top of page

Entrevista a António Louçã – Historiador e Mestre em História Contemporânea


Escreveu “Negócios com os nazis. Ouro e outras pilhagens”; "Hitler e Salazar. Comércio em tempos de guerra"; "Nazigold für Portugal"; “O segredo da Rua do Século. Ligações perigosas de um dirigente judeu com a Alemanha nazi (1935-1939)”. Tem estes livros entre outros sobre o nazismo, a relação com Portugal, os seus negócios, pilhagens. Q: Como é para si poder abordar o que foi a história do nazismo, e as relações com Portugal?

A esta lista, acrescento ainda “Conspiradores e traficantes”, porque foi um livro que fiz a partir de pontas soltas que tinham ficado das investigações sobre o ouro nazi, mas que afinal acabaram por ser pistas muito interessantes. A partir delas, percebia-se que o fascismo e o nazi-fascismo não eram uma realidade compacta e homogénea, mas sim altamente contraditória. O episódio bem conhecido do Verão de 1934, em que Mussolini ameaça a Alemanha nazi de entrar com as suas tropas na Áustria para enfrentar a Wehrmacht, e em que Hitler recua perante a ameaça, foi afinal o afloramento mais dramático de uma rivalidade interfascista de vários anos. O Portugal salazarista tinha, nessa rivalidade, uma posição inicialmente mais pró-italiana, que também se traduzia numa preferência por fornecimentos de armas italianas. Mas depois, com o tempo, a Alemanha nazi vai-se impondo na galáxia de pequenas, médias e grandes potências fascistas e acaba por tornar-se o astro-rei desse sistema. A Itália inclina-se perante a hegemonia alemã e o Portugal salazarista, com mais forte razão, adopta uma Realpolitik acomodatícia, passa a comprar à Alemanha muito mais armamento do que à Itália ou mesmo à Inglaterra. E essa é uma das explicações para depois, durante a guerra, a Alemanha ter sempre tantos trunfos negociais quando se trata de discutir os fornecimentos de volfrâmio português. O ouro nazi desempenha aí um papel, não digo residual, mas acessório, subordinado à compensação directa de mercadoria contra mercadoria. Claro que o ouro nazi, para além desse significado económico, de uma importância relativa, tem um significado político muito importante, porque mostra quantos escrúpulos a ditadura portuguesa estava disposta a espezinhar para manter o fluxo de pagamentos da Alemanha. Ao trabalhar sobre estes temas, achei, por exemplo, fascinante descobrir também este mecanismo de adaptações pragmáticas nas biografias de três figuras que são protagonistas da história sobre os negócios de armamento: Hans Eltze, Fritz Mandl e Waldemar Pabst. Politicamente, todos eles eram inicialmente mais próximos do fascismo italiano que do nazismo. Mas, quando se clarifica quem manda no campo fascista, todos eles encontram um modus vivendi com o poder existente. Afinal, trata-se de homens de negócios, não de homens de princípios. O fascismo nunca tem que ver com princípios. E de Realpolitik pode também falar-se a propósito de Moses Amzalak, o líder incontestado da comunidade judaica portuguesa. Em teoria, pensaríamos que ele devia achar preferível uma estirpe de fascismo mais à italiana ou à portuguesa, sem a virulência anti-semita do nazismo. Mas, quando o nazismo se impõe claramente como a mais forte potência anti-comunista da época, Amzalak torna-se um grande amigo dos nazis. Na dúvida, quando é obrigado a escolher entre a política externa de Salazar e a de Hitler, ele escolhe a de Hitler. E isto é assim pelo menos até 1938, quando ele se afasta de “O Século” e deixamos de ter registo tão frequente do seu posicionamento político.

Tem igualmente outros trabalhos sobre o nazismo e o fascismo português desde 1998. Q: O que o tem motivado a trabalhar nestes temas e o que tem aprendido sobre esta história negra da Europa?

