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Entrevista A João Branco

  • projectovidaseobras
  • Aug 7
  • 11 min read

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Foto De Autoria De Bob Lima

1. Fundou em 1995 e foi director artístico do Mindelact. Como foi pertencer à fundação quer do festival quer da associação e trabalhar como seu diretor artístico até 2024?


Ter estado na fundação do Festival Mindelact em 1995 e acompanhar o nascimento da associação cultural (que aconteceria formalmente alguns meses depois, já em 1996), foi uma experiência profundamente transformadora. Na época, movíamo-nos por um desejo quase visceral de criar um espaço de encontro, experimentação e afirmação das artes cénicas em Cabo Verde — algo que não existia com a mesma força até então.


Assumir a direcção artística de um festival como o Festival Internacional de Teatro do Mindelo Mindelact, desde o início até 2024 foi uma jornada de constante aprendizagem, escuta e reinvenção. Foram quase três décadas de diálogo com artistas nacionais e internacionais, de formação de públicos, de resistência a contextos difíceis, de celebração da criatividade e da liberdade artística.


Estar à frente do Mindelact significou também assumir uma responsabilidade ética e cultural: garantir que o festival não fosse apenas um evento, mas um espaço de memória viva, de transformação social e de representação digna da nossa diversidade. O trabalho em rede, o apoio a novos criadores, a descentralização das acções, a internacionalização dos grupos cabo-verdianos — tudo isso fez parte dessa construção colectiva.


A partir de 2014, propus o conceito de “economia dos afectos” como um modo de repensar o funcionamento interno e externo do Festival Mindelact. Era uma resposta ética e poética a uma realidade em que, frequentemente, o sector cultural se via desprovido de recursos financeiros estáveis e de políticas públicas sustentadas. Nesse contexto, percebi que o que fazia o festival acontecer ano após ano não era apenas a logística, os apoios pontuais ou a técnica — mas sim as relações humanas profundas que se foram tecendo ao longo do tempo: com artistas, técnicos, voluntários, públicos, parceiros. Era o afecto — entendido como vínculo, cuidado, confiança e compromisso — que sustentava a estrutura invisível do festival.

A “economia dos afectos” transformou-se, então, numa filosofia de gestão e numa prática concreta de trabalho colaborativo. Os afectos tornaram-se capital simbólico, força mobilizadora, fundamento ético. Não se tratava de romantizar a precariedade, mas de reconhecer o poder das redes emocionais e sociais que mantinham viva a chama do projecto. Essa visão tornou-se um dos grandes diferenciais do Mindelact e, de certo modo, um modelo alternativo de sustentabilidade no contexto cultural africano.


O festival Mindelact, fez dos pilares Arte, Alma e Afecto, a sua bússola curatorial, ética e estética. Orientaram decisões difíceis, inspiraram novas iniciativas e ajudaram a comunicar ao mundo não só o que fazemos, mas sobretudo como e por que fazemos. Sinto orgulho por ter ajudado a erguer algo que hoje é património cultural e afectivo de tantas pessoas. E, mais do que isso, sinto gratidão por ter aprendido tanto com os processos, os desafios e, sobretudo, com as milhares de pessoas, muitas delas extraordinárias, que cruzaram o caminho do Mindelact.


2. Fundou o Saaraci Colectivo Teatral, com vários profissionais de teatro, vindos de três continentes ligados pelo Atlântico. Como é ser diretor artístico, ator e encenador neste grupo que junta a energia do mar, do Monte Cara e do Monte Verde, e ainda "das misturas e do verdadeiro sentido do que é ser-se crioulo"?


Fundar o Saaraci Colectivo Teatral foi como lançar uma semente no Atlântico — um gesto de travessia, de encontro e de reinvenção, relacionado também com a minha mudança de Cabo Verde para Portugal. Reunimos profissionais de teatro de três continentes, mas mais do que uma reunião geográfica, foi uma reunião de memórias, inquietações e afectos. Assumir a direcção artística, ser actor e encenador neste colectivo é um exercício de escuta profunda: escutar os corpos, as histórias, as heranças, mas também escutar o silêncio, o que ficou por dizer nos nossos percursos fragmentados pela diáspora, pela colonização, pela distância. E escutar as dores de quem está aqui e não tem lugar de fala, não tem as mesmas oportunidades, não tem como defender os seus próprios interesses. Trabalhar com o Saaraci é estar sempre entre o Monte Cara e o Monte Verde, entre a resistência que se esculpe na pedra e o sonho que se projecta no horizonte. E é, sobretudo, mergulhar na energia do mar — esse mar que separa e une, que leva e traz. O mar, no Saaraci, é personagem, é cenário e é dramaturgo. Assim, ser crioulo, para nós, não é uma identidade fechada, mas um processo em permanente construção, onde cabem as fracturas, os cruzamentos, os fantasmas, as contaminações e os desejos. É uma arte que se faz no corpo, com a pele e com a memória. No Saaraci, tudo é matéria cénica: o gesto, a dúvida, a herança, a esperança. Somos atravessados pelo Atlântico, mas também o atravessamos com as nossas perguntas. E o teatro que criamos carrega isso: um pulsar crioulizado, plural, insurgente e profundamente sensorial.


