top of page

Entrevista ao Músico Daniel Catarino

1 - Vaca Sagrada de Tetas Espremidas já foi escrito há dois ou três anos e continua bastante actual. Quando escreveste e compuseste pensavas que em 2013 ainda estaria tão actual?

DC - Na verdade essa música tem já pelo menos 7 anos, e mentiria se dissesse que não suspeitava que estaria actual nesta altura. Claro que tinha alguma esperança que ela perdesse a sua pertinência, mas olhando pelo menos para os últimos dois mil anos, o tema dessa canção mantém-se uma constante.

2 - Quando é que sentiste necessidade de escrever letras sobre a actualidade e os problemas sociais?

Escrever sobre questões sociais não é diferente de escrever sobre qualquer outro tema, quando sinto que algo me afecta de forma positiva ou negativa, pessoal ou por associação, escrevo canções para lidar com isso. Tem-me sido impossível passar ao lado de questões sociais porque as sinto na pele.

3 - O facto de veres assim o país a definhar-se faz-te levantar todos os dias e querer cantar mais a Vaca Sagrada, e todos os outros temas que tens de protesto, como o tema Portugal (Terra dos Sonhos)?

Tenho sempre vontade de cantar temas que ainda considero relevantes, mas dá-me sobretudo vontade de fazer novas canções, de abordar realidades concretas e abstractas, de falar para quem me ouve e não para um público hipotético. Por outras palavras, não tenho nem nunca terei poder para "mudar o mundo", mas isso não quer dizer que me conforme. Posso sempre tentar inspirar-me e tentar inspirar quem me ouve, como também me inspiram os músicos que ouço. É o ciclo da vida. Mas para mim, as minhas canções são mais retratos da realidade que protesto, mas compreendo que se faça essa associação.

4 - Foi importante para ti compor a banda sonora do filme sobre o teu avô moleiro? Como surgiu a vontade de fazer este trabalho?

Foi uma prenda para a minha família que depois decidi divulgar, e em boa hora o fiz, porque surgiram logo propostas para recuperar o filme do Super 8 original. Descobri posteriormente que o filme tinha como banda sonora alguns temas clássicos, mas como só tinha uma cópia antiga em VHS,sempre o vi como filme mudo, e tinha vontade de o acompanhar com música original, contemporânea. Foi um projecto puramente familiar e à minha responsabilidade, até porque não queria deturpar a obra original, apenas dar-lhe uma visão diferente.

5 - Também tens outros trabalhos com bandas sonoras para a Nova Zelândia e para os Estados Unidos. Ficaste surpreendido com o convite que te fizeram?

Comecei por compor bandas sonoras para filmes que ainda não existiam, e tem-me surpreendido a quantidade de pedidos que recebo para integrar alguns desses temas em filmes pelo mundo fora. Compor bandas sonoras é um trabalho que adoro, e é uma grande satisfação saber que há filmes que utilizam temas meus em locais tão díspares como Itália, Colômbia, Taiwan, Nova Zelândia, França ou Estados Unidos. Espero que assim continue, e que um dia chegue uma proposta para um filme português.

6 - Diz-se que “de pequenino se torce o pepino”. Também tu começaste cedo a aprender a tocar viola, e os Alentejanos têm a tradição de cantar em coros. Isso contribuiu para que te tornasses músico e compositor?

Nunca participei em qualquer coro, mas toquei com alguns projectos de música popular desde os meus 11, 12 anos, que certamente me influenciaram. A nível de composição, acho que a música tradicional acaba por passar uma mensagem semelhante à do punk, por exemplo, a de que qualquer pessoa pode pegar num instrumento e fazer música. Nesse aspecto, acho que a música alentejana foi uma grande escola, sobretudo na quebra de barreiras psicológicas e na aceitação de que, para ser original, basta existir e ser genuíno naquilo que faço.

7 - Tem sido fácil viver da música?

Não. Embora a períodos o consiga, normalmente tenho deconciliar inúmeros trabalhos, mas não me posso queixar muito, as coisas vão avançando devagar.

