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Entrevista A Emilie De Seabra

  • projectovidaseobras
  • Oct 29
  • 6 min read

Updated: Oct 30

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-Alertou no instagram “Ah, Mas És Bastante Funcional Até! Achas Que Sim?” Que impacto é que tem esta afirmação e de que forma é desconhecedora do que tem vivido e ouvido?


Sim, sou considerada funcional — mas esse “funcional” tem um custo muito elevado.

Desde cedo aprendi a imitar expressões faciais e comportamentos sociais sem compreender totalmente o seu significado. Tive uma infância solitária, porque nunca entendi verdadeiramente o conceito de brincar como as outras crianças. Refugiei-me na leitura, que era o meu espaço seguro e previsível.

Ser funcional significou adaptar-me continuamente às expectativas dos outros, até perder partes de mim nesse processo. As pessoas dizem: “Mas nem pareces desconfortável”. E eu penso — claro que não. É o que se chama masking, e faço-o há quarenta anos.

Essa suposta “funcionalidade” tem consequências invisíveis: exaustão extrema, sobrecarga sensorial, dores físicas, estados subfebris, shutdowns e meltdowns. Viver assim é habitar um limbo entre o que sou e o que o mundo espera que eu seja.

Portanto, sim — sou funcional. Mas à custa da minha saúde mental e física. E é precisamente por isso que detesto essa expressão, porque desvaloriza e invalida as nossas dificuldades, transformando a sobrevivência diária num falso sinónimo de sucesso.


-Abordou no instagram “Sair De Casa – A Que Custo?” Que importância tem o conhecimento sobre os enormes desafios com que tem de enfrentar diariamente para conseguir sair à rua?


Para a maioria das pessoas, sair de casa é algo simples. Para mim, é um verdadeiro desafio.

Carregar num botão para a cadeira de rodas avançar pode parecer um gesto banal, mas representa um mundo completamente novo depois de o meu corpo ter deixado de funcionar como antes.

A disautonomia (entre outras condições de saúde que tenho) afecta o sistema nervoso autónomo — aquele que regula tudo o que o corpo faz “sozinho”: a frequência cardíaca, a digestão, a pressão arterial e a temperatura. Quando esse sistema falha, tudo falha. Actividades banais como mudar de posição, comer, tomar banho ou levantar os braços podem desencadear uma crise, fazendo com que o meu corpo entre em pânico.

Em paralelo, o autismo faz com que eu viva constantemente sob risco de sobrecarga sensorial. O sol, o vento, o frio, os sons, o movimento das pessoas — tudo se torna intenso demais. Mesmo com headphones com cancelamento activo de ruído e óculos de sol, o impacto sensorial é inevitável.

O mundo exterior é um cocktail de estímulos do qual só me posso proteger até certo ponto. Por isso, cada saída, seja por necessidade ou para tentar criar momentos com os meus filhos, tem um custo físico e emocional. É um equilíbrio frágil entre a vontade de viver experiências e os limites que o meu corpo e o meu cérebro impõem diariamente.


-Fez as publicações Formações Perigosas divida em três partes. De que forma são prejudiciais estas formações, e como se pode combater este tipo de formações negligentes e pouco informadas sobre o autismo?


As formações sobre autismo que denunciei são prejudiciais porque transmitem informações falsas, ultrapassadas e capacitistas, influenciando negativamente centenas de profissionais da educação. Ao perpetuar ideias como a defesa da ABA (Applied Behavior Analysis) — uma prática com evidências de causar trauma e PTSD em pessoas autistas — ou ao ensinar a suprimir estereotipias e hiperfocos, estas formações promovem violência psicológica e desrespeito pela neurodiversidade.

Além disso, reforçam mitos diagnósticos (como a falsa ideia de que só se pode diagnosticar autismo aos 6 ou 7 anos) e comportamentos de prepotência institucional, onde se desacredita a palavra dos pais e se minimiza a importância de um diagnóstico precoce e adequado.

Estas formações ignoram o princípio fundamental de “nada sobre nós, sem nós”. Falar de autismo sem incluir pessoas autistas é eticamente inaceitável e perpetua a desinformação.

Para combater este problema, é essencial:

1. Revisão obrigatória de todas as formações por pessoas autistas.

2. Presença de um autista em cada sessão formativa ou acção de sensibilização.

3. Basear os conteúdos em evidência científica e experiência vivida, integrando profissionais de várias áreas (psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional, pedagogia) em colaboração com a comunidade autista.

4. Erradicar o capacitismo institucional, promovendo a escuta activa e o respeito pela auto-regulação e individualidade autista.

O objectivo não é “curar o autismo”, mas sim curar o capacitismo — e construir um sistema de ensino e saúde que entenda, respeite e valorize as diferenças neurbiológicas .


-Alertou no instagram sobre “A Infantilização Da Pessoa Com Deficiência – O Que É Isso?” De que forma se pode combater esta infantilização e mudando as mentalidades?


