Entrevista ao Investigador Redy Wilson Lima
É sociólogo e investigador cabo-verdiano. Como é que vê a contínua violência que se vive em Cabo Verde? Tem estudado este flagelo, para si de que forma é que se pode reverter esta violência e criar uma onda de paz geral?
Antes de mais convém realçar que olhando para a nossa história e os resquícios dela hoje, diria que não somos outra coisa senão um povo fruto da violência, sobretudo da violência simbólica. Contudo, embora se tende a falar de violência no singular, prefiro usar a expressão violências, uma vez que ao se colocar o conceito no plural, está-se a dar conta dos outros tipos de violências. Fala-se hoje muito de violência urbana referindo-se às atividades dos gangues de rua e das fações nacionais do narcotráfico internacional, mas quando se olha para os dados da polícia e das instituições de saúde, o tipo de violência que mais se destaca é a violência doméstica e a sexual. No entanto, convém frisar sobre a existência de continuuns de violência (domésticas, sexuais, armadas, sociais, económicas, etc). Ao pluralizar a violência urbana parto do pressuposto de que não existe uma única violência urbana, mas de um conjunto de violências urbanas, tantas quantas as suas manifestações. Portanto, ao considerar os membros dos gangues de rua simultaneamente como vítimas e agentes da violência, longe de estar a legitimar algumas das suas ações, como já fui acusado muitas vezes, estou a chamar a atenção para a existência dos outros tipos de violências (política e simbólica) que os torna vítimas, no entanto ignorada ou não considerada como tal. É importante realçar a necessidade da substituição do conceito violência estrutural ou social para o conceito violência política, uma vez que há que se ter em conta que, na maioria das vezes, os agentes políticos sabem dos fatores que levam estes jovens (e não jovens) a ter comportamentos que podem ser considerados criminosos, mas ao invés de realmente investirem em políticas públicas inclusivas, optam por as ignorar devido a outros interesses, insistindo numa abordagem policial e militar repressiva e violenta que nada faz senão reproduzir o ciclo de violência. Já há exemplos suficientes pelo mundo fora a mostrar que é ineficaz o combate da criminalidade somente com a polícia ou com militares. Infelizmente, tem-se erradamente insistido neste tipo de política e passados cerca de 12 anos em que se declarou oficialmente a criminalidade como um problema social em Cabo Verde, os dados oficiais apontam para o seu aumento se tomarmos como recorte temporal as últimas duas décadas. Acredito que este cenário de criminalidade urbana poderá ser minimizado caso se avance para as seguintes ações: uma aposta séria naquilo a que chamo uma política pública inclusiva e colaborativa, em que os agentes da violência, porque também vítimas, deverão ser tidos em conta diretamente na conceção e execução dessa política; fortalecer a articulação institucional através do combate ao protagonismo institucional e pessoal dos agentes judiciais; a criação de um incentivo aos vários street workers que através das suas estruturas informais e organizações de rua têm promovido uma cultura de paz em vários bairros; um trabalho sério de despartidarização das organizações da sociedade civil que trabalham nesse contexto; e uma aposta num outro tipo de modelo de policiamento de proximidade comunitário que seja capaz de promover uma segurança cidadã e solidária através da afirmação de uma cultura de prevenção da criminalidade ao invés da reafirmação de um Estado Policial/Militar, ela própria produtora e reprodutora da violência.
Escreveu este artigo: “A presença de Amílcar Cabral na música RAP na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde”. O que o levou a fazer esta investigação? Para si, que importância tem este voltar a invocar um homem de acção, da revolução? Tendo escrito este texto e tendo investigado sobre Amílcar Cabral no Rap, como é sente que é motivador e o que tem levado o Rap a despertar consciências e a fazer agir?
