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Entrevista A Vanessa Lopes




Entrevista A Vanessa Lopes - Activista pelas meninas e mulheres ciganas, mediadora cultural e Jornalista


Fez Missão na Guiné Bissau. Como foi essa experiência e o que aprendeu como missionária?


Sempre tive um desejo profundo de me dedicar a tempo inteiro como missionária. Dos 21 aos 23 anos larguei tudo para ser missionária a tempo inteiro. Deixei a minha casa alugada, que na altura ainda estava a valores razoáveis, quando voltei a procurar paguei o preço de a ter deixado. Larguei o meu emprego e todas as actividades onde estava envolvida. Mais tarde, por motivos de força maior tive que voltar a ter um emprego secular. Contudo, isso não me impediu de continuar com o propósito de servir a Deus, servindo os outros. Decidi fazer missão em África porque é um povo que está no meu coração. Assim que surgiu a oportunidade, imediatamente disse que sim ao desafio. Viajei com mais três amigos. Angariei fundos até ao dia da viagem. As passagens áreas estavam muito caras e além disso, existe muita burocracia associada.

Guiné-Bissau foi a melhor e a pior experiência da minha vida. Ninguém está preparado para lidar com tanta pobreza. Parece que viajamos para uma outra dimensão, para um outro planeta onde a informação e os recursos não chegam.

Como todos devem saber, a pobreza atinge 67% da população (dados de 2019). No pós pandemia estes números devem ter alterado para um cenário ainda mais preocupante.

As pessoas constroem casas por elas mesmas em qualquer lugar, não há água potável, não há electricidade e suprir a fome é um desafio diário. Simplesmente não existe saneamento básico. A educação é praticamente inexistente, principalmente nas mulheres. Cheguei a fazer 12 horas de viagens seguidas e a mudar de transporte mais de três vezes, em péssimas condições para chegar ao interior de Bissau. Falamos de um país onde as pessoas morrem diariamente com coisas simples, como por exemplo asma ou um ferimento devido a uma queda. Algo que nós tratamos e conseguimos superar em países desenvolvidos. O único hospital que aquele povo tem fica a 12 horas de viagem. Por essa razão, optam por curandeiros que vivem nas “tabankas” acabando por morrer depois. Um povo que vive do que a terra dá, vive sobrevivendo um dia de cada vez. A grande maioria não conhece outra realidade para além daquela. Assistir a uma realidade tão dura e vivê-la foi sem dúvida assustador, que custa a acreditar. Estive em Bissau na altura do ritual da circuncisão. As famílias mandam as crianças para o meio da floresta, completamente nus à mercê de todos os perigos que envolve estar numa floresta africana. O objectivo é sobreviver ao ritual, à passagem de meninos (as) para homens e mulheres.

Foi extremamente duro perceber que as crianças com as quais tinha estado no dia anterior, nunca mais voltaram.

Por outro lado, foi a melhor experiência porque pude ver de perto a generosidade e alegria deste povo. Aprendi com a simplicidade e gratidão de simplesmente ter o que comer a cada dia e acordar, estar viva. Aprendi que não precisamos de muito para estar bem e que a nossa perspectiva sobre a vida muda a forma como nos relacionamos com o mundo e com os outros. Que podemos viver gratos com um simples bom dia e um sorriso. Aprendi a ser mais grata. Muitos de nós somos felizes e não sabemos. Continuarei a fazer missões ao longo da minha vida e espero voltar a fazer disso a minha responsabilidade a tempo inteiro.


Como Formadora de professores em História e Cultura Cigana, de que forma acha que se pode mudar o paradigma do enorme desconhecimento da cultura cigana, da ciganofobia e do genocídio cigano?


Existe um profundo desconhecimento sobre a comunidade cigana. A história não é ensinada nas escolas e os alunos ciganos são tratados como se tivessem uma outra nacionalidade qualquer. A verdade é que a comunidade cigana está em Portugal há mais de 500 anos, ainda assim, somos considerados estrangeiros na nossa própria terra. Sempre foi algo que me deixou revoltada.

Pela experiência que tive na minha adolescência (que não foi boa) existe uma tendência de segregação e ignorância. Os docentes não sabem lidar com os alunos ciganos, nem com as suas famílias.

A forma que encontrei para lutar contra isso foi ensinar sobre as nossas origens. Com os alunos faço questão de lhes transmitir uma mensagem de esperança e de pertença. A missão é mostrar que eles têm valor e que podem ser tudo aquilo que quiserem.

Em relação aos professores ensino estratégias para que eles possam saber lidar com os alunos e os seus pais, e acima de tudo para que possam saber o porquê de se agir de certa e determinada forma. Nada melhor para resolver um problema do que saber qual é a raiz do mesmo. Não acredito que se possa mudar por completo o paradigma, mas acredito que podemos sempre fazer alguma coisa para melhorá-lo.


Trabalha como mediadora da Comunidade Cigana desde 2019. Como tem sido trabalhar como mediadora, numa altura em que as comunidades ciganas continuam a ser alvo de preconceito, discriminação e ciganofobia?


Mediação quer dizer que faço pontes. Se estivesse tudo bem e fosse fácil não precisaríamos de mediadores. Ou seja, vai ser sempre um processo complexo e as circunstâncias nunca vão ser as melhores. Mas é por isso que os mediadores existem.