Enquanto pessoa autista, vivi muitas vezes a infantilização. Basta dizer “sou autista” para o discurso mudar — até por parte de profissionais de saúde. Passam a falar mais devagar, num tom condescendente, como se a minha compreensão diminuísse com o diagnóstico. Já cheguei a entrar numa urgência com um problema físico evidente e sentir que a prioridade médica se desviava para a área da psiquiatria, apenas por ser autista. Isso revela uma enorme falta de formação e sensibilidade na abordagem clínica.

Ao usar cadeira de rodas, essa realidade repete-se.

Em muitos atendimentos sou recebida com linguagem infantilizada, tom exageradamente doce ou compassivo, e até com pessoas que falam devagarinho, como se a deficiência motora implicasse défice cognitivo. Não implica. Estou numa cadeira de rodas, mas a minha capacidade intelectual e de comunicação permanece intacta.

É uma forma de capacitismo subtil, mas profundamente desgastante, porque retira dignidade e igualdade no trato. O que precisamos não é de piedade, é de respeito e competência informada.

As seguradoras também discriminam pessoas com deficiência, não liquidando logo as apólices, mesmo estando mais que reunidas as condições. Tentam cansar a pessoa doente e debilitada já.

Combater isso só falando naturalmente e sem tabus da deficiência visível, invisível, dar a cara. Hoje em dia há páginas fantásticas no Instagram que tal como a minha educam para a diferença de forma positiva e baseada em factos e experiências pessoais. É só querer aprender.


-Fez duas publicações para celebrar o “Dia Da Consciencialização Do Autismo.” Em que medida pode haver uma total consciencialização sobre a pessoa com autismo, e pelo fim do preconceito, pelo fim das TERAPIAS ABA e da negação existente pelos profissionais de saúde? E que impacto é que a negação e as terapias podem ter nas pessoas com autismo?


As terapias ABA — Applied Behavior Analysis — têm vindo a ser amplamente reconhecidas como nocivas, sobretudo pelos próprios adultos autistas que as experienciaram. A longo prazo, estão associadas a transtorno de stress pós-traumático (PTSD). É verdade que muitos pais relatam “resultados”, mas é importante perceber a que custo.

A ABA baseia-se em recompensa, castigo e repetição exaustiva, frequentemente com reforços alimentares, durante 40 horas por semana. O objectivo é “normalizar” comportamentos — não compreender a pessoa autista. É um processo de condicionamento comportamental, semelhante à domesticação, que ensina a mascarar traços autistas em vez de promover autonomia, segurança e bem-estar.

Infelizmente, em Portugal , e no mundo inteiro,ainda existem locais que vendem a promessa de cura e de normalidade a preços astronómicos, explorando a vulnerabilidade dos pais. A ciência e os testemunhos da comunidade autista mostram claramente as consequências psicológicas graves dessas práticas. O mais recente estudo europeu sobre os efeitos da ABA em adultos confirma isso mesmo (EUCAP, 2024: https://eucap.eu/2024/04/02/aba-statement).

Quanto ao diagnóstico, ele não é um rótulo — é um direito. Um diagnóstico salva vidas, porque permite compreender o que sentimos, aceder a apoios e ganhar autonomia. Infelizmente, ainda há médicos que o apresentam como uma sentença e pais que o escondem dos filhos. Mas as crianças já sentem que são diferentes, já percebem que não encaixam. O diagnóstico não cria a diferença — apenas lhe dá um nome e um caminho de compreensão.

O rótulo tem o peso que lhe dermos. Para mim, ele representa identidade, entendimento e libertação — nunca limitação.


-Escreveu no instagram “Vamos normalizar..…” em que medida pode mudar mentalidades, comportamentos, e aprender a estar e conviver com pessoas que estão em cadeira de rodas?


-Vamos normalizar não assumir que quem está numa cadeira de rodas teve um acidente

-Não perguntar o que aconteceu

- Não tornar a cadeira de rodas numa tragédia

- Não tratar a pessoa em cadeira de rodas como 'coitadinha'

- Não infantilizar a pessoa com deficiência

- Não fazer perguntas invasivas sobre dados de saúde

- Algumas perguntas são demasiado pessoais e podem ser um gatilho para muita gente e podem fazer com que revivamos maus momentos


-Quais São Os Seus Sonhos Para Portugal?


Gostava que todas as pessoas — e, sobretudo, todos os pais — educassem os seus filhos para a aceitação da diferença, seja ela visível ou invisível. Que ensinassem, desde cedo, o respeito pela diversidade, combatendo a xenofobia, o racismo, a homofobia e a transfobia.

Sonho com uma sociedade verdadeiramente tolerante e inclusiva, onde ser diferente não signifique ser excluído.

Em minha casa, fala-se de autismo, de pessoas invisuais, de diferentes raças e orientações, com naturalidade — muitas vezes à mesa, durante o jantar, quando surgem perguntas. É assim que se constrói empatia: com diálogo aberto e sem tabus.

Sei que não posso mudar o mundo sozinha. Mas se conseguir influenciar a mentalidade de dez pessoas, e cada uma delas fizer o mesmo com outras dez, então terei contribuído para uma mudança real. Porque a transformação começa em casa, nas conversas simples e na educação para o respeito.




Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

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