Foi um artigo partilhado com o sociólogo bissau-guineense Miguel de Barros. Ele tem estudado a cultura rap na Guiné-Bissau há já algum tempo e perante o convite da Revista REALIS – Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PosColoniais, resolvemos utilizar os resultados preliminares das nossas pesquisas em ambos os países e fazer um texto com a pretensão de analisar de que forma os jovens guineenses e cabo-verdianos recontextualizaram através do rap, na nova conjuntura dos dois países, o discurso pan-africanista e nacionalista de Amílcar Cabral, tendo em conta o risco de branqueamento da memória coletiva e histórica; a suposta traição dos seus ideais pelos atuais políticos dirigentes; a necessidade de o resgatar enquanto guia do povo; e de representá-lo como um MC (mensageiro da verdade). O foco da minha investigação nunca foi o rap, mas sim a cultura dos gangues de rua da Praia que me levou obrigatoriamente ao rap, que comecei a partir de 2010 a estudar paralelamente com os gangues, quando percebi que dificilmente se consegue desassociar estes dois fenómenos, tendo em conta o contexto em que a cultura hip-hop emergiu e a influência do rap, mais propriamente o gangsta rap, na disseminação da cultura gangsta, mais concretamente a partir dos anos de 1990, através do fenómeno denominado de corporate hip-hop. Aliás, o grande erro da criminologia tradicional foi ter ignorado na análise da violência dos gangues o fator hip-hop. A ligação com Cabral advém precisamente do denominado black atlantic hip-hop, antítese do primeiro, aqui designado de rap consciente. No continente africano, e não só, o rap tornou-se numa expressão cultural muito poderosa, por onde as velhas identidades africanas foram desconstruídas e/ou reconstruídas e, para muitos jovens ele tornou-se na voz de mudança e representação de um futuro de esperança e de unidade pan-africana. Ele simboliza a fala do subalterno e representa o “mundo de baixo”, uma nova forma de protesto juvenil oculto que os cientistas sociais, sobretudo os africanos e cabo-verdianos, devem estar atentos, uma vez que pode ser utilizado como uma lente com o qual se pode ler as contradições das nossas atuais sociedades e representa uma importante forma de resistência. Por outro lado, do ponto de vista da pesquisa e da produção do(s) conhecimento(s), ele proporciona a busca de novas ferramentas analíticas de compreensão dessa nova geração de jovens que se encontra em processo de indigenização e que diariamente tem reclamado por uma segunda descolonização. Igualmente, o seu estudo obriga os pesquisadores a mobilizarem o conceito raça que tem estado ausente nos estudos realizados em Cabo Verde, escolha essa por vezes propositada, visto que uma boa parte da produção teórica e ensaísta sobre as ilhas situa-se ideologicamente no primado do povo singular, fruto da síntese cultural perfeita, ao invés de problematizar sobre o encontrão cultural havido após o achamento das ilhas.
Tem o projecto STREET SOLDJAS, é universitário e estudou sobre “Thugs no feminino: um breve olhar sobre o fenómeno”. O que tem aprendido com estas investigações e projectos? A partir destes trabalhos, de que forma se podem adquirir aprendizagens para que o país Cabo Verde possa viver livre do narcotráfico, das associações criminosas norte-americanas e de todos estes e outros problemas do género?
“Street soldjas: processos de afirmação juvenil e apropriação do espaço urbano da Praia, Cabo Verde” é o nome do meu projeto de doutoramento em Estudos Urbanos, que espero concluir entre o final deste ano e o início de 2018. Comecei em 2006, no âmbito do Mestrado em Sociologia, a pesquisar sobre as crianças em situação de rua na cidade da Praia e a partir de 2008 desloquei o foco para os gangues de rua, os auto e hétero-denominados “thugs”, que transformei oficialmente num projeto de doutoramento em 2014. Ao longo da pesquisa etnográfica em alguns bairros da cidade da Praia fui percebendo a complexidade do fenómeno e a legitimação da sua violência pelos partidos políticos em época eleitoral, bem como a sua ligação com o narcotráfico nacional e internacional e com a questão das deportações de jovens cabo-verdianos dos EUA e da União Europeia. A minha tese é de que num país de parcos recursos, em que os jovens se deparam diariamente com a segregação de oportunidades, os gangues de rua, bem como as fações do narcotráfico nacional, surgem como espaços de afirmação social, e são grupos sociais que tal como os outros grupos, como por exemplo os partidos