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Entrevistando: Helena Cabeçadas


Fotografia: Bruxelas, 1972


Escreveu o texto para o Esquerda.Net Moçambique, Final dos anos cinquenta e o livro Moçambique, ambos sobre uma África que imaginou, o choque duma África vivida, e uma homenagem ao trabalho de geógrafo que o seu pai e colegas fizeram nessa época.

Como é para si poder abordar as suas vivências e a realidade de África na altura colonial e fazer homenagem ao seu pai e ao seu trabalho?

Quando escrevi o livro “Moçambique – Sonhos, Vivências e Memórias” (2015) procurei, em última análise, fazer uma homenagem ao trabalho desenvolvido, ao longo de décadas, pelo meu pai e pelos seus colegas, da Missão Geográfica de Moçambique. Tratava-se de um trabalho científico e exploratório muito duro e complexo, tentando estabelecer, de modo tanto quanto possível rigoroso, as fronteiras da colónia, estudando as suas características geográficas. Os engenheiros geógrafos ficavam assim, durante meses, completamente afastados da sua cultura, o meu pai era muitas vezes o primeiro branco a aparecer naqueles locais recônditos. Mas era, ao mesmo tempo, um mundo fascinante, uma natureza sumptuosa, de florestas magníficas e animais selvagens, habitada por populações pacíficas, acolhedoras, que viviam em equilíbrio com essa natureza nas suas aldeias de palhotas… E foi essa África mítica que eu idealizei, ainda em Lisboa, através das cartas, fotografias e filmes do meu pai. Assim quando, aos 8 anos de idade, em 1955, cheguei a Lourenço Marques, senti um certo choque com a realidade colonial vivida na cidade. Tratava-se de um regime quase de apartheid, em que os indígenas eram discriminados de forma violenta. Eu era ainda uma criança, mas tinha dificuldade em compreender e aceitar essa discriminação, que me surgia como injusta. Daí a minha ambivalência em relação às minhas vivências africanas, oscilando entre a repulsa, por uma sociedade colonial rigidamente segregada, e um grande fascínio por uma natureza esplêndida e sedutora.

Acredita que pode ainda despertar as pessoas para a história colonial e para o que os indígenas e africanos viviam?

Penso que nos compete desmistificar aquilo que foi designado pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freire como o ”luso tropicalismo”, segundo o qual os Portugueses não seriam racistas e que nas colónias portuguesas se vivia um ambiente de confraternização e miscigenação, sem conflito. A realidade era bem diferente e é importante conhecê-la, na sua violência e crueldade, ainda que nos custe a nós, como colonizadores, admiti-la. Não quero dizer que todos os Portugueses das colónias fossem racistas, mas o sistema colonial impunha uma segregação profundamente injusta às populações indígenas, que estavam ali para servir os brancos. A história colonial está agora a ser feita entre nós, mas também, e sobretudo, nos países que foram colonizados.

Escreveu igualmente o livro “Filadélfia A Preto e Branco”, que consiste num retrato da sua vivência em Filadélfia nos anos 80, na sequência das reformas neo-liberais de Ronald Reagan, numa altura que a cidade estava em decomposição, arruinada por drogas, lutas de gangues, com a violência das tensões raciais, a corrupção…

Como foi para si trabalhar/escrever sobre este período dramático da história de Filadélfia?

Foi uma experiência muito intensa e de grandes desafios, em termos profissionais. Mas, por muito difícil que seja, é sempre enriquecedor confrontarmo-nos com situações novas e culturalmente diferentes. É engraçado porque, pela primeira vez na minha vida, nos EUA, tomei consciência da minha identidade como Europeia. Em Bruxelas, onde vivera dez anos de exílio, tinha tomado consciência da minha identidade como Portuguesa e, anos mais tarde, na China, onde vivi cerca de cinco anos, tomei consciência da minha identidade como Ocidental. Mas voltando a Filadélfia, creio que o principal choque, para mim, foi constatar a violência do racismo, que impregnava, de modo profundo, todas as relações sociais, reflectindo-se na organização e ocupação do espaço da cidade. Por outro lado, as reformas neo liberais de Ronald Reagan (as “reaganomics”) contribuíam para acicatar todos os conflitos, as desigualdades sociais eram gritantes, os sem abrigo (street people) acumulavam-se nas ruas…Tive, no entanto, uma experiência profissional fascinante no Philadelphia Psychiatric Center, onde tive o privilégio de trabalhar com pessoas de uma qualidade excepcional, no Drug Treatment Center, cujo Director, Jeff Marks, era um poeta e terapeuta familiar. Esse é, aliás, um dos aspectos interessantes dos EUA, onde podemos encontrar do pior e do melhor.

Escrever o livro foi fácil e permitiu-me perceber que a cidade de Filadélfia tinha evoluído num sentido positivo desde então, graças a políticas autárquicas inteligentes, nomeadamente o Mural Arts Program, que lhe permitiu tornar-se na capital da Street Art, transformando, através desta, e com a participação activa dos jovens, bairros degradados em bairros nos quais a população gosta de viver, desenvolvendo sentimentos de pertença e de comunidade.