3. Foi coordenador pedagógico da ALAIM Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo. Como foi trabalhar como coordenador num projecto tão singular, em prol da identidade, das artes e da educação?

[Ponto de ordem: o projecto da ALAIM Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo encerraria em Maio de 2023, em virtude da nossa saída do país]


Ser coordenador pedagógico da ALAIN – Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo foi uma das experiências mais desafiantes e inspiradoras da minha trajectória. A ALAIM não era uma escola convencional — era um espaço-laboratório, uma plataforma viva onde arte, educação e identidade se entrelaçavam com liberdade e ousadia. Trabalhar na ALAIM significava repensar os processos de ensino e aprendizagem a partir de uma perspectiva criativa, colaborativa e descolonizadora. Lá, os alunos não eram apenas recipientes de conhecimento, mas co-criadores de percursos. A transversalidade entre teatro, música, dança, escrita e artes visuais permitia que cada estudante encontrasse a sua própria linguagem expressiva, enquanto mergulhava na pluralidade da nossa cultura e na complexidade da nossa história. Como coordenador, o meu papel era garantir que essa liberdade tivesse estrutura, que o risco criativo tivesse acompanhamento, e que os projectos pedagógicos estivessem alinhados com uma visão de formação artística que fosse também uma formação para a cidadania, para a consciência crítica e para o reconhecimento da própria identidade.


A ALAIM foi um projecto profundamente transformador — porque formou artistas, sim, mas sobretudo formou seres pensantes, sensíveis e comprometidos com o mundo. Ter feito parte dessa construção foi uma honra e uma oportunidade de pôr em prática tudo o que acredito sobre o poder pedagógico da(s) arte(s).


4. A sua tese de doutoramento defendida em junho de 2016 foi sobre "Crioulização Cénica, em busca de uma identidade para o teatro cabo-verdiano". O que aprendeu com a sua investigação e o que o motivou a estudar sobre esta área da cultura de Cabo Verde?


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Foto da peça "Tempestad" (crioulização de "Tempestade" de Shakespeare) de autoria de Diogo Bento, com o actor Christian Lima. 


A minha tese de doutoramento, defendida em 2016, partiu de uma inquietação antiga: como pensar um teatro cabo-verdiano que não seja mera cópia de modelos estrangeiros nem uma repetição folclorizada de tradições? Essa pergunta levou-me à ideia de “crioulização cénica”

◦ um conceito que propus para pensar os processos híbridos, de mestiçagem estética, de contaminação criativa que definem a nossa cultura, e que poderiam também definir uma linguagem teatral própria. A investigação foi, para mim, um mergulho profundo — não só nos estudos pós-coloniais e nas teorias da crioulidade, mas também na prática concreta do fazer teatral em Cabo Verde ao longo do tempo. Estudei espectáculos, textos, encenações e experiências comunitárias, sempre com o olhar atento para os elementos que revelavam uma identidade em construção, nunca fixa, mas em permanente movimento. O que percebi foi que o teatro cabo-verdiano não precisa buscar legitimidade fora — ele já é legítimo na sua mistura, na sua capacidade de dialogar com o mundo a partir de um lugar próprio, situado entre línguas, corpos, memórias e geografias. A crioulização, nesse sentido, não é apenas um fenómeno linguístico ou social: é uma estética, uma ética e uma política de criação.


O que me motivou neste caso foi a urgência de pensar o teatro cabo-verdiano a partir de dentro, com as nossas próprias categorias, recusando os moldes coloniais ou eurocêntricos de análise. Queria dar nome — e corpo — a uma linguagem que já existia, mas que precisava ser reconhecida, valorizada e sistematizada. A tese foi um passo nesse caminho, mas é um percurso que continua — nos palcos, nas salas de ensaio, nas comunidades, nos corpos que performam o arquipélago todos os dias.