Há vários caminhos possíveis para alguém se empenhar na investigação histórica. Há os e as investigadoras, respeitáveis, que desde o início se dedicam à investigação, procuram factos, esforçam-se por interpretarem esses factos correctamente. E há as pessoas que se encontram empenhadas numa actividade transformadora da sociedade, mas sabem que precisam de entender aquilo que querem transformar. Por exemplo, o Fernando Rosas explica que, como militante político, sentiu a necessidade de entender mais profundamente a grande capacidade do regime salazarista para sobreviver durante tanto tempo. Claro que também existe nele uma motivação científica em estado mais próximo do quimicamente puro, de procurar a verdade pela verdade. E a partir de certa altura o regime salazarista já não existia e, portanto, já se tratava de fazer a sua autópsia e de encontrar uma verdade sem qualquer interesse instrumental imediato. Mas houve uma primeira motivação, que foi a de entender melhor os mecanismos de funcionamento do inimigo. Por outras palavras, uma motivação militante pode ser a mãe de uma obra científica de referência, como é o caso. Pela minha parte, numa escala muito mais modesta, também parti de uma motivação militante para me envolver na investigação. E ainda hoje continuo a pensar que quem investiga na área das ciências humanas deve fazer um esforço de objectividade, deve procurar ser objectivo, mas não pode ser imparcial. Se apregoar imparcialidade, estará a cometer um embuste. A objectividade significa que não se procura na investigação argumentos para propagandear uma estratégia política previamente definida. Se se chega, no decorrer da investigação, a conclusões contraditórias com as convicções anteriores de quem investiga, será um bom motivo para repensar o ponto de partida, ou parte dele. Eu já repensei algumas convicções, não no sentido de renegar a visão crítica que trazia de trás, e sim no sentido de a tornar mais crítica. Se alguém investiga, por exemplo, o flagêlo da malária, encontra no decorrer da investigação evidências palpáveis de que os grandes laboratórios farmacêuticos menosprezam o investimento na luta contra a malária porque as vítimas são pobres e insolventes. Então o investigador conclui que a ganância dos laboratórios é responsável por milhares de mortes. Ora, essa conclusão objectiva não tem nada de imparcial, é devastadora para os laboratórios. Quanto mais objectiva, menos imparcial – e haverá certamente algum departamento de relações públicas que a classifique como conclusão militante.

Num momento com um grande crescimento de movimentos de extrema-direita um pouco por todo o mundo inclusive em Portugal. Q: Como é para si poder abordar um dos períodos mais hediondos da história mundial sobre o nazismo Alemão e o fascismo Português?

A investigação histórica nunca está concluída, há sempre temas relevantes que não foram plenamente investigados, ou por ainda não terem despertado a atenção da comunidade científica, ou por não estarem disponíveis fontes de importância decisiva. Mas o conhecimento da verdade histórica não depende só, e muitas vezes não depende essencialmente, desses factores científicos. Há constatações pacíficas, irrefutáveis, que a certa altura começam a ser postas em causa, porque o ambiente político e social passou a acolher melhor os contos de fadas sobre a expansão da fé e do império, ou sobre os comunistas que comiam criancinhas ao pequeno almoço. Claro que nos regimes ditatoriais ou autoritários as fábricas de lendas funcionam em laboração contínua. O regime de Erdogan nega o genocídio arménio e lança anátemas sobre qualquer governo ou parlamento estrangeiro que reconheça esse genocídio. O regime de Orban diz que os muçulmanos estão a invadir a Europa e que o judeu George Soros conspira para fomentar essa invasão. O regime de Putin diz que Lenine era um fantoche para esconder a identidade do verdadeiro dirigente da revolução de Outubro - Trotsky, um judeu. Mas os governos populistas de regimes que ainda são democráticos também sabem mentir com quantos dentes têm na boca. O governo de Netanyahu nega o genocídio arménio quando quer aproximar-se de Erdogan e afirma-o quando está em rota de colisão. O mesmo Netanyahu já foi ao ponto de dizer que foram os palestinianos quem deu a Hitler a ideia de criar as câmaras de gás. Berlusconi dizia que Mussolini nunca matou ninguém. E mesmo em Portugal, que tinha nos anos 90 o Governo do respeitável António Guterres, a reacção às revelações sobre o envolvimento de Salazar na receptação de ouro roubado durante a guerra foi aquele reflexo pavloviano de tomar as dores do fascismo, como se um Governo dito socialista, 20 anos depois da revolução, devesse dar provas de uma solidariedade nacional com a ditadura. Voltando à questão da extrema-direita, que é mais limitada que a das ideologias nacionalistas, quem se opõe à vaga actual, estará sempre a tropeçar nas mais diversas deturpações da história e constantemente se vê obrigado a combatê-las. A exaltação nacionalista, chauvinista, patrioteira, é inimiga figadal da objectividade histórica. A luta pelo futuro também é uma luta pelo passado, embora não se resolva nesse terreno.

