Entrevistando: Marta Vidal – Jornalista
Fez uma reportagem para a Aljazeera sobre o racismo português contra a etnia cigana, onde refere que há "níveis de discriminação intoleráveis".
O que a motivou a fazer esta reportagem e abordar a história cigana portuguesa, o racismo, o preconceito e a discriminação?
Essa expressão, “níveis de discriminação intoleráveis” vem de um inquérito da União Europeia sobre a discriminação de comunidades ciganas. Em 2016, vi o filme “Balada de um Batráquio” de Leonor Teles, e foi o trabalho da Leonor que me fez querer explorar mais o assunto. Antes de ter visto o filme não sabia que os sapos de porcelana eram colocados à porta das lojas para afastar os ciganos. Comecei a reparar mais nas dezenas de sapos à porta de lojas no centro do Porto, e a sentir-me cada vez mais incomodada com o assunto. A ciganofobia é óbvia em Portugal, mas está tão enraizada que poucas pessoas se chocam quando ouvem comentários racistas ou insultos contra ciganos, este tipo de atitudes é considerada “normal”. Achei que falar sobre os sapos era uma forma diferente de abordar o tema e fazer mais gente pensar sobre porque é que se normalizam comportamentos que são extremamente racistas e ofensivos. Ler esse relatório da EU e falar com activistas ciganos fez-me perceber que o problema da ciganofobia era ainda pior do que eu pensava. De todos os países analisados, Portugal apareceu como o país onde a maior percentagem de ciganos se sente discriminada, com 71% das pessoas a sofrerem episódios de discriminação. O relatório também mostra como uma grande percentagem da população continua a não ter acesso a serviços básicos, a habitação digna. Os números deixaram-me aterrada, é impossível ficar indiferente. Mas o mais importante para mim foi falar com activistas ciganos, ouvir as suas histórias e experiências de discriminação, que são ultrajantes, e reconhecer a necessidade urgente de um debate sobre o racismo estrutural.
Na sua visão, era urgente tratar e mostrar toda a realidade cigana e a forma como a sociedade a vê? Acredita que pode despertar o público em geral para esta problemática?
Para mim é importante denunciar qualquer forma de discriminação, mas sim, a ciganofobia parece-me particularmente urgente. Não sei até que ponto o que eu escrevo pode despertar o público – especialmente porque já não vivo em Portugal há bastante tempo e escrevo maioritariamente em inglês – mas acho que o mínimo que posso fazer como jornalista é escrever sobre o assunto. O objectivo é fazer com que mais pessoas estejam dispostas a debater o racismo estrutural que não podemos continuar a ignorar em Portugal, porque não é um problema “dos outros” é um problema de todos nós. Mas o mais importante é que as pessoas que sofrem discriminação diariamente comecem finalmente a ser ouvidas.
Entre Março e Maio de 2018 trabalhou em pesquisa e organizou um projecto de arte com o patrocínio da Leiden University e a International Istitute for Asian Studies.
Entre conversas com activistas, pesquisadores de direitos humanos da Caxemira, e dessas sessões de filmes sobre arte, memória e direitos humanos com cooperação do Leiden International Short Film Experience que organizou, com visitas guiadas com foco na situação dos direitos humanos em Caxemira com o apoio da Aministia Internacional da Holanda.
Dito isto, como tem sido, para si, ter a possibilidade de abordar e trabalhar sobre os direitos humanos, quer através de projecto de arte, conversas, filmes e visitas guiadas?
O meu trabalho explora as intersecções da arte, política e direitos humanos. Interessa-me como a arte pode ser usada para lutar por um mundo melhor, mais justo – é algo que tenho vindo a explorar em vários países diferentes e em zonas de conflito como Caxemira, que é a zona mais militarizada do mundo, ou territórios ocupados como a Palestina. Não me interessa apenas ser testemunha de injustiça e violações de direitos humanos, quero perceber como é que as pessoas lutam contra elas. E interessa-me explorar o potencial de formas de criatividade, de coragem e resistência. Por exemplo, visitei um campo de refugiados no Líbano, e a situação lá era absolutamente desoladora: os residentes estavam enclausurados há várias gerações, viviam na pobreza extrema, não podiam trabalhar. Mas mesmo assim, pintavam murais incríveis nas paredes que os enclausuravam e faziam esculturas com o arame farpado que os rodeava e simbolizava a sua opressão. Interessa-me mais contar estas histórias, das pessoas que encontram força e esperança para fazer esculturas de arame farpado, do que falar só sobre os muros e a opressão. Uma amiga uma vez disse-me que o meu talento é encontrar beleza e esperança nos lugares mais tristes e inesperados. E depois de escrever tanto sobre o papel da arte em zonas de conflito e situações de opressão, acho que talvez ela tenha razão.
Como jornalista que é de profissão, o que a leva a abordar temas tão importantes e problemas tão graves na vida de tantas pessoas?
É esse o dever da profissão. Porquê perder tempo com futebol ou com o que fizeram as celebridades, quando estamos tão perto de catástrofes ambientais, quando há pessoas em Portugal que ainda não têm acesso a água canalizada, a condições de vida dignas? O mundo podia ser tão melhor se as pessoas se preocupassem mais com o que realmente importa.
Foi assistente humanitária em resposta a desastres como voluntária trabalhando com refugiados, desde 2015 até hoje, e pertence à Amnistia Internacional desde 2012.
Que importância dá ao seu trabalho na Amnistia e o seu trabalho de voluntariado?
O que tem aprendido com esta experiência?
Trabalhar com refugiados ajudou-me a perceber a dimensão da crise humanitária no Médio Oriente e na Europa. Tornei-me bastante próxima de várias pessoas que foram forçadas a fugir do país onde viviam por causa de guerras, violência e perseguição. E ouvir as histórias delas, perceber como são afectadas diariamente, permitiu-me ver um outro lado da experiência de ser refugiado. Também aprendi muito sobre mim mesma, sobre os meus vários privilégios: como o privilégio de ter um passaporte europeu, de poder escolher onde quero viver, de contar as histórias dos outros. O trabalho como voluntária ajudou-me a ter mais consciência destes privilégios, de como são injustos.
Na sua opinião, como se conseguirá quebrar estes atropelos aos direitos humanos?
Pessoas informadas e conscientes são um começo. Pessoas que se indignam, que dizem não, isto não pode acontecer. Depois, pessoas que agem, que se organizam. Mas começa tudo com o acto de querer saber, de questionar, de não ficar indiferente.
Quais são os seus sonhos para Portugal?
São muitos: sonhos de um país de solidariedade, igualdade, justiça social. Mas podia resumi-los com um verso de Mário Cesariny:
“queria de ti um país de bondade e de bruma”
Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho. Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Mariana Dias
04 de Agosto de 2019