8 - A digressão que fizeste no estrangeiro com os Uaninauei foi importante para poderem mostrar o que aqui se faz e falar-se sobre os problemas de Portugal e dos Portugueses?

(nós não fizemos uma digressão, apenas alguns concertos em Espanha, portanto penso que esta questão não se aplica).

9 - Estás agora a tocar com a banda Bicho do Mato, criada a partir de um convite do Tiago Pereira (MPAGDP). O facto de estares em várias bandas demonstra que queres ter experiências novas, colaborar com outras bandas e outros artistas? É por isso que fazes música?

Dá-me um gozo imenso tocar com diferentes pessoas, poder explorar vários estilos de música, ligar-me a ela de todas as formas que me agradarem. A música permite-me viajar pelo mundo, atravessar fronteiras e viajar com pessoas diferentes para cada sítio. No entanto, acho que não é esse o motivo principal porque faço música, gosto tanto de compor sozinho como em grupo, são processos diferentes e não consigo abdicar de nenhum. Faço música porque ela me completa, é nela que me consigo exprimir melhor. (retirei a parte de gravar com Uxu Kalhus porque o que se passa é que o guitarrista faz parte das duas bandas e eu fiz duas letras para esse disco deles, nós não gravámos com eles).

10 - O facto de no início teres pegado em coisas bizarras e vulgares para a música significa que ainda não está tudo feito, que ainda há muito a reinventar, a refazer e que há novas coisas a acontecer?

Tudo isso já foi feito por inúmeros artistas, para mim é mais uma questão de respeitar a ideia. O meu primeiro disco chama-se "Panorama de uma Vida Normal", e como o nome indica, pretendia mostrar o que era a minha vida habitual naquela altura. Vivia na casa dos meus pais, portanto era natural ouvir um aspirador ao fundo a interferir com a melodia, trabalhava ocasionalmente numa fábrica, por isso era habitual ouvirem-se sons de maquinaria pesada em funcionamento, passava horas na cozinha com a televisão ligada, ao mesmo tempo que tocava e escrevia, por isso era natural que surgissem algumas falas. A reinvenção tem de se aplicar em tudo, e as coisas novas estão sempre a acontecer, é só uma questão de as transportarmos para o que fazemos. No caso da arte, isso é ainda mais fácil.

11 - É importante não desvalorizarmos as coisas e os artistas que temos?

Naturalmente. E ainda mais importante é valorizar o que temos sem fazermos comparações com o que importamos. Os artistas complementam-se, não se anulam. Um bom ouvinte não se deve preocupar tanto com a origem da música, apenas se ela lhe agrada ou não. Só assim se assegura uma abertura demente total.

12 – Achas que devemos mostrar a importância de conhecermos as nossas raízes?

Sem dúvida, mas nunca ficar presos a elas, há que deixá-las crescer e estenderem-se pelos campos fora.

13 – O facto de teres tocado em bandas rock e heavy metal, de teres passado pelas músicas tradicionais e folk é o resultado de hoje em dia se beber de várias influências?

Não posso falar pelos outros, mas no meu percurso como músico, tive a oportunidade de tocar com gente de todas as áreas e estilos musicais, e percebi que todos têm o amor incondicional à música em comum. Quem ama a música tem sempre a porta aberta para ouvir, conhecer e partilhar influências.

14 - Cantar Abril em Maio é um projecto de canto livre onde estás inserido. É um projecto que vem ressuscitar o canto livre feito logo após a Revolução. Sentiste necessidade de integrar um projecto como este e cantar Zeca Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho?

Na realidade, participei apenas com temas originais, mas admiro a obra destes autores, são referências incontornáveis para mim. A magia destes projectos está no facto de serem únicos, irrepetíveis, e por isso, bastante apetecíveis. Estar em palco com amigos é sempre um prazer.

15 - É também a importância do que eles escrevem nas letras que te fez a ti e aos teus companheiros querer cantá-las, mostrá-las e realçá-las?