Q: Que importância dá ao seu trabalho de investigação sobre o nazismo, sobre as relações do fascismo português com o nazismo, e o trabalho sobre a memória dessa época?

A importância é limitada. Há investigações históricas de grande fôlego, da autoria de eminentes personalidades da comunidade científica, e mesmo essas investigações têm um raio de acção limitado. Podem lançar luz sobre o que se passou, sobre o como e o porquê, sobre o papel das pessoas, das classes e das instituições. Ao ajudarem a conhecer esse passado recente, estarão a contribuir para se conhecer fenómenos do presente, que têm traços comuns com os de então. Quem quiser impedir a repetição de tragédias históricas daquela dimensão, ou outras piores – aqui não seria uma repetição em formato de comédia, ao contrário do que dizia Marx -, deverá conhecer a fundo esses trabalhos de fôlego. Numa coisa não devemos enganar-nos: a História, a investigação histórica, não converte ninguém à defesa de boas causas, nem existe para isso. Não haverá mais pessoas a combaterem os populismos pós-fascistas por haver boa investigação histórica. Pode é haver pessoas que o combatam mais apetrechadas com a arma da crítica.

Q: Acredita que pode ainda despertar as pessoas para o que se viveu no nazismo e no fascismo?

A investigação histórica não contribui para despertar ninguém. Ela pode ser muito útil a pessoas que estão despertas, que despertaram por outras vias. Já a militância política, se trabalhar com hipóteses estratégicas acertadas, se construir colectivos dinâmicos e actuantes, e se, além disso, for bem sucedida, se mostrar a viabilidade de propostas arrojadas, essa sim, pode inspirar confiança num caminho e encorajar as pessoas a mobilizarem-se. O interesse pelo passado histórico recente não vem antes do gosto pela mobilização, pode quando muito vir depois.

Escreveu também “A Revolução Russa - 100 Anos Depois". Q: O que podemos e devemos aprender sobre o seu estudo sobre a história da Revolução Russa?

