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Entrevista a Mariana Marques Pinto Carneiro – Esquerda.Net



1. Fez vários artigos e entrevistas sobre a Guerra Colonial em 2019. Para si, como é possível quebrar o silêncio sobre a Guerra Colonial e o colonialismo e desconstruir os mitos instalados?


Sim, esses artigos e entrevistas estão compilados no Dossier As feridas abertas da Guerra Colonial, do Esquerda.net. Mas é uma temática sobre a qual continuo a escrever.


Ainda há muito a fazer para quebrar o silêncio e desconstruir os mitos sobre o colonialismo e a Guerra Colonial, Pedro. E em vários campos.


Creio que é fundamental que exista, logo à partida, um diálogo intergeracional. É preciso tirar as histórias dos nossos pais, mães e avós, que compõem a nossa História, das gavetas onde estão guardadas a sete chaves. É certo que, em muitos casos, esse processo pode ser doloroso e complexo. E é por isso que o trabalho que algumas associações desenvolvem, levando, por exemplo, Deficientes das Forças Armadas às escolas, ou dando eco à voz daqueles que desertaram, deixando as suas vidas para trás para não combaterem numa guerra injusta e imoral, é muito importante. Nestes contextos, o impacto do testemunho direto e oral é bastante forte. Aliás, a meu ver, enquanto for possível, a história oral deve ser sempre uma fonte privilegiada, complementar à história documental, na medida em que esta pode dar um grande contributo para o resgate da memória colonial.


Temos de deixar de varrer os assuntos tabus para debaixo do tapete. Falo, nomeadamente, dos comandos africanos da Guiné, traídos por Portugal e que foram abandonados à sua sorte sem piedade; dos filhos que os militares portugueses deixaram nas ex-colónias, condenados à invisibilidade e a quem é negada a possibilidade de lhes ser reconhecida a cidadania portuguesa; ou dos massacres cometidos por tropas coloniais portuguesas e pela PIDE-DGS, como o de Batepá, Pindjiguiti, Mueda, Wiryamu, Chawola e Juwau, entre outros.


É imprescindível reivindicar os lugares de memória (pós)coloniais das nossas cidades. Bem como trabalhar a questão das memórias coloniais e pós-coloniais no campo cultural. A literatura, o teatro, o cinema, as artes plásticas, entre outros, são meios com um enorme potencial emancipatório, capazes de quebrar silêncios, romper com o status quo, desconstruir mitos e questionar o branqueamento da História.


Urge, certamente, combater o revisionismo histórico com que somos confrontadas/os, em que o rigor da História nada vale e nos é imposta uma reinterpretação política e ideológica da História contemporânea. E esse revisionismo ultrapassa largamente a fronteira da historiografia. Frequentemente, lá aparece a Guerra Colonial mascarada de guerra do ultramar e as ex-colónias de províncias ultramarinas. As campanhas militares vestem-se de campanhas de pacificação e são mobilizados ardilosos argumentos para legitimar o regime ditatorial e o colonialismo. Essa mensagem é veiculada nos discursos oficiais, nos conteúdos televisivos, nos manuais escolares, nas celebrações ou nas inaugurações de um qualquer monumento a exaltar os “descobrimentos”.


Descolonizar. É preciso descolonizar: os serviços públicos, a educação, as instituições culturais, os saberes científicos, o espaço público, a sociedade, o imaginário, as mentes...

E devemos, em todo este processo, conhecer o outro lado dos acontecimentos. Ouvir, aprender com as/os outras/os. De reconhecer que têm as suas vozes, as suas narrativas, os seus espaços. Que não são os nossos. Saber o que foram os Movimentos de Libertação Nacional, ouvir os testemunhos de quem lutou pela independência do seu país, de quem lutou pelo fim do jugo do colonialismo, são instrumentos imprescindíveis para combater a pequenez que, por vezes, nos turva o pensamento.


O ciclo comemorativo do 25 de Abril será, certamente, um momento primordial para continuarmos este combate contra o branqueamento da História.


2. Como tem sido poder contar estas histórias, ter aberto este espaço, ter quebrado um pouco o silêncio quer através de artigos, entrevistas e vários testemunhos?


Tenho perfeita noção de que o meu contributo é muitíssimo limitado, Pedro. Mas acredito que as nossas lutas e a soma de todos os nossos contributos, das nossas vozes, na sua diversidade, podem fazer a diferença.