5. Escreveu um texto sobre teatro em Cabo Verde no número especial da revista "Kultura", para as comemorações dos 25 anos de independência de Cabo Verde. Que importância teve escrever um texto para as comemorações dos 25 anos da independência de Cabo Verde?


Escrever um texto sobre teatro cabo-verdiano para o número especial da revista Kultura, nas comemorações dos 25 anos da independência de Cabo Verde, foi um acto de profunda res- ponsabilidade e uma grande honra. Não se tratava apenas de fazer um balanço histórico, mas de reflectir sobre o lugar da criação artística — em especial do teatro — na construção da nossa identidade pós-colonial. Naquele momento, ao completar um quarto de século de independência, o país estava numa encruzilhada simbólica: já havíamos conquistado a liberdade política, mas continuávamos — e ainda continuamos — a disputar o espaço da autonomia cultural e da afirmação estética. O teatro, enquanto arte do corpo, da palavra, da memória e da colectividade, tem um papel central nesse processo. Por isso, o texto que escrevi procurava traçar uma genealogia possível do teatro cabo-verdiano, mas também questionar os silêncios, os apagamentos e as urgências do presente. Foi uma forma de inscrever o teatro nas narrativas oficiais da nação — não como adorno cultural, mas como prática fundadora, como campo de resistência, imaginação e pensamento crítico.


6. Encenou a peça "Dona Pura e os Camaradas de Abril", a partir do romance de Ger- mano Almeida. Como autor, encenador, coordenador pedagógico durante 30 anos em Cabo Verde e filho de pais activos pelo 25 de abril, o que significou para si levar à cena esta peça?


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Dona Pura - Fotografia De Autoria De Pedro Sardinha com a actriz Matisia Rocha


Encenar “Dona Pura e os Camaradas de Abril”, foi talvez um dos momentos mais íntimos e politicamente significativos da minha trajectória como artista e encenador. Foi como unir pontas de uma vida inteira: o teatro, a literatura, a memória histórica, o compromisso cívico, a herança familiar. Sou filho de pais que estiveram activos na luta pela liberdade e viveram o 25 de Abril não como um episódio distante, mas como uma transformação concreta e vivida

◦ tanto em Portugal como em Cabo Verde. Cresci num ambiente em que a liberdade não era apenas uma palavra, mas uma prática, um valor, uma conquista permanente. Levar essa história para cena, em forma dramatúrgica, foi uma forma de devolver ao palco uma parte daquilo que me formou como cidadão e como homem de teatro. Enquanto encenador, o desafio foi traduzir a fina ironia e o olhar crítico de Germano Almeida numa linguagem cénica que fosse ao mesmo tempo popular, poética e política. E enquanto pedagogo — com trinta anos de trabalho em formação artística — senti que esta peça poderia ter um papel importante a cumprir: educar a sensibilidade histórica, abrir espaço para o debate sobre o que foi para nós, cabo-verdianos, de facto, a Revolução dos Cravos, e como ela atravessa ainda hoje os nossos corpos, as nossas escolhas, as nossas palavras. “Dona Pura” é, para mim, um gesto de amor ao teatro, à liberdade e à memória. É um espelho de como a arte pode revisitar o passado para intervir no presente — com humor, afecto e consciência crítica.


7. É autor desta obra importantíssima sobre o teatro cabo-verdiano, "Nação Teatro - História do Teatro em Cabo Verde", editada em 2004 pela Biblioteca Nacional de Cabo Verde. O que nos pode falar sobre este trabalho sobre o teatro cabo-verdiano?


“Nação Teatro – História do Teatro em Cabo Verde” é o resultado de um longo processo de investigação que durou cerca de 20 anos. Foi um trabalho que envolveu pesquisa bibliográfica extensa, mas também um diálogo intenso com as chamadas “bibliotecas vivas” — artistas, encenadores, actores, técnicos e todas as pessoas que viveram e construíram o teatro cabo-verdiano ao longo das décadas. Publicada em 2004 pela Biblioteca Nacional de Cabo Verde, esta obra não foi apenas uma tentativa de sistematizar a história do teatro no país, mas um acto de valorização e reconhecimento de um património cultural muitas vezes invisibilizado. Ao reunir documentos, relatos orais, memórias e análises críticas, procurei mostrar que o teatro em Cabo Verde é uma prática viva, plural e profundamente enraizada na identidade nacional. O livro é um convite para que possamos continuar a olhar, entender e reinventar o nosso teatro, entendendo-o não só como arte, mas como expressão da história, da resistência e da criatividade do nosso povo.


