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Entrevista a Luís Farinha - Professor - Doutorado em História Política e Institucional do séc. XX

Entrevista a Luís Farinha - Professor - Doutorado em História Política e Institucional do séc. XX

Director do Museu do Aljube Resistência e Liberdade (2015-2020)


“Farinha, Luís (Coord.). Morte à morte: 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal / 1867-2017. Lisboa: Assembleia da República, 2017” O que o levou a estudar a abolição da pena de morte em Portugal e celebrar os 150 anos da sua abolição?

A abolição da pena de morte é, em si, um problema existente no Mundo e de uma enorme atualidade: de forma «legal» ou de forma brutal e incontrolada, a pena de morte é ainda hoje aplicada em muitos países e em situações de conflito e de guerra. A sua abolição constitui, para todas as organizações de Direitos Humanos, e para uma grande maioria de países e povos do Mundo, uma linha de separação civilizacional e um patamar de humanismo que se deseja que não volte atrás. Esta foi uma primeira razão, porque o historiador escolhe os «passados» que estuda em função do presente que vive.

A segunda razão teve a ver com o facto de um relance histórico sobre a abolição da pena de morte em Portugal poder ser muito instrutivo sobre as estratégias que foram delineadas pelos abolicionistas e que ainda hoje podem constituir uma forma de atuação para os homens e mulheres que, pelo Mundo fora, se empenham na sua abolição. A história da abolição da pena de morte em Portugal mostra que ela ocorreu por diferentes fases: começou por se promover a sua comutação ou perdão pelo Monarca e por restringir nos códigos e na lei em geral os motivos que podiam conduzir à pena de morte. Depois, passou-se à fase da doutrinação (que nunca deixou de estar presente desde o início do séc. XIX), mas que se intensificou em meados desse século, a par do que ocorria noutros países europeus e sul-americanos. Por fim, associou-se a abolição (ainda limitada a crimes não militares, em 1867) a uma reforma das cadeias, com a finalidade de combater os argumentos dos «mortistas», que viam na abolição um fator de desordem crescente da sociedade. Por fim, foi mesmo possível estender a abolição a todos os crimes, incluindo os militares. A abolição da pena de morte foi, historicamente, um processo de aquisições graduais, o que pode muito bem constituir uma lição para os dias de hoje. De resto, é o processo que tem ocorrido pelos sucessivos protocolos que a ONU tem conseguido propor e fazer aprovar a uma rede cada vez mais alargada de países.

Por fim, há uma outra razão, talvez mais difícil de estudar, mas também muito interessante e que motivou a minha curiosidade: Portugal foi um país pioneiro na abolição da pena de morte, a par da Venezuela e, no nosso caso, apesar de algumas tentativas ténues de reposição da pena de morte, isso nunca chegou a acontecer, ao contrário do que sucedeu noutros países, alguns até com abolição mais precoce, onde a pena de morte foi reposta anos depois da sua abolição. Este é um aspeto muito interessante que requer um ensaio muito mais desenvolvido do que as considerações que podem ser apresentadas nesta resposta breve, mas que merece estudo, em especial pelo que pode esclarecer sobre aspetos mais profundos da cultura e da sociedade em Portugal nos alvores da contemporaneidade.

Foi “Membro da Comissão Instaladora do Museu do Aljube Resistência e Liberdade (2014-2015);” e a par de Irene Flunser Plimentel e João Madeira escreveu o livro “Vítimas de Salazar”. O que podemos e devemos aprender sobre o fascismo/Estado Novo e sobre o sofrimento das vítimas de Salazar e Caetano?

O fascismo português foi uma experiência política constrangedora da modernização do país e um fator de retrocesso muito forte, tendo em conta as linhas de avanço democrático experimentadas (e também falhadas) da I República. O designado Estado Novo impôs uma ideia única aos portugueses, governou o país e o Império com recurso a enorme violência, restringiu de forma brutal as liberdades e as garantias públicas, deportou milhares de portugueses e limitou a sua liberdade de expressão em todos os domínios, da informação às artes. No final, conduziu uma guerra criminosa para a qual não pediu opinião aos portugueses, mas que obrigou muitos deles a interromper a sua vida normal e mesmo a sair dessa guerra flagelados ou mortos.