Participei com um capítulo nesse livro de várias outras pessoas - Francisco Louçã, Thaiz Senna, Constantino Piçarra, José Manuel Lopes Cordeiro, Miguel Pérez Suaréz, Fernando Rosas e Rui Bebiano. Não sei se alguém aprenderá alguma coisa do capítulo que escrevi, mas eu aprendi, ao escrevê-lo, detalhes da história que conhecia apenas em termos gerais, sobre o último ano da vida de Lenine. Nesse último ano, o dirigente bolchevique, já marcado por crises graves da doença que irá vitimá-lo, empreende uma reflexão profunda sobre os cinco anos de regime soviético e chega a conclusões surpreendentes e muito auto-críticas. Ele descobre, por exemplo, que pequenas repúblicas soviéticas como a Geórgia, e outras não tão pequenas como a Ucrânia, estão novamente a ser espezinhadas como nos tempos do czar. Consegue ainda fazer aprovar um projecto de constituição que garante a qualquer república soviética o direito de se separar da URSS se entender e quando entender. Além disso, os únicos ministérios comuns de toda a URSS devem ser os comissariados do povo para a defesa e para a política externa. Ou seja, cada república deverá ter o seu próprio ministério para a economia, para as finanças, para a educação, para a saúde, etc.. Isto tem implicações muito profundas, porque mostra que Lenine, ciente da derrota da revolução alemã, já não conta com uma transformação socialista a curto prazo e certamente não tenciona lançar nos próximos tempos nenhum projecto megalómano, como os planos quinquenais para toda a URSS, como a industrialização em marchas forçadas, como a colectivização forçada da agricultura. Por outro lado, ao perguntar-se por que motivo as nações não russas voltam a ser oprimidas, ele começa a descobrir que existe uma doença muito profunda no regime, um autoritarismo da burocracia, que reabilita a cultura prepotente e sobranceira dos funcionários czaristas. A certa altura, a sua reflexão começa a ir muito além da questão das nacionalidades e passa a centrar-se na questão da burocracia. No seu leito de morte, Lenine começa então a romper com figuras em que até aí depositava certa confiança (Estaline, Djerjinsky, Ordzhonikidze), tenta reaproximar-se de Trotsky e propor-lhe uma aliança contra a burocracia (mas Trotsky ainda não entende o que está a passar-se com a mesma agudeza do líder agonizante, responde-lhe com evasivas, ou diz que sim, mas depois vacila). Nada disto era muito óbvio ou fácil de ver. Rosa Luxemburgo, uma das melhores cabeças do socialismo internacional, tinha deixado no seu escrito sobre a revolução russa indicações que em última análise caucionavam a política de Estaline ou Djerjinski contra as pequenas nações e mais tarde poderiam caucionar a política de Estaline, com a colectivização forçada contra os pequenos camponeses. Não podemos especular se Rosa, confrontada com a realidade do chauvinismo russo e com a hecatombe social daquela colectivização atrabiliária teria intuído as perigosas ambiguidades desse escrito, com a mesma agilidade com que descobriu, nos dois últimos meses antes de ser assassinada, o potencial dos sovietes como governo de poder proletário. Sabemos, sem especular, que muito disto escapou mesmo à perspicácia de Trotsky. O último ano da vida de Lenine é uma lição de dialéctica, de avaliação auto-crítica, de confrontação exigente entre os planos, os esquemas mentais, as expectativas e, por outro lado, os factos duros como punhos, que obrigam a rever muitos desses esquemas mentais. Digamos que tem algo em comum com os últimos anos da vida de Marx, bem retratados no ensaio que sobre ele escreveu Aldo Casas. Também esses foram anos de questionamento sobre dogmas que alguns marxistas demasiado zelosos se tinham apressado a adoptar. Lenine, também nisso discípulo de Marx, continuou até ao fim a querer aprender com a realidade dinâmica da luta de classes e a admitir as surpresas que ela constantemente nos reserva.

Participou em 2019 no documentário “A Revolta de Beja” de Edgar Feldman e escreveu o livro “Varela Gomes”, um dos militares e revolucionários que esteve nesta revolta.

Q: O que nos pode falar sobre esta revolta contra a ditadura fascista portuguesa e sobre o seu trabalho acerca do Varela Gomes?

Varela Gomes e Manuel Serra foram os dois grandes protagonistas da Revolta de Beja. Houve obviamente uma fase conspirativa, de preparação da revolta, com diversas peripécias que estão relatadas neste livro e noutros, no documentário de Edgar Feldman e noutros. Mas o mais importante não é a fase conspirativa – o mais importante é a raiz popular da revolta. A campanha eleitoral de Humberto Delgado tinha galvanizado centenas de milhares de pessoas. A fraude eleitoral para colocar Américo Thomás na presidência tinha suscitado um movimento de greves espontâneas que só não se transformaram numa greve geral revolucionária porque o PCP, como admitiu Álvaro Cunhal ao fugir da prisão, hesitou em lançar uma palavra de ordem unificadora.