Sou filha da Guerra, cresci com ela. Já o escrevi num artigo. Sou filha de um pai Deficiente das Forças Armadas (DFA), que perdeu a mão em Moçambique, um militar de Abril, que integrou o Movimento das Forças Armadas (MFA). Cresci com ex-combatentes que estiveram em Angola, Guiné ou Moçambique. Que perderam lá parte do seu corpo e que ganharam memórias às quais não conseguem escapar. Ouvi algumas das suas histórias, do meu pai e dos seus companheiros. Soube como pegaram em todos os seus estilhaços e foram para a rua denunciar a injustiça e os horrores da guerra e defender Abril.


Escrever sobre a Guerra Colonial é, a nível pessoal, pegar também nos meus estilhaços e fazer deles força. E a melhor forma de evocar o meu pai. Mas, antes de mais, é quase uma obrigação. Tenho informações e contactos privilegiados, porque cresci no ambiente que já descrevi. Tenho consciência do revisionismo histórico que enfrentamos. Tenho noção de que o racismo estrutural, que vergonhosamente grassa em Portugal, é uma herança colonial. Olho à volta e apercebo-me da deriva fascista que ameaça levar-nos de volta para o abismo. E ensinaram-me, desde que me lembro de ser pessoa, a lutar por aquilo em que acredito, a defender a liberdade, a justiça, a igualdade. Não poderia não contribuir para este combate.


Promoveu um trabalho/arquivo Mulheres De Abril – Testemunhos, que importância tem para si a promoção de vidas de Mulheres activistas, e anti-fascistas e De Abril?


O projecto "Mulheres de Abril" teve início em 2018. Foi posteriormente retomado em 2019 e 2020. Tenho ainda a gravação de dois testemunhos que irei publicar brevemente e conto gravar mais alguns.


Novamente, aqui também entra uma das maiores heranças dos meus pais: a certeza de que temos de resgatar a memória do que foi o fascismo, o colonialismo, a Guerra Colonial. E o contexto familiar foi determinante. Além do meu pai, a minha família materna mais próxima - mãe, avós, tios – são referências anti-fascistas.


O primeiro dos 40 testemunhos publicados até ao momento foi, exactamente, o da minha mãe. Durante a ditadura foi uma resistente anti-fascista, militante do PCP, presa por duas vezes, severamente torturada, e que passou pela clandestinidade. Ela foi, de facto, a minha inspiração.


Feminista que sou, o meu objectivo foi pegar em testemunhos diversos – em termos etários, de classe social, origem política, tipo de activismo, origem geográfica, etc – e contar a história da resistência anti-fascista no feminino. Quis demonstrar que as experiências de luta anti-fascista foram diversas e que estas mulheres não estavam formatadas e pré-destinadas a serem revolucionárias. Tornaram-se revolucionárias.


Com todas estas Mulheres de Abril aprendi tanto, cresci tanto. Criei ligações que espero manter para a vida. Tenho uma admiração enorme pela sua coragem. Em nenhum momento qualquer das mulheres que entrevistei encarou o seu testemunho como uma auto-promoção. Aliás, a maior parte dos testemunhos começou com “não tenho grande coisa para te contar”, “não gosto de falar de mim, preciso falar sobre a luta colectiva”, “há exemplos muito melhores do que o meu”, “o que é que esta história interessa a alguém?”.


Todos os testemunhos juntos formam uma espécie de puzzle que nos ajuda a compreender o que foi a ditadura, e, especificamente, o seu impacto nas mulheres. Creio que contribuem também para melhor percebermos as motivações e os diferentes tipos de engajamento na resistência anti-fascista, e as consequências, para estas mulheres e as suas famílias, desta entrega à luta pela Liberdade. Estes testemunhos não nos permitem esquecer o que é o fascismo. E, a meu ver, são um valioso instrumento de resgate da memória e de combate às extremas direitas que nos assombram.


Nos seus artigos também aborda o aborto, e refere no seu artigo “E eu fui uma das mulheres que já não teve de se sujeitar ao aborto clandestino e inseguro em Portugal.” Que impacto teve a alteração da lei na vida das mulheres? Em que medida melhorou as vossas vidas?


A despenalização, a 11 de Fevereiro de 2007, da interrupção voluntária da gravidez (IVG) trouxe a possibilidade de acabar com o aborto clandestino e inseguro em Portugal. Deixámos de empurrar as mulheres para as barras do tribunal por fazerem um aborto, devolvendo-lhes(nos) a dignidade.


