Entrevista ao Bibliotecário Gaspar Matos
Foste funcionário bancário: o que te levou a quereres abraçar os livros e promoveres a leitura com comunidades de leitores, serviços da biblioteca para adolescentes, entre outros?
Trabalhei na Banca de 1997 a 2004, e foi uma experiência positiva. No entanto, desgostava-me e desgastava-me o lado estritamente comercial das funções, sempre com uma enorme pressão para venda de produtos financeiros, seguros, etc. Dei por mim a pensar como seria bom ter um trabalho em que, ajudando as pessoas, não tivesse de lhes cobrar ou vender nada. Daí às bibliotecas foi um pulo, não só por uma enorme vontade de trabalhar no sector da cultura, mas também por conversas que mantive à altura com o responsável da Biblioteca Municipal de Espinho (António Regedor), e que me entusiasmaram ainda mais. Frequentei então o curso de técnicos de biblioteca da Associação Portuguesa de Bibliotecários e, posteriormente, a Pós-Graduação em Ciências da Informação e da Documentação. Em 2005, ingressei nas Bibliotecas de Oeiras.
Como foi esta jornada de 12 anos pelas Bibliotecas Municipais de Oeiras, Sines e agora na Biblioteca da Faculdade de Psicologia e do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa?
Todas as três experiências foram (e estão a ser) altamente enriquecedoras: em Oeiras tive o privilégio de trabalhar com uma equipa altamente dinâmica, chefiada por um profissional visionário (Filipe Leal), e em que o poder autárquico apostava fortemente (pelo que as condições materiais e financeiras eram óptimas). Aí aprendi muito e confirmei que a minha opção em mudar de actividade profissional tinha sido a acertada. Em Sines encontrei uma biblioteca sui generis, pois diluía-se no todo que era o Centro de Artes de Sines. No entanto, penso que a mesma encontrou o seu lugar fruto de uma programação mais específica, não obstante o facto de ter ganho muito com o trabalho colaborativo com os outros serviços (e vice-versa). Também aí encontrei colegas muito válidos, políticos que sabiam bem qual o valor da biblioteca para a comunidade, e tive desafios que extravasaram o âmbito da Biblioteca (no domínio da actividade do Centro de Artes), e que muito apreciei. Já nesta experiência actual (Biblioteca da Faculdade de Psicologia e Instituto de Educação da Universidade de Lisboa), mais uma vez tive a sorte de encontrar uma excelente equipa de trabalho, sendo que o enfoque na formação de utilizadores, no atendimento e difusão de informação e nas actividades de promoção da leitura e dos serviços da biblioteca está a ser uma experiência muito boa.
Como podem e devem as bibliotecas e as instituições trabalhar para proporcionar cultura para todos?
Podem - e devem - fazê-lo através de um conjunto de medidas/atitudes: a gratuitidade no acesso à informação e à documentação (técnica ou de lazer) tem de ser mantida e devidamente actualizada (o poder político tem a obrigação de manter as dotações orçamentais, para que as colecções das bibliotecas não se tornem obsoletas); o bibliotecário tem de estar atento às inovações tecnológicas e ser o devido mediador de informação, ajudando os utilizadores a filtrarem o essencial do acessório, nomeadamente no meio do imenso “ruído” que a disseminação via internet produz; o bibliotecário tem de ser um leitor - um leitor ávido -, para que lhe seja reconhecido o papel de mediador de leitura; as bibliotecas devem ser espaços diferenciados dos demais, em que a aquisição de conhecimento e informação é o que as distingue dos restantes serviços ao público (serão igualmente locais de encontro, mas devem esforçar-se por não perder a sua característica mais tradicional e que, ao fim e ao cabo, é hoje uma das mais inovadoras: um espaço de estudo e silêncio, diferente da loucura sensorial de som e luz que são todos os outros espaços públicos actuais); devem ter uma programação diferenciada, em que assuntos de interesse geral sejam abordados, nomeadamente os relacionados com o exercício da cidadania.
Em Sines a biblioteca recorreu à arte de rua, homenageando o poeta Al Berto: porquê esta iniciativa?