Depois disso, o início da guerra colonial levou a um primeiro reflexo de cerrar fileiras em torno de Salazar. Só uma vanguarda mais combativa se manteve firme em combater a ditadura. Num livro sobre os últimos dias de Delgado, em Argel, Raul Zagalo, descreveu admiravelmente o impacto psicológico que, anos depois, a explosão de massas de 1958 continuava a ter sobre os protagonistas, a começar pelo próprio general, mas aplicável naturalmente a todos insurrectos de Beja, desde Varela Gomes ao próprio Raul Zagalo. É como se tivessem mergulhado nessa poção mágica desde a sua adolescência política e tivessem de conservar para sempre a memória indelével da explosão. Varela Gomes foi a principal figura pública dessa vanguarda em refluxo, ao dar a cara para a campanha da oposição nas eleições legislativas de 1961. Quando a oposição boicotou mais uma fraude eleitoral anunciada, as margens para uma actuação legal reduziram-se praticamente a nada. Aí colocou-se o dilema de preparar a próxima vaga que pudesse abalar a ditadura, ou de passar imediatamente à acção revolucionária. Varela Gomes defendia inicialmente a primeira alternativa, mas Manuel Serra entrou clandestinamente em Portugal com a agenda de Delgado, que previa o levantamento armado até ao final do ano de 1961. Perante uma decisão, dita irrevogável, de partir para a acção armada, Varela Gomes acabou por aceder a dirigir militarmente a operação. Quis a ironia da História que ele, inicialmente tão relutante, por avaliar sobriamente a nova conjuntura política, tenha sido a pessoa que mais contribuiu para o assalto ao quartel se ter tornado realmente irreversível. Em todo o caso, o que interessa aqui sublinhar é que a revolta de Beja não foi um golpe e sim o eco diferido e tardio de um grande movimento de massas. Varela Gomes era, no rescaldo da vaga Delgadista, o principal continuador da linha de massas e por isso foi o principal agitador da campanha eleitoral de 1961. A sua acção em todo esse ano ajuda a dissipar o mito do putschista e o mito do militar enfeudado a um partido. Ele era a expressão política mais avançada do movimento de massas de 1958-1961. É esse ADN político, por assim dizer, que explica o papel que desempenhou no PREC, bem como a coragem e independência com que enfrentou a contra-revolução Novembrista. O seu protagonismo político termina aí. Mas, no momento em que Otelo capitulava, Varela Gomes sai de cena dignamente. Pode dizer-se dele que foi o primeiro militar a empunhar as armas contra a guerra colonial e o último a depor as armas perante a contra-revolução vitoriosa. O mesmo ADN político explica que nos tenhamos encontrado muito mais tarde, já nos anos 1980, que tenhamos sido camaradas e amigos, apesar de um fosso geracional de três décadas, e de naturais diferenças de percurso e diversidade de referências. Mas havia em comum algo mais forte do que essas diferenças e diversidades: a tal poção mágica que os insurrectos de Beja provaram primeiro em 1958 e que para a minha geração veio com a Revolução dos Cravos.

Fez o documentário com Sofia Leite “Portugueses nas Trincheiras”. Q: Na sua opinião o que devemos aprender e conhecer sobre esta guerra?

Sobre a Primeira Guerra Mundial, fomos co-autores desse documentário da RTP em 2008, a Sofia Leite e eu. Quase dez anos depois, voltei ao tema com um documentário desdobrado em duas partes, sobre a chamada batalha de La Lys. Qualquer destes trabalhos não constitui uma reflexão sobre a guerra no seu conjunto, mas apenas sobre a participação portuguesa, que afinal é uma nota de rodapé num grande conflito bélico. “Portugueses nas trincheiras” é uma história de abandono – o abandono de soldados provincianos, que muitas vezes nunca tinham visto outro horizonte a não ser as serranias à volta da sua aldeia, que nunca tinham visto o mar, que nunca tinham ido à escola, que nunca tinham estado numa cidade, e de repente dizem-lhes que têm uma pátria e têm de ir morrer por ela lá muito longe, numa terra fria onde se falam línguas desconhecidas. Quando os soldados são enterrados na lama das trincheiras, ficam lá abandonados, gozando menos licenças que os ingleses ou franceses, a comerem rações intragáveis, a serem comidos pelos piolhos e sem poderem voltar para casa, porque a rotação das tropas não é organizada. Depois, quando são capturados aos milhares no dia 9 de abril de 1918, ficam esquecidos nos campos de prisioneiros e, com o fim da guerra, a República não se preocupa em trazê-los de volta. Providencialmente, fizémos um achado extraordinário, que simboliza essa história de abandono. Encontrámos a gravação áudio de dois prisioneiros portugueses num campo de concentração alemão. Comprámos uma delas e pusémo-la no documentário. O canto do soldado João Neves, gravado há mais de cem anos, dizia: “As grades desta prisão, lá de fora metem medo. Que fará quem está cá dentro, a cumprir o seu degredo?”. Além disso, encontrámos a ficha de prisioneiro que os alemães tinham feito sobre ele e ainda pudémos ir à sua aldeia natal e entrevistar familiares que o conheceram, porque ele sobreviveu e voltou. E a história é de abandono até ao fim: o homem era estimado na terra, mas sofria de stress pós-traumático, falava sozinho, tinha acessos de loucura e acabou por morrer sozinho deitado num palheiro. O documentário sobre La Lys é um prolongamento deste. Falou-se muito por aí sobre a batalha, mas não houve batalha nenhuma. Quem inventou uma “batalha” foi a fábrica de mitos chauvinistas, que já funcionava no tempo da República e que o Estado Novo, naturalmente, manteve. O que sucedeu em La Lys foi muito mais simples: a meio da madrugada, a artilharia alemã, com uma boca de fogo de dez em dez metros, numa frente com 11 Km, despejou milhão e meio de granadas sobre as trincheiras portuguesas. Causou umas quatro centenas de mortos. Dos sobreviventes portugueses, quem pôde fugir, fugiu. Quem não pôde, levantou os braços e rendeu-se à chegada da infantaria alemã. Houve milhares de prisioneiros. O rácio entre prisioneiros e mortos é quatro vezes mais alto do que a média das batalhas daquela guerra. Houve também histórias de heroísmo? Sem dúvida. Foi heróico o bom senso de milhares de soldados Schweik, portugueses, que tinham entendido a natureza daquela carnificina. Sabiam que aquela não era uma guerra justa e que não deviam deixar-se matar por ela. Foi heróica a tenacidade com que lutaram pela vida nos campos de prisioneiros, resistindo à fome, ao frio, à doença, ao isolamento. Foram até heróicos casos como o do soldado “Milhões”, não por ter abatido dezenas de alemães, o que é certamente um mito, mas por ter salvo uma criança e carregado com ela na retirada, quando já levava às costas todo o seu equipamento.