Escreveu também Bruxelas, Cidade de Exílios sobre a sua experiência na entrada universitária, no seu exílio sobre a enorme confluência política que existia – Maoista, Comunista, Socialista, Anarquista, dos movimentos pacifistas contra a guerra no Vietname, do apoio à revolução cubana, da defesa dos direitos cívicos…

Sim, foi uma experiência exaltante, para mim, entrar na Universidade Livre de Bruxelas, no início do ano lectivo de 1965/66. Eu tinha 17 anos na altura, tinha sido expulsa, em Portugal, de todas as escolas do país, por um tempo indeterminado. Vinha de um país de partido único, submetido a uma longa ditadura, no qual toda a diversidade de pensamento era excluída e ferozmente perseguida. De modo que, ver por todo o lado, logo à entrada da Universidade, bancadas com livros e bandeiras das mais diversas opções ideológicas: socialistas, comunistas, anarquistas, liberais, maoistas, dos movimentos pacifistas contra a guerra do Vietname, pela libertação dos povos colonizados, de apoio à revolução cubana, aos movimentos dos direitos cívicos, do Black Power…as bandeiras vermelhas e negras agitando-se alegremente ao som das músicas e canções revolucionárias, como a Internacional ou as canções de protesto francesas e anglo saxónicas…foi uma maravilha! Era fantástico ter a possibilidade de ler e discutir em liberdade os mais diversos textos políticos e filosóficos.

O que aprendeu com esta confluência política? Em que é que a fez crescer enquanto pessoa e comunista?

O debate de ideias faz-nos crescer, sem dúvida. Mas não era só o debate de ideias, era a própria realidade do exílio, as suas dificuldades, a solidão, mas também as solidariedades, as profundas amizades que se criavam em circunstâncias difíceis, faziam-nos crescer. O ambiente cosmopolita da

Cité Universitaire onde eu vivia também era muito estimulante, com jovens vindos de todas as partes do mundo, América Latina, África, Europa…até mesmo da Turquia e do Irão, havia muitas raparigas, todas elas lindas e inteligentes

Esteve na resistência anti-fascista e na clandestinidade. Esteve presa e exilada.

Em relação à sua adesão à política, ao PCP e à militância antifascista feminina, refere no Antifascistas da Resistência «…Sentíamo-nos heroínas de filme ou de romance. Falo no feminino porque a minha experiência directa se passava, de facto, num universo adolescente feminino, dado que só tinha irmãs e os liceus eram exclusivamente femininos. O anticomunismo violento do regime salazarista ainda mais exacerbava a atracção que a actividade clandestina do PCP exercia sobre nós».

Como foi para si viver e combater esta violência contra as mulheres comunistas e antifascistas e a Ditadura Fascista? Que aprendizagens obteve dessa luta?

Creio que o que me despertou para a política foram as eleições do General Delgado, em 1958. Eu era ainda muito garota, teria uns 10, 11 anos, mas entusiasmei-me imenso. Quando constatei as perseguições feitas aos seus apoiantes, fiquei muito revoltada. Depois houve a tomada do paquete S.ta Maria pelo Henrique Galvão, a crise académica de 1962, as grandes revoltas estudantis, o 1.º de Maio de 1962, no qual estive presente, com 14 anos, e que foi brutalmente reprimido pela polícia de choque. Tudo isso contribuiu para a minha radicalização. Adiro ao Partido Comunista aos 15 anos, era a única força política clandestina organizada na altura. Desenvolvi então actividades políticas no âmbito da Pró Associação dos Liceus (semi legal) e do PCP (clandestino). Na sequência dessas actividades fui presa na Cantina Universitária, mas por pouco tempo e fiquei em Caxias só dois ou três dias. Tive sorte, a minha “controleira” do PCP não falou, embora submetida a tortura, e eu acabei por ser solta, sem ter sido torturada. Tenho imenso respeito por quem foi torturado e não falou na PIDE.

Na sequência desta prisão fui expulsa de todas as escolas do país e impedida de acabar o Liceu. Foi quando parti para a Bélgica, onde fiz o exame de admissão à Universidade Livre de Bruxelas e onde permaneci durante dez anos, até ao 25 de Abril. Aí, embora noutro contexto, continuei empenhada na luta antifascista, onde trabalhei (clandestinamente) no SEPE (Secretariado dos Estudantes Portugueses no Estrangeiro), colaborei com a FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional), empenhando-me também na criação da Associação dos Portugueses Emigrados na Bélgica (A.P.E.B.), que ainda hoje existe e é muito activa.

Que experiência retira de poder ensinar acerca da sua luta, a tortura, o fascismo?

