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Entrevista ao Realizador Diogo Vilhena

Tens feito os vídeos de promoção do Festival Músicas do Mundo, e filmas os concertos, és o homem por trás da câmara do Festival, desde 2009 que estás a trabalhar para o FMM, como é que tem sido esta experiência de poderes filmar esta reunião de todas as culturas presentes, de poderes mostrar a música do mundo que não é conhecida do público normal?

Penso que qualquer pessoa ligada à imagem, seja ela fixa ou em movimento, gosta de viajar e este é o festival que nos leva numa viagem não só pela música mas por todo o enquadramento visual único, dando o mesmo destaque a todos os músicos, sem etnocentrismos, nem fronteiras, transformando a experiência da música numa tomada de consciência universal, quebra de preconceitos e busca de conhecimento do mundo.

Para mim em termos musicais é o festival de referência em Portugal. Quanto ao público, é interessante ver artistas que actuam no festival a assistir aos concertos e pessoas do público que se tornam artistas em poucos anos. Penso que não é algo que se consiga ver em muitos lados, pois este é mesmo um festival de apreciadores de boa música, mas essencialmente um festival de gente curiosa e com sede de mundo.

É difícil definir este festival e a experiência de captar os “momentos” pois é algo que transcende a experiência da música e da imagem. Eu não procuro a "pose", mas sim as emoções. Essencialmente é ver nos olhos de tanta gente a descoberta da música. É retratar uma aventura.

Realizaste o filme “Do Silêncio à Liberdade - O 25 de Abril em Sines” entrevistaste 6 sinienses com vasta experiência cívica e que lutaram por um país melhor. Para ti abordar a ditadura, o 25 de Abril, a liberdade, a luta pela liberdade contra a censura, os assassinatos, a pobreza, foi importante para ti? O que te motivou a falar sobre os 50 anos de ditadura portuguesa?

Com o apoio do Arquivo Municipal de Sines, realizei esse projecto de forma a documentar as vivências do 25 de Abril em Sines, o antes e o depois, daqueles que viveram na primeira pessoa estes tempos.

Para mim é um privilégio poder registar momentos singulares, nada forçado, nada criado, apenas aquilo que acontece num efémero ápice. Poder registar um testemunho que ficará para a história e que de outra forma iria acabar por ficar no esquecimento. Por norma os temas abordados não são temas considerados importantes no tempo presente, fazem parte do quotidiano e das nossas vivências como seres humanos por isso parece que não são importantes "agora" mas daqui a 20 anos foram esses momentos que fizeram a história social, tornando a conversa num relato transversal a uma geração.

Escutar na primeira pessoa as histórias de vida de quem sofreu e lutou contra um império de fantasmas e de medo é muito, mas muito mais do que uma simples entrevista, é algo que nos faz crescer como seres humanos. Registar a história que faz parte da nossa identidade como povo é algo que deveria ser fortemente apoiado, pois só assim é que se consegue entender a importância da cidadania e as motivações desta geração que conta agora no final da sua existência, as histórias de vida que fez de Portugal um país livre e democrático. Porque a revolução não foi feita num dia nem apenas pelos capitães de Santarém, a revolução foi feita por pessoas de norte a sul do país que estavam descontentes e que sentiam que tinham que fazer alguma coisa, uma geração que viveu também na clandestinidade.

Fizeste o filme “O tempo da fome”, Como foi para ti mostrar a realidade das gentes, das pessoas mais velhas e que viveram da agricultura por exemplo? Que importância tem para ti dar voz e mostrar como vivem estas pessoas que são esquecidas?

Este não é um projecto concluído, é sim um projecto que a pouco e pouco vou tentando levar a bom porto. A minha primeira entrevista foi ao meu avô, pois é a minha referência mais evidente e mais próxima. Esta gente viveu no tempo da ditadura, no tempo de escassez de oportunidades e de bens essenciais, passou fome. Há algo comum nos seus testemunhos, o seu espírito de resiliência ímpar, a sua força de vontade, às vezes penso que quase sobre-humana.