Q: Em termos gerais, quais são os seus sonhos para Portugal?

Eu não diria sonhos, porque querer alguma coisa é querer que ela se realize em estado de lucidez e vigília. Isto não tem nada a ver com um possibilismo tacanho, porque muitas vezes o único realismo é exigir o impossível, como diziam os soixante-huitards. Por exemplo: não é realista querer que as multinacionais do sector energético, do sector automóvel, do transporte aéreo, da indústria química ou outras se auto-limitem na produção de CO2. Quem quiser, de forma realista, travar as alterações climáticas tem de exigir o que hoje parece impossível: tem de haver um poder da sociedade, dos interesses da grande maioria, que se imponha às multinacionais e acabe com o sistema que só funciona para fazer lucros. Se isto fosse impossível, mais valia esquecermos qualquer veleidade de travar as alterações climáticas. Por sermos realistas, devemos querer este “impossível”. Os jovens que manifestam em defesa do clima nem sempre dizem claramente que querem ir tão longe; mas os políticos da velha nomenklatura pressentem que as manifestações das sextas feiras apontam para aí, sentem o perigo e perdem as estribeiras, insultam os jovens, insultam a Greta Thunberg, passam-lhes a todos e todas atestados de menoridade. Mas quem tenha noção da necessidade de uma ruptura com as lógicas economicistas só pode sentir-se encorajado por ver as sextas feiras pelo clima. Se há tanta gente a querê-la, e gente tão jovem, essa ruptura não é tão impossível como parecia. Por outro lado, este “impossível” não pode ser pensado para um país. Não pode haver políticas nacionais de combate às alterações climáticas. De que serviria tê-las em Portugal, se em Espanha, França, Alemanha, Estados Unidos, Rússia, China, nada se fizesse? E, para uma política internacional, não bastam acordos de Paris ou protocolos de Quioto. Os poderes políticos existentes no mundo actual são como órgãos executivos do mundo dos negócios. Uns, como Obama, assinam acordos e protocolos de efeitos irrisórios, e depois vêm outros, como Trump, e anulam-nos unilateralmente. Para haver uma política global e eficaz de defesa do planeta seria necessário que passasse a haver poderes políticos com um Leitmotiv oposto ao que vigora actualmente: não o interesse dos negócios, mas o da grande maioria da humanidade. E isso, terão de perdoar-me a ideia antiquada, só se faz com uma revolução mundial.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Ana Filipa Monteiro

Recent Posts 
bottom of page