Ao contrário dos argumentos ignóbeis mobilizados por quem queria impedir esta conquista, o número de abortos diminuiu consistentemente, ano após ano. A despenalização trouxe sim mais acompanhamento, mais saúde e mais segurança. E mais planeamento familiar. Evitou mortes ou complicações irreversíveis que poriam em causa a nossa saúde sexual e reprodutiva.


Há questões a melhorar, claro. Mas o que não podemos permitir, de forma alguma, é dar um passo atrás. Isso seria um retrocesso civilizacional inqualificável.


Trabalhou igualmente o artigo “Confinamento(s) em tempo de ditadura”; e a “Galeria de uma ditadura”, entrevistou a Susana De Sousa Dias, e tem trabalhado sobre o Zeca Afonso, entre outros. O que a tem motivado a falar e mostrar a ditadura quer seja através do Confinamento, da Galeria, da lente da Susana De Sousa Dias, e das letras e voz Do Zeca, e o que tem aprendido?


Creio que fui respondendo, ao longo das anteriores respostas, a esta questão. O que me motiva? Resgatar a memória do que foi o fascismo, a Guerra Colonial, o colonialismo português.


E eu encaro o resgate da memória como uma arma contra o fascismo e contra a contaminação da ideologia colonial. Contra o racismo. Contra os populismos de extrema direita. Contra os Trump, Bolsonaro, Viktor Orbán, Andrzej Duda, Mateusz Morawiecki, Recep Tayyip Erdogan, Le Pen, etc, deste mundo. E os seus mini minions em Portugal, os “chegas” de André Ventura.


Sobre o que tenho aprendido… Muitíssimo, nem sei por onde começar. Mas algumas convicções saem sempre reforçadas. Como a de que os avanços civilizacionais, os direitos conquistados, que estão sob o ataque da extrema direita, e não só, não suportam retrocessos. E que a luta pela sua defesa é diária e nos mobiliza a todas e todos. Ou a de que os direitos ainda não estão universalmente garantidos e de que sem igualdade não há democracia.


Numa altura em que a extrema-direita está a crescer a olhos vistos, que atenção devemos ter à história do fascismo português e ao crescimento da extrema-direita?


O que me parece fundamental, Pedro, é olharmos para o que ficou por cumprir de Abril. É perceber que muitas expectativas saíram defraudadas, e que esse descontentamento é capitalizado por movimentos de extrema-direita. É perceber que os ataques ao Estado Social, aos direitos laborais, a política de salários baixos e vínculos precários, as crescentes desigualdades sociais, a impunidade de que gozam aqueles que mais têm, ao mesmo tempo que é aplicada mão pesada aos que vão perdendo o pouco que lhes resta, abrem espaço a movimentos populistas de extrema-direita.


E esses movimentos manipulam a desilusão, o desespero das pessoas. Afirmam-se anti-sistema quando tudo aquilo que fazem é viver à custa dele, servir-se dele. Arranjam bodes expiatórios para semear o ódio. Dizem tudo e o seu contrário porque não têm espinha dorsal.


Lembrar o que foi o fascismo, a quem serviu o fascismo, e toda a luta que foi necessário travar para conquistar os direitos e liberdades que hoje nos querem tirar é fundamental. Bem como é fundamental lutar pelo Estado Social, os direitos humanos, sociais, políticos, laborais já conquistados. E ir mais longe: exigir mais justiça, mais igualdade, mais democracia.


Quais São Os Seus Sonhos Para Portugal?


Os meus sonhos são, na realidade, as minhas lutas: ecologista, feminista, anti-racista e anti-capitalista.


E não são exclusivos para Portugal: Liberdade, Justiça Social e Climática, Democracia, Igualdade.


Sonho com / luto por uma sociedade mais colorida, livre de preconceitos e discriminações, em que a diversidade é respeitada e encarada como uma mais valia. Uma sociedade que rejeita a lógica heteronormativa e patriarcal e repudia qualquer tipo de exploração e dominação – colonial, social, política, económica… Que garante a justa distribuição da riqueza e dos recursos. Que pugna pelo pleno emprego e pelo emprego com direitos. Que é intransigente na defesa do Estado Social.



Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.


Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Pedro Antunes

13 De Agosto de 2021








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