm as contas com o fisco regularizadas e tens uma educação obrigatória até ao 12º ano. Parece evidente que só uma revolução pode levar a uma mudança significativa e tens políticos a dizer que ser revolucionário não é admissível… Parece que vivemos num paradoxo gigante.

Que importância teve este projecto para ti? Voltavas a repetir?

Não. Despedi-me enquanto técnica superior da Câmara Municipal, para ir trabalhar para este projecto. Na câmara disseram-me que não haveria possibilidade de me manterem, mas se calhar, se eu recorresse a um tribunal do trabalho, por tempo de serviço, já não me podiam mandar embora. Mas mesmo que tivesse ficado sem emprego, saía com uma indeminização e em 2005. Ficar sem emprego em 2005 e em 2011 é diferente. A experiência vivida conta muito e por ela voltava a repetir, mas em termos de currículo, para te ser sincera, acho que não veio acrescentar muito ao que já lá estava. O trabalho no terreno podia tê-lo feito na mesma, num projecto a solo. Acho que, financeiramente falando, seria mais viável em 2005 do que em 2011.

Essa vontade de aprender e partir para a acção têm sido importantes para o sucesso do teu trabalho? Se sim, é por isso que o tentas distribuir em formações para adultos e crianças, nas actividades e nos contos?

Sim, quando tu sentes que o teu papel é na interacção com o(s) outro(s) que faz diferença, o conhecimento teórico só faz sentido se te leva a fazer alguma coisa. Se depois da acção obténs resultados positivos percebes que é importante partilhar a informação e as ferramentas, para que outros possam usar, experimentar, praticar, evoluir.

A experiência de encenares, trabalhares em cinema de animação, expressão dramática, pintura e modelagem de balões, foram importantes para o teu processo de trabalho?

Educação social e animação socioeducativa é a minha formação académica de base. As experiências que referes foram praticamente todas aprendidas e desenvolvidas em contexto de trabalho e sim foram importantes, mas não são a essência do trabalho de um educador ou animador. Tinha um chefe que, quando era preciso tapar um buraco, dizia: “a Cláudia vai lá fazer uma animaçãozeca”. Acho que nunca conseguiu ver nada para além do óbvio…

Fazia actividades num lar de 3ª idade, e resolvi pedir aos idosos para fazerem umas pinturas em telas. Nesse dia apareceram-me na actividade os chefes todos e ainda a actividade não tinha terminado, já um deles me vinha transmitir: “Não volta a fazer isto”. Para eles era uma animaçãozeca, para mim era desafiar pessoas que nem nunca tinham pegado numa caneta, a fazer qualquer coisa diferente, era desafiar pessoas para quem o “Já não sou capaz” surge tantas vezes como justificação para não participar, a fazer uma coisa completamente nova. O essencial é invisível aos olhos… E quem trabalha com idosos sabe que não se desiste à primeira, nem se deixa de tentar porque eles dizem que não sabem, ou não são capazes… Neste trabalho de educação/ animação todas a técnicas e ferramentas são úteis.

Que frutos tens tirado dos teus trabalhos e o que gostarias de voltar a fazer?

Ai, o fruto que eu sinto mais falta neste momento é o ordenado J mas, apesar de ter sido essencial para a minha sobrevivência e a sobrevivência dos meus filhos e para o investimento em algumas áreas de que gosto muito, como a literatura para a infância, nunca foi o motivo. A experiência e contacto com os “grupos-alvo” é outro nível… Disso sinto muita falta, a sensação de que crescemos juntos nessa interacção, a sensação de que a tua presença e o teu trabalho faz diferença e que se aprende tanto em cada momento.

Como vês a situação em Portugal? O que pensas que se pode fazer?

A situação em Portugal e o que se pode fazer… já há pouco falei em revolução. Portugal é um país cheio de potencial, mas ao mesmo tempo cheio de pessoas pequeninas que se julgam enormes. E isto não tem a ver com nome, finanças, ou com cultura, conhecimento,… tem a ver com Ser. Pessoas, sem nível nenhum, ocupam os mais altos cargos, tomam as decisões mais importantes e nem se põem em causa, e isto em todas as áreas.

Quais são os teus sonhos para Portugal?

Que se cumpra…, que se eleve, que se distinga, porque é distinto, cheio de pessoas corajosas e arrojadas, que necessitam e merecem que os “poderes instituídos” lhes permitam fazer e ser.

Obrigado pelo teu tempo, votos de bom trabalho.

Obrigada eu pelo teu interesse, espero não ter desiludido.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques Correcção: Sílvia Dias

04 de Março de 2013

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