8. Lançou e editou em 2014 a obra "Palco 50", dedicada às 50 produções do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo (GTCCPM). Como foi para si mostrar estas 50 obras do GTCCPM através deste livro?


Lançar e editar a obra “Palco 50”, em 2014, foi um momento de celebração e também de re-

conhecimento do percurso do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo (GTCCPM). Registrar as 50 produções do grupo não foi apenas um exercício de catalogação, mas um gesto de preservação da memória viva do teatro em Mindelo. Este livro reuniu imagens, textos, depoimentos e materiais que documentam não só os espectáculos em si, mas também o contexto social, cultural e político em que foram criados. Foi uma forma de dar voz e visibilidade a um trabalho colectivo que durante décadas contribuiu para a vitalidade artística da cidade e para a formação de inúmeras gerações de artistas. Assinalar essas 50 obras através do livro permitiu também pensar o teatro como um espaço de resistência, diálogo e transformação social — um espaço onde se contam histórias que são, ao mesmo tempo, pessoais e colectivas. Para mim, foi um privilégio e uma responsabilidade resgatar essa trajectória e oferecê-la ao público como parte fundamental da nossa história cultural.


9. É igualmente autor da componente cabo-verdiana do livro "O teatro dos Sete Povos Lusófonos", que teve edição pelo Centro Cultural de S. Paulo (Brasil). Que importância teve para si fazer parte deste livro e abordar e dar a conhecer o teatro cabo-verdiano nesse contexto, em particular?


Fazer parte do livro “O teatro dos Sete Povos Lusófonos”, com a componente dedicada a Cabo Verde, foi para mim uma experiência bem interessante. Este projecto colectivo, editado pelo Centro Cultural de São Paulo, o maior da América Latina, representou uma oportunidade única de inserir o teatro cabo-verdiano num diálogo mais amplo com as outras culturas lusófonas — Angola, Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau, Portugal e Timor-Leste. Para além de dar visibilidade ao nosso teatro, que muitas vezes é pouco conhecido fora do arquipélago, o trabalho permitiu mostrar as especificidades, os desafios e as potências da criação cénica em Cabo Verde, situando-a num contexto global, mas sempre preservando a sua identidade própria. Este livro foi também uma forma de fortalecer os laços entre esses “sete povos” através da arte e da cultura, promovendo uma troca de experiências e saberes que enriquece todas as tradições representadas. Para mim, contribuir para essa publicação foi um acto de reconhecimento do nosso lugar no mapa teatral lusófono e um convite para continuarmos a afirmar a nossa voz de forma autêntica e criativa.


10. Quais são os seus sonhos para Portugal e para Cabo Verde?



Os meus sonhos para Portugal e para Cabo Verde nascem do mesmo lugar: do desejo de ver nascer sociedades mais justas, conscientes da sua história, mas também capazes de sonhar com futuros plurais e generosos. Escrevi sobre isso no meu artigo “A Minha Bandeira”, publicado em Maio de 2023 no semanário Expresso das Ilhas, onde reflicto sobre as bandeiras que carrego — não só as bandeiras nacionais, mas sobretudo as bandeiras simbólicas dos afectos, das lutas e dos princípios que guiam a minha vida. Para Cabo Verde, sonho com um país onde a cultura não seja apenas celebrada, mas verdadeiramente integrada nas políticas públicas, na educação, no desenvolvimento. Um país onde a juventude possa criar, imaginar e pertencer sem ter de partir para se realizar. Sonho com um teatro cabo-verdiano cada vez mais enraizado, livre e afirmativo, que continue a contar as nossas histórias com coragem e sensibilidade. Para Portugal, sonho com um país que olhe de frente para a sua história colonial, sem medo nem negação, mas com responsabilidade e escuta. Um país que abrace a sua diversidade como riqueza, que entenda que ser português também é ser africano, ser mestiço, ser plural. Um Portugal onde a liberdade de Abril não seja apenas memória, mas prática diária, profundamente enraizada nas políticas, nas escolas, nas ruas. E para ambos sonho com um futuro em que o mar que nos separa seja cada vez mais um mar que nos une — não pela nostalgia da lusofonia - um conceito que não gosto, pela distância entre a prática e a retórica política que sempre carrega consigo -, mas pela construção de uma relação nova, transversal, baseada no respeito mútuo, na partilha verdadeira e no reconhecimento das vozes que durante muito tempo foram silenciadas. A minha bandeira é feita de utopia, mas também de acção. E o teatro, para mim, é uma forma de a erguer todos os dias.



Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.


Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

06 De Agosto De 2025

 
 
 

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