políticos, constroem a sua identidade de forma agressiva, em oposição ao outro, nessa disputa pelos escassos recursos existentes. A questão dos “thugs” no feminino foi uma reflexão que surgiu num dia em que fui questionado sobre a participação feminina da delinquência urbana coletiva na Praia. A meu ver, o que havia eram jovens do sexo feminino, em alguns casos, namoradas dos membros dos gangues, que de vez em quando, agrupavam-se com outras na mesma condição e respondiam às provocações das namoradas e/ou amigas de elementos dos grupos rivais dos seus namorados em festas e demais atividades lúdicas. Contudo, mais tarde comecei a perceber que, em muitos casos, eram mais do que isso e notícias recentes da presença de raparigas em dois grupos em atividade delinquente em dois bairros da cidade veio abrir novamente o debate sobre o papel das raparigas nos grupos “thugs”. Quando falamos de “thugs” estamos a falar exclusivamente de jovens do sexo masculino, visto que ela representa uma espécie de masculinidade negra e passa a ser encarado nas narrativas do gangsta rap como uma manifestação da “insubordinação agressiva”. Aliás, esta representação é visível na hipermasculinidade negra e glamour que 2Pac emitia nas suas narrativas, o que fez com que essa identidade fosse abraçada por muitos jovens fora dos EUA como modelo de masculinidade. É de salientar que a violência perpetrada em nome desta masculinidade não é tanto resultado de uma identidade, mas sim de uma tentativa de restabelecer o poder e, portanto, pertencer a um grupo valorizado, respeitado, que detém poder. Em Cabo Verde já há trabalhos interessantes de Lorenzo Bordonaro e Silvia Stefani que demonstram de forma inequívoca a reprodução deste modelo no contexto praiense, onde encontraram equivalência no modelo da masculinidade local, na medida em que reproduz as ideias de força pessoal, coragem e desafio de restrições sociais. A minha perspetiva vai no mesmo sentido desses autores. Daquilo que já se tem publicado sobre a temática da criminalidade urbana coletiva, em que tenho contribuído com alguns textos, penso que serve de base para uma adequação de políticas de segurança pública que atua nas causas do fenómeno e não apenas nos efeitos através de políticas reativas como se tem feito até à data.
Grande parte dos seus estudos está muito focada no rap. De que forma é que para si o rap pode ser uma força motivadora e impulsionadora para a luta pela cidadania, por um país melhor, por uma melhor cultura?
Jean-Marc Ela, sociólogo camaronês, afirma que os jovens africanos se encontram atualmente em rutura com as elites intelectuais e líderes políticos, optando por uma linguagem cujo desenvolvimento obedece a uma lógica “informal”, num contexto onde a imaginação é poderosa e ativa. Para mim, o rap cabo-verdiano faz parte desta linguagem “subalterna” que fala Ela e se constitui como uma nova forma juvenil de afirmação identitária, de resistência e de protesto, uma vez que é o reflexo da sociedade atual que se faz ouvir através do rap da qual não se pode ignorar nem o estilo nem a mensagem. O que lá encontramos são as preocupações da vida quotidiana, as esperanças e as feridas, os medos, as necessidades e as aspirações de uma sociedade submetida às pressões de correntes portadoras de valores contraditórios. Para além do rap funcionar como essa nova forma de afirmação, de denúncia e um espaço por onde a África estava a ser “(re)descoberta”, ele proporciona igualmente novas formas de socialização dos jovens, nas quais as sociabilidades produzidas ocupam um lugar central. Embora não considero que haja um movimento hip-hop em Cabo Verde, o que é patente no apelo da maioria das músicas à união, e saber das rivalidades ideológicas e estéticas existentes entre os vários grupos existentes na Praia em particular e em Cabo Verde no geral, reconheço que o rap conseguiu criar uma plataforma política pelo fato de ter tido a capacidade de sensibilizar e consciencializar uma grande parte da população juvenil para temas diversos. No caso cabo-verdiano, o rap foi uma das poucas expressões artísticas que deu contributos significativos em matéria do uso da liberdade de expressão e da ativação da cidadania política de muitos jovens, ao possibilitar que jovens em situação de marginalidade (e não só) pudessem reformular as suas críticas e se assumir enquanto protagonistas, procurando assim novos mecanismos emancipatórios, favorecendo a tomada de consciência do mal-estar social e político que se tem vivido no país nos último anos.