O conhecimento deste «passado-presente» permite a formação de uma inteligência histórica que alarga a nossa possibilidade de compreensão e que, inevitavelmente, impele a consciência individual e social a um maior compromisso cívico com a realidade que nos cerca. De facto, só o conhecimento nos permite criar ideias claras sobre a realidade que vivemos, evitando a indiferença que resulta da ignorância e do medo da mudança. Na verdade, essa imprevisão, baseada na ignorância dos factos foi, na maior parte dos casos, de efeitos dramáticos. A maior parte dos nossos avós e bisavós apoiaram as soluções ditatoriais que se sucederam à I Guerra Mundial Em Portugal, como na Alemanha ou noutros países europeus, nenhum deles imaginava que elas pudessem terminar na violência fascista ou no Holocausto. Hoje temos muito mais possibilidades de adquirir conhecimento sobre o Mundo em que vivemos e sobre as suas raízes e, por essa razão, não podemos ignorar o que aconteceu no século XX.

Mas é também sobre as «vítimas» que é necessário falar: pouco se conhece sobre as suas vidas e é ainda frágil o reconhecimento público sobre as razões que as moveram e também sobre os efeitos perversos da tortura e dos muitos incómodos que, por idealismo e coragem, se abateram sobre as suas vidas. No Museu do Aljube, para além de se fazer justiça à sua coragem e abnegação, faz-se eco dos seus percursos de Resistência, como o último reduto da Liberdade que desejaram recuperar e doar aos vindouros.

Participou no livro “Tribunais Políticos - Tribunais Militares Especiais e Tribunais Plenários durante a Ditadura e o Estado Novo” com Fernando Rosas, Luís Farinha, Irene Flunser Pimentel, João Madeira e Maria Inácia Rezola. Como é para si poder abordar o que foram estes tribunais, da injustiça, da tortura, da privação da liberdade?

Esse estudo dos dois maiores arquivos da polícia política – o Arquivo da PIDE e o Arquivo do Tribunal Militar Especial (AHM) – permitem fazer o levantamento de uma parte muito significativa dos presos políticos da Ditadura – dos seus rostos, vidas, história prisional e mesmo sobre os efeitos perversos que se abateram sobre as suas vidas depois de uma ou de sucessivas prisões a que foram sujeitos. Estes arquivos não cobrem todo o universo de presos políticos, porque muitas vezes o seu espaço prisional ficou confinado a esquadras da GNR e da PSP; no entanto, constitui uma amostra muito significativa dos muitos milhares de presos políticos da Ditadura. Simultaneamente, permitiu compreender o funcionamento dos tribunais de exceção – o Tribunal Militar Especial e o Tribunal Plenário -, construídos sobre uma aparente legalidade, mas na verdade controlados inteiramente pelo poder político que, de forma discricionária, e através das polícias políticas, decidia sobre a vida dos presos, através de mecanismos administrativos como os que resultavam da situação de «deportados à ordem do Governo» ou a aplicação das designadas «medidas de segurança» que impediam a libertação dos presos, mesmo terminada a pena decidida em Tribunal.

Também os métodos da polícia política para obter informação são matéria que é possível esclarecer em muitos dos processos judiciais consultados, designadamente a forma como era obtida essa informação através de informadores, pela interceção da correspondência ou através de escutas telefónicas. Já o mesmo se não pode considerar quanto aos processos de tortura, que são, normalmente, omitidos, exceto quando extravasam o funcionamento cuidadoso de sonegação da informação, típico dos procedimentos da polícia política. Não são raras as agressões em pleno Tribunal e, aí, percebe-se de que modo os presos eram normalmente tratados pela polícia, tanto quando eram presos como quando eram sujeitos a prisões longas e a castigos.

Este é, pois, o resultado de uma primeira abordagem que não é definitiva nem completa, mas que permite abrir a novas abordagens, mais aprofundadas.

Transições políticas – Ditaduras e Democracia; I República e Ditadura Militar; Oposições políticas à Ditadura e ao Estado Novo; Políticas públicas de memória; Violência Política- O seu trabalho de investigação foca-se bastante nestes temas. O que o tem levado a trabalhar e estudar o Estado Novo, a oposição, a política de memória, as prisões, a I República e a Ditadura Militar? Acredita que pode ainda despertar as pessoas para o que se viveu?

