top of page

Entrevista a Telma Miranda – Neuropsicóloga Na Cruz Vermelha Portuguesa



Fez voluntariado no Centro Hospitalar Conde Ferreira, desenvolvendo atividades lúdicas e outras numa sala/biblioteca e acompanhando pessoas com doença mental. De que forma é que este voluntariado contribuiu para o seu desenvolvimento como psicóloga e para uma maior aprendizagem sobre doenças mentais?


Enquanto estudante, assisti a aulas práticas no Centro Hospitalar Conde Ferreira e entrei em contacto mais próximo com a realidade daquele contexto. No final desse semestre abordei directamente a médica psiquiatra que nos leccionava as aulas, questionei-a sobre a possibilidade de ali desenvolver voluntariado e a oportunidade surgiu. Considero que o voluntariado nos dá espaço para crescermos interiormente e foi com esse espírito que partilhei algum do meu tempo com as pessoas com doença mental. Não sei se alguma vez lhes dei mais do que aquilo que recebi... durante o período em que ali estive, rapidamente percebi que por muito pouco que eu tivesse para partilhar, o retorno era imenso... às vezes bastava a nossa presença, a nossa atenção, o nosso carinho, a nossa compreensão sem julgamentos. Nestes contactos, como em todos os que envolvem pessoas, senti que era imprescindível uma postura sensível, de comunicação empática, tolerância, capacidade para gerir alguns conflitos. Embora tenha sido possível ver in loco aspectos teóricos que tinha estudado, eu não tinha como objectivo uma aprendizagem técnica. O meu foco era a componente humana do que estava ali a fazer e nesse aspeto julgo que foi uma fase incrível... estabeleci laços com os utentes, com outros voluntários, com funcionários. Passou a fazer parte da minha rotina. Ainda hoje recordo esses dias com alguma nostalgia, mas infelizmente a determinada altura passou a ser incompatível para mim manter este compromisso.


Estagiou no Hospital de São João. O seu trabalho foi de contacto com a avaliação e reabilitação neuropsicológica num grupo considerável de patologias, como doenças vasculares cerebrais (p.ex. Acidente Vascular Cerebral), doenças do movimento (p.ex. doença de Parkinson), doenças desmielinizantes (p.ex. Esclerose Múltipla), Demências, Epilepsia e Tumores Cerebrais, entre outras. De que forma foi determinante poder entrar em contacto com a avaliação e reabilitação em doenças neurológicas?


Julgo que ainda existe uma ideia pré-concebida de que todos os psicólogos clínicos fazem psicoterapia. De que é maioritáriamente esse o trabalho do psicólogo clínico. Na altura em que transitei para o mestrado e comecei a pensar no que gostaria de fazer em contexto de estágio, eu própria achei que devia ser um contexto que me desse a oportunidade de aprender sobre psicoterapia. Mas para me clarificar tive a oportunidade de entrar em contacto com alguns profissionais do terreno para explorar possibilidades e perceber, antes mesmo de iniciar o meu estágio, aquilo que me faria mais sentido. Quando surgiu a possibilidade de assistir a algumas consultas de Psicologia (neuropsicologia) no Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de São João, para mim foi esclarecedor: era pela neuropsicologia que ia passar o meu estágio. E comecei a trabalhar nesse sentido... escolhi unidades curriculares mais direccionadas para a área da neuropsicologia, assisti a congressos sobre o tema. Acabei mesmo por realizar o estágio no Serviço que referi, onde estive por 23 meses. Aprender com pessoas que ainda hoje considero um modelo de excelência na minha área, e ver a abrangência do nosso papel, em intervenções que só se fazem em grandes centros hospitalares (como p. e. a Estimulação Cerebral Profunda e a Cirurgia com o Doente Acordado) foi uma aprendizagem rica e gratificante.

O contacto com a neuropsicologia realizou-me de tal modo que mesmo posteriormente, e atravessando os vários contextos onde trabalhei, tentei sempre que possível trazer a neuropsicologia à intervenção. Posso dar um exemplo: mais tarde, e aquando do estágio para a Ordem dos Psicólogos, entrei numa IPSS para desenvolver um trabalho maioritáriamente dedicado às crianças. Nessa instituição existia já muito trabalho de qualidade desenvolvido no domínio mais clínico e, alinhado com isso, tive a oportunidade de contribuir com a concepção de novas iniciativas como a criação de grupos de intervenção para treino de competências cognitivas.


Que aprendizagem obteve sobre estas patologias e sobre o processo de avaliação e observação que fez?