O meu avô, por exemplo, começou a trabalhar aos sete anos a guardar porcos, transportou gado bovino a pé do Cercal do Alentejo até Coruche, carregou pedras do mar em escarpas e falésias inacessíveis com burros no limite das forças e às vezes até da morte. A sua geração, para mim, é de verdadeiros heróis nacionais, porque foram eles que sofreram e lutaram pelo pais que hoje temos, livre, democrático e soberano. Mas também são estes os exemplos de gente que mesmo vivendo na miséria eram trabalhadores honrados, algo que está em declínio nos tempos que correm.

A par do Rui Pedro Lamy fizeram “Cinema Com Gente Dentro”. Esta experiência de mostrar um cinema já quase inexistente de dar cinema às pessoas das aldeias esquecidas foi fundamental para vocês? De que forma conseguiram repensar a situação de inexistência e passar a mensagem da importância desta e de outras formas de fazer cinema ligadas às gentes das aldeias?

Quando há dez anos eu e Rui Pedro Lamy estávamos a estudar em Caldas da Rainha na ESAD, em conjunto com alguns colegas num projecto colectivo para uma cadeira de documentário orientada por Catarina Mourão, eu lancei aos meus colegas o repto de filmar uma semana da vida de um dos últimos projeccionistas de cinema ambulante.

Fizémo-nos ao caminho rumo a Vila Nova de Milfontes, Odemira, Saboia, Santa Clara, Marmelete, mais de 500kms. Em busca de histórias de um ofício que antes da década de 70 do século XX era comum em Portugal, mas com o passar dos anos foi completamente extinto, agora só subsiste graças à carolice de António Feliciano que sempre foi um homem de convicções e um apaixonado pelo cinema. Por isso pensei em retratar esta vida ambulante de sonhos e de encontros de cultura nas aldeias. É sobretudo um retrato da vida de um homem que vive com cinema na alma, por isso o título Cinema Com Gente Dentro, e porque todo este imaginário fazia parte das minhas recordações de infância e não queria de forma alguma perder a oportunidade de as registar essa arte na primeira pessoa.

Recentemente realizaste o “Mar de Sines”. O que aprendeste sobre as vivências da vida das três gerações de pescadores que retrataste? Depois de várias exibições acreditas que já existe uma outra forma de ver a vida dura dos pescadores? O que é que estes trabalhos sobre a vida dura das pessoas, sobre o que pensam o que têm de passar, significam para ti? Que mensagens é que tentas passar para quem for ver os teus filmes?

Existe tanta coisa que se podia falar sobre o Mar de Sines, mas penso que o melhor é justamente começar pelo início.

Foi um projecto ambicioso que contou com uma equipa dedicada com mais de duas mil pessoas envolvidas e com muita gente talentosa e motivada em fazer um projecto conjunto, tanto pela sua relação com a comunidade como por ser algo que que ainda não tinha sido feito.

Entrevistámos 100 pessoas e filmámos ao todo 250 horas, entre testemunhos e saídas de mar, gravámos uma banda sonora com músicos locais sobre a direcção de Charlie Mancini, conseguimos recolher mais de 600 fotografias muitas delas inéditas ao público em geral, vídeos e tudo o que conseguimos reunir numa colecção que só por si contaria a história.

A isto tudo somamos o lado emocional e poético de quem vive e viveu do mar e estruturámos um projecto de cinema com a comunidade, com investigação, produção e assistência de realização de António Campos, projecto produzido pela Câmara Municipal de Sines e Co-financiado pelo programa Promar.