Sem dúvida que a transição da I República para a Ditadura Militar é um período de grande interesse para a observação histórica: a questão central é perceber como pôde um regime soçobrar e em seu lugar surgir um outro, diferente e em muitos aspetos antagónico. Mas também perceber – e isso é muito importante –como e porque razão o regime cessante soçobrou. Na verdade, no caso português, como em tantos outros, o regime existente foi criando bolsas de cedência que desembocaram na Ditadura Militar e esta, por seu lado, foi reconfigurando o novo regime. Por outras palavras, o regime anterior foi criando no seu bojo as novas formas de organização do Estado que se lhe seguiu. É visível que a I República dos últimos anos foi introduzindo mecanismos de violência (de deportação, de censura, de intervenção de polícias políticas, de criação de tribunais de exceção) que foram, eles próprios, tornando naturais os comportamentos de violência. No fundo, o que aconteceu é que durante a I República essa violência existindo já, embora em menor grau, podia ser (e era) escrutinada pela imprensa livre e pelo Parlamento e opinião pública. Com a Ditadura, o estado de exceção tornou-se uma situação «legal» e constitucional, sem possibilidade de escrutínio pela opinião pública. E, nesse sentido, sem controlo social, a tendência foi para que a violência política se tivesse tornado irrestrita, continuada e, a partir de certo momento, fundamental para manter o próprio regime.

Por isso, estudar a I República, a Ditadura Militar e o surgimento do Estado Novo constitui uma lição imensa sobre a forma como os regimes soçobram (ou se deixam vencer) e a maneira como outros ocupam o seu lugar. E, igualmente, sobre o estado das elites que, em larga medida, se adaptaram à nova situação e com ela aprenderam a viver/conviver.

Nesse sentido, é muito interessante perceber como hoje os portugueses e o mundo perceciona a situação portuguesa - um regime duradouro, com fases de grande violência e com outras de maior estabilidade. De tal modo diferenciado no tempo, que temos muitas vezes dificuldade em classificar a sua natureza numa visão única do todo.

Como tem sido trabalhar estes períodos dramáticos da história portuguesa, o que nos pode dizer mais sobre o seu trabalho e como pensa que será importante a investigação sobre a memória, a tortura, a violência, a Ditadura… para estudantes e para quem desconhece a história e perdeu a memória?

O regime soube impor, pela opressão e pelo silenciamento, um clima de terror generalizado que favoreceu o indiferentismo, a despolitização e até uma aceitação por setores muito largos da população de soluções que, como a Guerra Colonial, constituíam crimes contra os povos dominados e um pesado encargo para o país de então e para as gerações vindouras. Nada se discutia, a não ser em setores muito estreitos das elites do poder instituído e, por isso, foi possível manter o regime numa aparente estabilidade durante quase meio século. A luta das oposições foi contínua e diversa - da luta clandestina às rebeliões e às greves operárias; porém, com o apoio do Exército e das forças repressivas, foi sempre difícil vencer a situação instalada e isso só aconteceu quando, a partir de 1969, um crescimento substancial do mundo urbano e um alargamento das elites rompeu o equilíbrio existente até aí. A entrada da Guerra Colonial num beco sem saída havia de conduzir o próprio Exército a derrubar o regime por golpe militar, em 25 de Abril de 1974.

Perceber como a ausência de democracia, de debate público e de alternativas políticas pode conduzir a situações dramáticas (ou mesmo trágicas, como aconteceu ao nosso país na parte final do regime) é um objetivo muito claro, entre muitos outros, que presidiu à criação do Museu do Aljube Resistência e Liberdade. Conhecer a nossa história do séc. XX, socializar e alargar o reconhecimento social desse período de vida do nosso país é, por isso, fundamental para todos os portugueses, sejam eles mais velhos ou mais novos. Os países necessitam de preparar-se com a participação de todos os cidadãos para as mudanças profundas e crescentes que o presente e o futuro nos apontam. Não precisamos de culpar a democracia dos males que nos apoquentam nem lamentarmos as nossas dificuldades – temos, isso sim, de aprofundar a qualidade da nossa democracia, com a participação de todos. E para que esse aprofundamento democrático aconteça, é preciso conhecer com profundidade as condições políticas e sociais em que vivemos em Ditadura e o que desse passado persiste e impede que avancemos com mais clarividência no presente e no futuro.

Quais são os seus sonhos para Portugal?

Um Portugal que integre todos os seus cidadãos e os que nos vão chegando de outras partes do mundo, pelo recurso à modernização das suas estruturas económicas, sociais e culturais. Que resolva as enormes assimetrias de desenvolvimento (por exemplo entre o litoral e o interior). Que tenda naturalmente, a promover um desenvolvimento equilibrado das suas populações pelo acesso aos meios de educação, ao trabalho, à saúde e à prestação de verdadeiros serviços sociais, especialmente aos mais desfavorecidos. Um país que consiga olhar para os verdadeiros desafios da atualidade, em conjunto com todos os humanos com quem compartilhamos os recursos da Terra, inevitavelmente findáveis.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: João Aristides Duarte

19 de Julho de 2019

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