Pelo facto de ter estagiado num grande Centro Hospitalar, foi-me possível contactar com um largo espectro de doenças neurológicas... aquelas que já tinha estudado, por serem mais frequentes, mas outras mais raras e desafiantes. Neste caminho que percorri tomei conhecimento da intervenção possível pelo neuropsicólogo. Desenvolvi acções de prevenção e sensibilização para a importância da estimulação cognitiva e contactei com a avaliação neuropsicológica como auxiliar de diagnóstico diferencial, em ensaios clínicos, com candidatos a cirurgia funcional, como suporte a cirurgias de remoção de tumor cerebral. Conheci um vasto reportório de provas de avaliação neuropsicológica, aprendi mais sobre psicometria... e percebi que isso só é insuficiente. É importante ter conhecimentos sobre a aplicação e cotação das provas, mas para a sua interpretação e elaboração de relatórios clínicos é extremamente importante aliar os dados quantitativos obtidos pela pessoa, com aquilo que observamos informalmente no momento avaliativo, e aqui os mais pequenos pormenores contam. Pude neste estágio desenhar programas de intervenção individualizados para reabilitação neuropsicológica. Percebi ainda que a supervisão – discussão de casos com pessoas mais experientes na área – é um recurso valioso ao longo de toda a nossa vida profissional.


Tem trabalhado no domínio da neuropsicologia focando-se no envelhecimento, defeito cognitivo e demência. Pode explicar-nos o que significa defeito cognitivo?


A cognição engloba várias funções onde se incluem, por exemplo, a atenção, memória, linguagem, funções executivas. A avaliação destas funções faz-se com recurso a provas de avaliação neuropsicológica validadas à população portuguesa (ou se for outro caso, à população que está a ser estudada) e, de preferência, os resultados nessas provas devem ser cuidadosamente analisados de forma enquadrada com o nível pré-mórbido da pessoa, conhecido ou estimado. É esperado, mediante algumas variáveis demográficas da pessoa a considerar (como a sua idade e/ou escolaridade por exemplo), que o desempenho esteja dentro do intervalo normativo. Falamos em defeito cognitivo quando o perfil da pessoa se desvia deste padrão do seu grupo de referência.

É pertinente distinguir o processo de envelhecimento normal do envelhecimento patológico. Sabemos que o envelhecimento é um processo biológico e universal que acontece ao longo da nossa vida. Este conceito não tem que ter implícita a condição de doença, mas caracteriza-se por uma perda progressiva das capacidades físicas e mentais. No envelhecimento normal, embora se experiencie uma diminuição das capacidades cognitivas, estas alterações não são evidentes na avaliação neuropsicológica (porque como referi os dados brutos são corrigidos e a pessoa é comparada com o seu grupo padrão; por exemplo, numa mesma prova, é esperado que um jovem de 24 anos obtenha dentro de um determinado espectro de valores, mas já é esperado um outro desempenho se falarmos de alguém com 68 anos). Quando existe um ligeiro comprometimento nas provas de avaliação neuropsicológica, mas estas dificuldades não comprometem a funcionalidade da pessoa (a forma como dá resposta às actividades de vida diária, básicas e instrumentais), falamos de Defeito Cognitivo Ligeiro (DCL). Este quadro de DCL poderá, ou não, evoluir e agravar-se. Se as alterações cognitivas são mais acentuadas, transversais a vários domínios e se traduzem num comprometimento funcional, aí sim podemos estar perante um quadro de doença neurológica (ex: quadro demencial). Para este diagnóstico contribui a nossa avaliação no âmbito da neuropsicologia, mas não chega ... é necessária a avaliação médica por neurologia e a confrontação com os achados clínicos e imagiológicos.


Que impacto pode ter o seu trabalho nos que sofrem dessa problemática de defeito cognitivo ou de casos de demência e envelhecimento?


Em todos os casos, quando falamos de envelhecimento falamos de mudanças (a nível físico, cognitivo, laboral, social, entre outros) e o papel do psicólogo poderá ser importante na adaptação às mudanças e para apoiar a identificação, compreensão e gestão das emoções que surgem no decorrer deste processo.

No âmbito da neuropsicologia, a intervenção depende muito do tipo de problemática de que estamos a falar. Se estivermos a falar de envelhecimento normativo, pode ser desenvolvido um trabalho de foco preventivo, numa perspectiva de manutenção do perfil cognitivo da pessoa e da sua funcionalidade até mais tarde.

Existem doenças neurológicas (ex: Doença Vascular Cerebral, Esclerose Múltipla, Lesão Cerebral Adquirida...) em que o trabalho do neuropsicólogo tem como objectivo a reabilitação do perfil cognitivo, pressupondo algum nível de recuperação.