O poeta Al Berto e Sines tiveram uma história comum, nem sempre de harmonia: existia como que uma relação de amor-ódio do autor para com a cidade (e vice-versa), que me parece crescer com a construção do complexo industrial; acresce que a poesia é género literário pouco ou nada estimado, no nosso país, e era precisamente nesse género em que Al Berto mais manifestava a sua veia criativa. Daí que a ideia de criar um mural enorme junto à Biblioteca/Centro de Artes foi o que me pareceu mais indicado: não só existia um apelo gráfico, visual, de fácil apropriação por quem passasse, mas igualmente a inserção na lateral de um excerto de um dos seus textos e que levou à leitura, por parte de todos os que lá passavam. Isso fez com que muita gente o lembrasse, relembrasse e - espero -, muitos o tenham voltado a ler (ou lido pela primeira vez). Tive muita sorte com a escolha do autor do mural - o Skran -, que fez um trabalho fantástico. Certo é que o Al Berto agora tem a sua presença reforçada na cidade, de forma indelével: está lá, faz parte daquela terra, e isso deveria - e deve -, ser um orgulho para todos os sineenses.
Desde 2010 que a Biblioteca Municipal/Centro de Artes de Sines marca o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, com exposições e palestras como Salvar Toda Aquela Gente - a acção de Aristides de Sousa Mendes, Crianças Austríacas da Cáritas em Portugal e Janusz Korczak - reformador do Mundo, entre outras: acha fundamental recordarem anualmente este trágico momento da história mundial? Porquê?
Tal como respondi acima, a Biblioteca tem um dever de informar sobre questões fundamentais de cidadania. Nesse sentido, alertar para os principais genocídios e conflitos armados que surgiram no planeta há menos de 100 anos e aqui tão perto de nós parece-me fundamental, numa lógica de consciencialização sobre a natureza humana, que pode ser tão cruel como heróica, e que papel querem as pessoas ter no mundo, no presente e no futuro, face a situações semelhantes (não nos esqueçamos do que aconteceu na Bósnia ou no Ruanda, há sensivelmente vinte anos). A título de exemplo, se na exposição de Janusz Korczak falávamos aos alunos das escolas sobre as atrocidades cometidas pelos nazis, igualmente dávamos a conhecer alguém que, no meio do horror, criou uma escola para crianças judias num gueto e, quando as mesmas foram enviadas para os campos de concentração, não as abandonou nunca, morrendo com elas. Este homem deu mostras de abnegação e coragem como poucos, em relação aos mais vulneráveis, e isso deve ser do conhecimento das gerações actuais. Igualmente aproveitámos a data para falar de outros acontecimentos, como foi disso exemplo a exposição de 2016 (da Biblioteca Municipal e do Arquivo) sobre o Tenente Seixas, um militar que salvou da morte centenas de republicanos fugidas às forças franquistas, durante a Guerra Civil de Espanha, acolhendo-os em Portugal. São estes os exemplos de cidadania e humanidade que se pretendem sublinhar, com essas iniciativas.
Por onde passaste sempre promoveste comunidades/grupos/clubes de leitores: o que tens aprendido com esta partilha e com este encontro de leituras e leitores? E o Contos de Tantos Mundos, iniciativa paralela do Festival Músicas do Mundo, surge porquê?
Quanto aos grupos de leitores, acima de tudo proporcionam momentos de partilha que voltam a humanizar as cidades, e isso é tão necessário - hoje em dia -, como água para a boca. Se pensarmos bem muitas vezes vamos ao cinema e, à saída, partilhamos as nossas ideias sobre o que vimos. A leitura, sendo uma experiência solitária, muitas vezes não permite esta troca de ideias subsequente. No entanto, tal é contrariado num grupo de leitores: as pessoas discutem a sua percepção sobre a obra que, tantas vezes, é díspar de quem leu precisamente a mesma obra e está sentado ao nosso lado. Quando trocamos estes diferentes pontos de vista todos ganhamos, porque conquistamos visões mais amplas; acresce que, quanto falamos do que lemos, estamos a falar de nós mesmos, porque a nossa interpretação é sempre um reflexo do que somos, tal como a escrita é um reflexo do que o autor é. Ora, se falamos sobre nós mesmos num grupo que, inicialmente, é constituído por estranhos, estamos a construir um sentimento de comunidade e de partilha que poucas iniciativas públicas permitem. Como dizia a Paula Moura Pinheiro, a propósito destas actividades: “religar a literatura à vida, é este o maior mérito das Comunidades de Leitores”. E essa é, de facto, a maior mais-valia, a que acrescem outras, como a experiência que se ganha por se aceitarem sugestões de outros participantes, aumentando substancialmente o nosso conhecimento literário.