Eu faço palestras em muitos locais. Se num auditório com 30 jovens eu conseguir mudar a vida de um, já valeu a pena. Não procuro grandes plateias e grande resultados. Procuro fazer o meu melhor com fé de que alguma coisa vai acontecer e que não semeio em terreno infértil. Aquilo que faço, acredito que dá muito fruto. Posso não ser eu a colher esses frutos, mas mais à frente, as gerações futuras haverá de ver esses resultados.

O preconceito, discriminação e ciganofobia combate-se com a informação e exemplo. Por isso luto por mais exemplos e boas referências para dentro da comunidade, bem como para a sociedade maioritária.


O que falta ainda fazer para acabar com esta violência sobre os ciganos?


Falta mais representatividade. Um dos grandes influenciadores na opinião pública é a comunicação social. A verdade é que quando se fala sobre ciganos na media, por norma, não são coisas boas. Esse tipo de postura vai alimentar um estereótipo negativo que já existe sobre a comunidade. É necessário começar a mostrar os bons exemplos na media para que a comunidade no geral não seja toda rotulada. Por outro lado, também tem que haver uma mudança dentro da comunidade. Tem que haver um esforço maior de inserção e partilha com a sociedade maioritária. A partir daí, facilitamos a aceitação e a mudança de ideias pré-concebidas. Se as pessoas nos conhecerem e tiverem a possibilidade de estar perto verão que somos pessoas normais, com vidas normais e dilemas como toda a gente. Maus exemplos existem em todo o lado. Basta existir o ser humano para que isso aconteça.


Que mudanças tem sentido desde que começou a trabalhar como formadora e mediadora?


De tanto ouvir falar de bons testemunhos de superação, as pessoas já começam a olhar de forma diferente. Mas, a grande conquista é mesmo na mudança das crianças e jovens da comunidade. A representatividade muda tudo. Muda mentalidades! Cada vez mais, eles passam a conhecer pessoas de sucesso que “são como eles”. Pessoas ciganas que tiveram um percurso diferente da normalidade que é vivida. Ao verem que existem ciganos (as) licenciados ou até mesmo com um trabalho dito “normal”, passam a acreditar que eles também podem e conseguem.

Também acredito que o facto de eu como mulher testemunhar isso, tem um impacto gigante. Não existem muitas mulheres que romperam com o padrão que é incutido. Portanto, ter mulheres no comando que são pioneiras abre portas para outras mulheres terem a ousadia de arriscar. É isso que tem acontecido. Tenho sentido que portas se têm aberto na vida de muitas meninas.

Como formadora, tem sido um caminho de descoberta. Muitas das vezes os jovens ciganos não fazem a mínima ideia da sua própria história. É engraçado ver a cara deles de espanto quando descobrem algo que não sabiam sobre eles mesmos. As pessoas não ciganas acabam também por aprender bastante. Para mim, aprender é evoluir. É um passo para uma nova era.


Participou na "Working together for Roma rights" - Online conference on Roma equality, inclusion and participation in the EU. Que importância teve para si participar nesta conferência?


Envolvermo-nos com temas sobre a comunidade cigana a nível internacional é de extrema importância. Primeiro porque os problemas variam de país para país. A forma de estar e princípios dentro da comunidade Roma são diferentes consoante o país onde estão inseridos. Sendo um povo nómada, foi adaptando-se ao país onde se foi enraizando.

Debater e expor os problemas que existem em Portugal abre horizontes para que quem vê de fora possa dar uma perspectiva diferente. E claro, é bom partilhar a boas experiências com o mundo. Além disso, foi um grande desafio porque foi tudo falado em inglês, e nem sempre é fácil.


Em que medida é possível haver integração, inclusão e igualdade na União Europeia?


Portugal ainda está muito distante nesse sentido. Mas já existe um grande progresso nos países vizinhos. Igualdade não creio que algum dia haverá. E se por acaso isso acontecer, será daqui a muitas gerações. Nem mesmo o povo afrodescendente conseguiu igualdade, mesmo estando num nível de integração superior. Muitas mulheres lutam por igualdade de direitos, e também não conseguiram isso na sua totalidade. Portanto, penso que seja um tema complexo e difícil. Integração e inclusão é possível, mas haverá sempre quem descrimine. Eu sei lidar bem com isso.

A convite do IPLeiria falou sobre o tema Racismo, onde aproveitou para falar sobre a postura dos ciganos em relação ao Racismo. O que nos pode dizer sobre a postura e a luta contra o Racismo?


Eu sou da opinião que apontar que tudo é racismo está “na moda”. Embora tenha a certeza de que existe a olho nu, também tenho a certeza de que muita gente se aproveita da circunstância. Eu defendo, que nós enquanto ciganos (e não só) devemos assumir uma postura de luta. Deixar para trás o vitimismo e lutar por aquilo em que acreditamos por muito que custe. Alguém tem que abrir caminho, abrir portas. Enquanto houver pessoas receosas e conformistas, fechadas na sua bolha…nunca vamos conseguir evoluir. Quanto menos deixarmos que o racismo nos afecte, melhor vamos conseguir viver com isso. É suposto viver com isso?! Não. Mas se por enquanto é o melhor que temos, então vamos cozinhar com os ingredientes que existem. Caso contrário podemos tornarmo-nos pessoas frustradas e deprimidas com a vida e com as pessoas à nossa volta.

Quais são os seus sonhos para Portugal?


O meu sonho é que um dia “isto” já não precise ser notícia, porque passa a ser uma coisa normal.





Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.


Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Fátima Simões

06 De Julho De 2022


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