Este foi o grande desafio até agora. Todos os dias me fazia reflectir:

“- será que vale a pena todo o esforço? Noites sem dormir no mar? Entrevistar tanta gente num ano? Estar à procura de histórias numa comunidade à partida muito fechada?” Muitas dúvidas estiveram no caminho, mas fiquei surpreendido com a abertura da comunidade e o seu entusiasmo com este projecto. Não esquecerei o carinho como que receberam o filme no seu dia de estreia no Castelo de Sines onde foi exibido numa tela gigante para mais de 2000 pessoas. Foi um momento notável pois foi o reconhecimento da comunidade e a melhor distinção que poderíamos ter, mesmo tendo ganho um prémio de melhor filme etnográfico no Brasil e mesmo agora que continuamos a mostrar o filme e várias latitudes e longitudes. Este foi um filme sobre esta gente e mesmo os que não tiverem possibilidade de ir, conseguiram-se representar por um amigo ou um conhecido. Isso é de facto aquilo que procuro fazer com o meu trabalho, mostrar que a tecnologia usada para fazer um filme só serve para contar as histórias de pessoas reais, do seu quotidiano e das suas memórias, transformando-as em memórias colectivas e partilha de uma geração.

O filme é uma longa metragem de 71 minutos. Esse foi o maior dos problemas, sintetizar todas as histórias sem repetir uma única pessoa, criando um discurso coerente e lógico, assumindo desde o inicio que não iríamos na estreia apresentar o discurso de ninguém que já tivesse falecido, de forma a poder dar a oportunidade de todas as pessoas que foram entrevistadas de assistirem ao filme.

Gostaria de terminar com a nota de que este foi um projecto pensado ao longo de 4 anos antes da rodagem e de que houve outros projectos que levaram a este como é o caso do projecto Redes do Tempo do Museu de Sines e projectos como o referido em cima "Do Silêncio à Liberdade" com o Arquivo Municipal, pois esta lógica de trabalho cooperativo e multidisciplinar, foram os princípios em que todo este processo evoluiu e que tornou possível hoje ter um filme produzido por uma Câmara Municipal a correr em festivais de Cinema e de especialidades científicas como a etnologia, etnografia, história e outras áreas do conhecimento das ciências sociais.

Quais são os teus sonhos para o cinema, para estas e outras pessoas com que te identificas e retratas, e para Portugal?

O meu maior sonho neste momento é fazer um filme que tenho vindo a estruturar muito sobre o lado humano das profissões, e a forma crítica como olhamos para aquilo que criamos todos os dias, aquilo que fazemos e como fazemos.

Portugal tem um potencial enorme para este tipo de projecto. O problema são os financiamentos, o apoio a estas produções. Estes podem não ser os temas da ordem do dia mas são aqueles que de alguma forma podem instigar o sentido crítico para criar coisas novas sem necessidade de copiar modelos e referências de casos de sucesso. Nós temos de valorizar mais aquilo que somos e isso é aquilo que nos torna singulares, valorizando as pessoas e aquilo que elas são, como pensam, como vivem, com todas as suas memórias e valores é a nossa verdadeira identidade.

Para Portugal? Portugal está na moda, o problema é que a maioria das pessoas pensam que Portugal está na moda por ter tuk tuks em Lisboa, macarons no Porto e brunchs, sushi, tacos, mas não é por isso. Portugal está na moda porque é tudo isto de uma forma pitoresca e autêntica, porque tem 900 kms de costa continental com zonas tão distintas, com mais de uma dúzia de ilhas no Atlântico. Portugal é um dos lugares da Europa, por onde o tempo passou devagar, com uma das costas mais bem preservadas e com áreas de reserva natural no interior muito bem preservadas, e isso transforma este pequeno país num lugar diversificado e com uma riqueza cultural tão grande que é necessário um folgo gigante para começar a trabalhar nele. Começar a trabalhar num processo diário, e continuado de valorização das tradições e do património era o meu sonho para Portugal, pois seria um sinal de respeito e soberania cultural poder tomar esse folgo para podermos trabalhar bem aquilo que temos de melhor.

Obrigado pelo teu tempo, votos de bom trabalho.

Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Ana Brites

19 de Julho de 2017

18 de Julho de 2017

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