Já os Contos de Tantos Mundos no Festival Músicas do Mundo surge em 2010 pois, existindo uma ligação enorme - neste evento - entre a palavra e a transmissão cultural, pensamos que a biblioteca poderia contribuir promovendo encontros com contadores de histórias, na rua. Assim, não só se aumentava o âmbito do Festival da palavra cantada para a palavra dita como, ao mesmo tempo, tal era feito num horário diurno, que era passível de ser apropriado por famílias e suas crianças. Igualmente se demonstrava a importância do contar aos públicos infantis, servindo tal de exemplo aos pais, em relação aos filhos. Fiquei com imensa pena por saber que esses encontros não se irão realizar, este ano, mas espero que retomem, em 2018.
No Dia Internacional da Mulher a Biblioteca de Sines cola poemas alusivos à Mulher nas montras da cidade e, no 25 de Abril, o exterior do Centro de Artes de Sines cola no chão poemas em grande formato, no âmbito da iniciativa Do Chão Brotam Palavras (excertos do FMI de José Mário Branco, passagem do Levantado do Chão, de Saramago, a letra do Acordai, de Fernando Lopes-Graça, ou um texto de José Luís Peixoto sobre a não-resignação). De que maneira é para ti importante e enriquecedora esta promoção? Consideras que aprofundam o gosto pela poesia e pelo conhecimento da realidade?
Sem dúvida. Temos de ter em mente que muitas pessoas têm um contacto reduzido com a literatura, com a palavra produzida de modo estético e poderoso. Quando o cidadão comum vai ao café e vê, na montra, um poema da Ana Hatherly sobre a Mulher, ou olha para o chão e, quando dá por si, está a ler Saramago, isso é uma forma quase natural de a cultura e o conhecimento se cruzarem com o quotidiano. Esta apropriação é valiosa, e atinge todos os públicos. Ao fim ao cabo, se a Biblioteca é um lugar para todos, a rua será sempre a sua extensão natural, pois é o espaço público por excelência.
Teres feito parte da organização do Festival Músicas do Mundo - um Festival de grande partilha e união das culturas de todo o mundo - de que forma te tornou mais rico?
Fui apanhado um pouco de surpresa pois, até ir para Sines em 2009, não sabia que era a Câmara que o organizava. Por inerência, todas as pessoas que trabalham na CM Sines acabam por trabalhar para o FMM, directa ou indirectamente. Foi uma experiência maravilhosa, porque o Festival é maravilhoso: desde a entre-ajuda entre todos os colegas, o sentimento de união entre todos os recursos humanos da Câmara - unidos por um objectivo comum -, ao contacto com a diversidade que representam não só os artistas, mas o público e inclusive os serviços contratados externamente. No meio do volume avassalador de tarefas - há muito trabalho, muita dedicação, muita responsabilidade -, vive-se um ambiente de paz e alegria entre todos, e isso é inesquecível. Fiquei contente por dar o meu contributo nomeadamente porque sei que, em algumas áreas em que trabalhei, os modos de funcionamento se tornaram mais eficientes, e tenho muito orgulho nisso. Tenho a certeza de que o FMM continuará a ser um dos grandes festivais deste país, quanto mais não seja porque todos os que nele trabalham vestem a camisola.
Quais são os teus sonhos para Portugal?
Que seja cada vez mais um espaço de paz, que saibamos preservar o que de bom temos - nomeadamente em termos de recursos naturais e de modo de estar e receber -, e que cada vez mais se veja progresso sustentado, principalmente para os que menos têm.
Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.
Projecto Vidas e Obras
Entrevista: Pedro Marques
Correcção: Jú Matias
19 de Julho de 2017