Esse evento aconteceu em celebração do Dia do Trabalhador, e como tal, eram escolhas óbvias para enaltecer os sacrifícios das pessoas que trabalham diariamente para se sustentar.

16 - E o que é que Abril e Maio significam para ti?

Significam conquistas já adquiridas que se devem relembrar, para nos inspirarem a alcançarmos novos objectivos, mas é importante não ficarmos presos a um passado que, como se vê, não foi suficiente para nos encaminhar no bom sentido.

17 - Para ti as músicas de protesto (aquilo que se chama cantigas de intervenção)fazem ainda mais sentido neste momento?

O protesto faz sempre sentido desde que traga consigo algum construtivismo, porque protestar é fácil, mas ser interventivo é uma coisa totalmente diferente. Sou culpado de, durante algum tempo, ter-me ocupado exclusivamente de apontar o dedo sem indicar soluções, o que chamaria de protesto. Hoje, gosto mais de pensar em intervenção, em dizer duas coisas boas por cada coisa má que aponto. Os tempos assim o exigem.

18 - Ouvires uma música tua na Argentina é um dever cumprido? Como vês a forma como se trata a música em Portugal e o facto de ainda não se valorizar em pleno o que é feito pelos portugueses?

É difícil falar dessas situações porque são completamente inesperadas, nunca pensei que seria ouvido na Argentina, na Nova Zelândia, em Taiwan, etc. Mais que objectivos, são pequenas gotas de carinho que vou recebendo e acumulando, que ajudam a amolecer o caminho nesta terra dura onde tudo é difícil ao cubo.

19 - Como vês a situação que Portugal atravessa? O que pensas que se pode fazer?

Para além do óbvio desgoverno de que somos vítimas há pelo menos 100 anos, a maior crise é de valores. Se temos um país subdesenvolvido, não é cortando na educação e na cultura que o vamos desenvolver. Custa-me olhar para as gerações já posteriores há minha e perceber que também eles estão sobre o efeito da indiferença, que é a pior das drogas. Olhar para o topo das audiências televisivas e ver o mesmo que há 30 anos, parar numa estação de serviço e ver o mato cheio de lixo, ouvir caloiros da universidade gritar por mais bebida e vê-los calados quando deviam reclamar osseus direitos, e pior - perceber que muitos deles nem sequer sabem que o podem fazer, que os direitos se conquistam, que as coisas mudam, que não há verdade hoje que não possa ser desmentida amanhã. O que devemos fazer é o contrário do que se está a fazer. Precisamos de uma educação mais exigente, de mais cultura e menos entretenimento, de deixar de tentar agradar a toda a gente, de perder o chico-espertismo que nos estraga o talento para o desenrascanço, de menos politiquice e mais humanismo, de menos ideologia e mais sentido prático. Tudo isto só se alcança com educação, civismo e cultura, e o que nós recebemos e as novas gerações continuam a receber é clubismo, partidarismo, eu contra ti, viva o Benfica, abaixo o CDS, o Sérgio vai sair do Big Brother, o Paulo Futre disse uma estupidez qualquer e arranja logo trabalho, a Maria traiu o Zé com o patrão e subiu na carreira, o Tony faz plágios e enche o Atlântico, o Sócrates leva o país à falência e vira comentador na televisão do estado, o presidente da Câmara come papéis incriminatórios e vai para director de uma multinacional, enfim...

20 - Quais são os teus sonhos para Portugal?

Que haja educação, civismo, inteligência, dedicação, liberdade e justiça.

Obrigado pelo teu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques Correcção: Fátima Simões

30 de Setembro de 2013

* "Sandshoes" e "Western Spaghetti" são lançados sob o pseudónimo Long Desert Cowboy, novamente pela Test Tube, e alguns dos seus temas são incluidos na banda sonora de curtas-metragens (Virga/Nova Zelândia e Truth in Transit/EUA).

30 de Setembro de 2013

Recent Posts 
bottom of page