Não fui torturada, como já disse, e estive presa só de raspão. Tive sorte, pois a grande maioria dos estudantes que foram presos na altura (1964/65) foram torturados, mesmo muito jovens e ficaram presos durante meses, anos. A tortura é uma experiência extrema, brutal, da qual não se sai incólume. Falar ou não falar, na PIDE, durante a tortura, era a grande prova, pela qual não passei, felizmente. Não sei qual teria sido o meu comportamento e tenho a maior admiração pelos companheiros que conseguiram não prestar declarações a uma polícia que utilizava métodos extremamente cruéis e destrutivos, não só físicos como psicológicos.

Penso que temos a responsabilidade, nós, que vivemos o fascismo, de transmitir às novas gerações o que foi a nossa experiência de luta desses tempos sombrios. Daí, ter integrado recentemente a Direcção da Associação Não Apaguem a Memória, cujos objectivos são, precisamente, dar a conhecer o que foi a ditadura do Estado Novo, e não deixar esquecer as grandes lutas da resistência antifascista.

O que podemos e devemos aprender sobre o fascismo/estado novo, a luta das mulheres e o 25 de Abril?

Penso que é importante conhecer o passado, para poder compreender o presente e poder fazer face ao futuro. Verifica-se, actualmente, em Portugal, uma tendência para branquear a realidade do que foi o fascismo, a violência e a brutalidade de um regime que reprimia toda a liberdade de pensamento e que mantinha a população na maior das ignorâncias e pobreza, mantendo, durante 14 anos, uma guerra colonial injusta e mortífera. Por outro lado, a nível internacional, há um inquietante recrudescer dos movimentos de extrema direita, nazi fascistas, que urge combater. É importante estarmos atentos a estes sinais e desmascará-los. O conhecimento do nosso dramático passado recente pode ajudar-nos a fazê-lo.

Escreveu vários artigos científicos relacionados com a temática das drogas e cultura, a prevenção das toxicodependências, as comunidades terapêuticas e a comunicação inter-cultural. Desde 1977, entre inúmeros trabalhos e instituições sobre o tema da droga e toxicodependência, fez parte da comissão instaladora da comunidade terapêutica do Restelo, a primeira comunidade terapêutica criada em Portugal. Foi também fundadora da SOMA, Associação para a Legalização das Drogas.

O que a motivou a dedicar-se ao trabalho sobre a toxicodependência, as drogas e cultura e a sua prevenção? Qual a importância que tem para si os de trabalho que dedicou a esta problemática?

Estive na formação do CEPD (Centro de Estudos e Profilaxia da Droga), a primeira instituição criada em Portugal, em 1977, cujo objectivo era o tratamento e a prevenção das toxicodependências. Dada a minha formação antropológica, era inevitável que desse atenção à temática das drogas e culturas. É, aliás, muito interessante perceber como é que as mesmas substâncias psicotrópicas podem ter efeitos tão diferentes, por vezes mesmo opostos, consoante o contexto social e ritual em que são tomadas, podendo, ou não, dar origem a fenómenos de toxicodependência. Daí ter-me empenhado na fundação da SOMA, Associação para a Legalização das Drogas – porque achava, e continuo a achar, que a ilegalidade e a criminalização do consumo favorecem o tráfico e dificultam o tratamento e a prevenção das toxicodependências. Fez-se, no entanto, um percurso positivo em Portugal, no sentido da descriminalização do consumo, que muito ajudou ao controlo do VIH entre os toxicodependentes, por exemplo – e que é, aliás, internacionalmente reconhecido.

O que é que me levou a trabalhar nesta área?

Penso que o título de um artigo meu, escrito há já bastantes anos, “Pós modernidade e Desordem – a toxicodependência como sintoma” traduz, de modo sucinto, aquilo que suscitou o meu interesse pelo fenómeno das toxicodependências como sintoma de um mal estar civilizacional. Foi, para mim, uma forma de mergulhar nesse mal estar, de o tentar compreender e atenuar, na medida do possível

Quais são os seus sonhos para Portugal?

Passados 46 anos sobre o 25 de Abril constato, com tristeza, que muitos dos meus sonhos de então, para Portugal, estão por cumprir. Lutei por uma sociedade livre, justa e democrática. É verdade que, actualmente, vivemos numa democracia, mas na qual, no entanto, as desigualdades sociais se têm acentuado de uma forma brutal. E a verdade é que a liberdade sem justiça social é uma ilusão. Precisamos, urgentemente, de alterar o nosso paradigma de desenvolvimento, tornando-o mais sustentável, numa perspectiva ecológica, de decrescimento e de inversão da lógica consumista – que nos consome e consome o planeta.

Penso que o futuro de Portugal não pode ser dissociado do futuro da Europa e, mesmo, do planeta. E este neoliberalismo desenfreado só nos encaminha para o abismo. É com satisfação, no entanto, que vejo os jovens, mesmo os muito jovens, tomarem consciência destas questões, fundamentais para a sua sobrevivência. Na certeza de que o sistema capitalista não é compatível com uma sociedade mais justa e democrática, respeitadora de um desenvolvimento sustentável e equilibrado.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Mariana Dias

4 de Fevereiro De 2020

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