Se a nossa população forem pessoas com demência, as nossas expectativas devem ser devidamente ajustadas. Sabemos que é impossível travar o processo de declínio, contudo, e dependendo do estádio da demência, podemos trabalhar algumas estratégias para gerir as alterações cognitivas, prevenir uma evolução mais rápida. Aqui, não ansiamos um impacto quantitativo, mas procuramos potenciar um maior bem-estar emocional e físico e qualidade de vida da pessoa, no seu bem-estar, na sua disponibilidade em estabelecer relações com o outro, na sua participação, iniciativa e auto-determinação e sabemos que lutamos pelos seus direitos e inclusão. A intervenção vai sempre depender do estádio da pessoa e do seu grau de compreensão, por isso devemos ajustar as estratégias casuisticamente, criando de objectivos compatíveis com a capacidade de realização da pessoa.

Como tem sido a sua experiência de trabalhar na Cruz Vermelha, onde também tem desenvolvido a sua actividade?

Uma experiência humanística. Desde logo, a integração numa equipa multidisciplinar é relevante, porque nos permite discutir e trabalhar de uma forma holística e integrada, a partir de perspectivas diferentes, permitindo à pessoa beneficiar de uma intervenção orquestrada e ajustada às suas necessidades. A essência deste trabalho articulado inclui por exemplo a elaboração dos planos de integração e de intervenção individual, onde muitas vezes acontece trabalharmos um mesmo objectivo comum, através das competências associadas às diferentes áreas, e em alguns casos a partir de uma intervenção conjunta.

O facto do Complexo de Neurointervenção da Cruz Vermelha Portuguesa ser uma resposta atípica na área das demências dá-nos a possibilidade de uma intervenção centrada na pessoa, com base na empatia, numa passagem do tradicional nível assistencial, para um trabalho que dá escolha e voz às preferências da pessoa. A história destas pessoas está na sua casa, então procuramos tornar a integração na nossa instituição o mais próxima possível dessa realidade e aproximar o nosso trabalho àquelas que são as suas áreas mais significativas, sempre que possível. Ali, procuramos olhar numa perspectiva inclusiva e ver diversidade funcional em vez de disfuncionalidade.

Qual tem sido a sua motivação para todos estes trabalhos?

Trabalhar na área do envelhecimento é como trabalhar no nosso futuro. Abrir caminho à mudança de paradigma e de práticas. Sensibilizar para a importância do envelhecimento activo, numa procura de optimizar as capacidades individuais de cada pessoa. Promover a reestruturação das equipas para dar espaço a um trabalho centrado na pessoa em todas as respostas para idosos.

Quais são os seus sonhos para Portugal?

Nos últimos anos já temos dado alguns passos muito importantes na área do envelhecimento. E no reconhecimento da neuropsicologia neste contexto.

O lançamento do Plano Global da Saúde Pública para a Demência (2017-2025) foi importante no reconhecimento da importância da intervenção cognitiva na redução do risco de declínio cognitivo e demência. E é verdade que cada vez mais se estuda sobre as alterações cognitivas nas doenças do envelhecimento, bem como programas que possam ajudar a melhorar a qualidade de vida dos idosos (ex: programas de estimulação cognitiva).

Destaco também a “nova” lei do maior acompanhado que veio "eliminar" o conceito de interdição e passou a direccionar os pareceres da (neuro)psicologia para as capacidades que o idoso mantém preservadas, salvaguardando os seus direitos.

Ainda assim, há muito a fazer por mais e melhores respostas para os idosos. Importa disseminar boas práticas nos cuidados a idosos pela humanização dos serviços, que também têm que ter condições e recursos que permitam este tipo de trabalho centrado na pessoa. Por exemplo, nestas instituições devia ser obrigatório o psicólogo e/ou mesmo o neuropsicólogo como elemento integrante da equipa e rácios mais ajustados de funcionários e utentes.

No Sistema Nacional de Saúde seria importante abrir mais vagas para a neuropsicologia de forma a poder haver mais respostas de diagnóstico diferencial, e para que quando as pessoas fossem encaminhadas para unidades como aquela em que trabalho actualmente pudéssemos ter acesso a esta informação de forma sistematizada. Ainda no SNS seria interessante haver respostas de apoio às mudanças que vêm com o envelhecimento, por exemplo na transição para a reforma, uma altura crítica de mudança abrupta de rotinas (que leva muitas vezes a desequilíbrios emocionais, ausência de estimulação e quadros de comprometimento cognitivo), como por exemplo uma consulta para desenvolvimento de um plano pós-reforma.

No domínio das organizações e do trabalho, sob o ponto de vista oferta, poderia ser importante haver incentivos para iniciativas de inclusão social de pessoas de idade avançada nos contextos de trabalho (isto teria igualmente benefícios por exemplo numa transição gradual para a reforma, que em simultâneo permitiria um impacto positivo no sentido de utilidade, competência e qualidade de vida da pessoa).

Muito grata por este convite Pedro, desejo-lhe continuação de um bom trabalho!


Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Fátima Simões

13 De Dezembro de 2020


Recent Posts 
bottom of page