O seu trabalho envolve muito as questões sociais, os direitos humanos, a violência, o estado em que Cabo Verde se tem mantido. O que mais o fascina e mais o cativa para estudar e escrever sobre estes temas? Que importância tem para si aprofundar a história do rap, da cultura, das políticas como o exemplo deste estudo: "Cultura de rua e políticas juvenis periféricas: aspectos históricos e um olhar ao hip-hop em África e no Brasil"?
No campo epistemológico das ciências sociais, pratico aquilo a que Michael Burawoy chamou de sociologia pública e que eu prefiro ajustar e denominar de sociologia da transgressão. Num certo momento da prática da pesquisa, vi-me confrontado com questões epistemológicas sobre a legitimidade do uso do conhecimento científico para fins de emancipação social, questão essa que fui percebendo que se enquadrava numa discussão mais ampla sobre o papel que os cientistas sociais podem ou não desempenhar no campo da política e da intervenção na esfera pública. Comecei, portanto, a me orientar por uma postura e pensamento académico de que qual o interesse da ciência se ela não visar a ação. Sendo assim, comecei a tentar colocar em prática um saber, que sem recusar o escrutínio da academia, possa contribuir para uma ação política engajada, fora das influências partidárias, orientada para a discussão e a concretização de uma agenda emancipatória. Foi assim no estudo dos gangues de rua, bem como no estudo do rap e foi a partir da problematização destes estudos que surgiram questões sociais como o dos direitos humanos e das violência(s). No caso do artigo a que refere, surge na sequência do trabalho colaborativo com Miguel de Barros. O ensaio foi escrito a três mãos, eu, Miguel e a brasileira Rosana Martins, em que buscamos analisar as ações culturais do hip-hop no continente africano e no Brasil como possíveis mediações para novas práticas de sociabilidade e formas de representação diante dos diversos conflitos presentes no quotidiano dessas sociedades. Antes, já tinha escrito um artigo em que se encontra no prelo dando conta das continuidades culturais entre o rap, a sua forma primária, o griot, e o finason, que é um importante elemento de improvisação integrado no batuku. Na análise da música do rap nos nossos países é de primordial importância efetuar-se um histórico sobre a génese da música afrodescendente e da cultura hip-hop, que remonta desde os griots africanos, à diáspora negra, a Jamaica e aos EUA. Apesar de considerar o finason simultaneamente um griot moderno e um pré-rap cabo-verdiano, não quero com isso dizer que o rap que chegou a Cabo Verde nos finais dos anos de 1980 foi o griot que partiu nos barcos de escravos no passado. Aquilo que veio inicialmente nas malas dos filhos dos emigrantes nos EUA e num segundo momento via media é claramente o rap americano. Contudo, há que se ter em conta que só recentemente alguns rappers crioulos nas ilhas e na diáspora começaram a indigenizar o rap crioulo através da conexão orgânica com as tradições profundamente enraizadas no contexto cabo-verdiano. No campo político, os partidos políticos, as instituições públicas e algumas ONG’s, ao reconhecerem o poder da rua do hip-hop tentaram nalgumas ocasiões censurar os rappers mais politizados e na maioria dos casos buscaram a sua cooptação com vista à divulgação das propagandas partidárias e institucionais, garantindo assim que as suas mensagens cheguem a uma maior audiência. A importância do estudo do rap, como já referi anteriormente, encontra-se na sua capacidade de problematizar as contradições da nossa sociedade, por um lado, e, permitir aos jovens questionar sobre o porquê da sua história não esteja a ser ensinada nas escolas, a não ser a partir do olhar do colonizador.
Quais são os seus sonhos para Cabo Verde?
O meu sonho para Cabo Verde é ver os jovens politizados, entendido por mim como a única forma de se furtar à lógica político-partidária que os tem aprisionado e segregado as suas oportunidades.
Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.
Vidas e Obras
Entrevista: Pedro Marques
Correcção: Jú Matias
30 de Março de 2017
27 de Março de 2017