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Entrevista ao Ivo Miguel Barroso

Entrevista ao Docente universitário, Jurista que se tem manifestado contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, Ivo Miguel Barroso.

Uma das suas Causas é pugnar pela reversão do “Acordo Ortográfico” de 1990 (= AO90). Como é que embarcou nesta luta?

IMB – Sem prejuízo de ser espectador das notícias, a ratificação do 2.º Protocolo Modificativo, em Maio-Julho de 2008, passou-me despercebida, por estar muito envolvido num projecto académico.

Só em Dezembro de 2011 tive consciência do AO90, uma vez que foi imposto pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, para vigorar na Administração Pública a partir de 1 de Janeiro de 2012.

Desde logo, fiz uma queixa do Provedor de Justiça, em 20 de Dezembro de 2011 (queixa que, até ao momento, Outubro de 2016 - 5 anos e 10 meses -, não teve resposta).

Tinha uma conta pessoal no Facebook desde Junho de 2010. A rede social do Facebook, as Páginas e Grupos então criados, com notícias diárias, “em tempo real”, sobre tudo o que dizia respeito ao AO90 – designadamente à decisão de VASCO GRAÇA MOURA ter mandado desaplicar o AO90 ao Centro Cultural de Belém, foram essenciais, para que pudesse ter acesso a todas as informações e para que entrasse no tema do AO90, também do ponto de vista científico (em 2016, designadamente, foi defendida uma Dissertação de Doutoramento, na Faculdade de Letras, que incidia só sobre os artigos de opinião, publicados em 2012 em Portugal, sobre o AO90).

Foi um tempo muito profícuo em artigos de opinião e nas redes sociais, até ao momento…

Fiz parte de três Grupos anti-AO90: “Voluntários da ILC contra o Acordo Ortográfico, nas Feiras do Livro”, em Abril de 2012; “Em aCção contra o Acordo Ortográfico”, no último quartel de 2012; e, depois, em 6 de Dezembro de 2014, «Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990», conjuntamente com outras pessoas, designadamente o meu Colega e Amigo, também Jurista, Dr. ARTUR MAGALHÃES MATEUS.

Há muitos Grupos no Facebook contra o AO90, o que é demonstrativo da impopularidade do AO90. Salientaria também “Professores contra o Acordo Ortográfico”.

Saliento também várias outras Páginas do Facebook: “Tradutores contra o Acordo Ortográfico”; uma Página com o mesmo nome do Grupo (Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990); a Página “Referendo contra o “Acordo Ortográfico” de 1990”; e “Brasil & Portugal contra o Acordo Ortográfico”.

O que é que o levou a ser contra o “Acordo Ortográfico” de 1990? Desde que foi imposto pelo 2.º Governo de José Sócrates, quais foram os problemas que este “Acordo” causou e de que forma tem prejudicado a língua e a cultura?

Ivo Miguel Barroso – Resumidamente, razões jurídicas, razões linguísticas e razões de cidadania.

Na minha opinião, o Tratado do AO90 é inconstitucional, na sua totalidade, por violação do artigo 43.º, n.º 2 da Constituição: o Estado não pode programar a cultura e a educação segundo quaisquer “directrizes estéticas, políticas, ideológicas” (sic); entendo que é inconstitucional que o Estado – e, muito menos, o Governo-administrador - legisle sobre ortografia; entendo que é um dos limites ao poder do Legislador ordinário, dado que, v. g., incide sobre a autonomia privada.

Esta Reforma foi implementada contra os estudos prévios realizados. Ora, é recomendável que qualquer reforma empreendida pelo Estado seja respaldada por um forte respaldo científico, precedido de discussão pública, neste domínio da linguagem escrita, de que a ortografia faz parte.

As razões linguísticas e filológicas contra o AO90 encontram-se explicadas em Pareceres e em trabalhos publicados.

Saliento, a este respeito, os três livros do Professor ANTÓNIO EMILIANO sobre o assunto (Babel); os de FERNANDO PAULO BAPTISTA (Edições Piaget); o de FRANCISCO MIGUEL VALADA (Textiverso).

O AO90 tem ainda várias inconstitucionalidades parciais:

A mais grave é a de o assim auto-intitulado “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” ter inventado palavras que não existem no Português do Brasil: “conceção” (por “concePção”) e “receção” (por “recePção”) (Base IV, n.º 1, al. c); e “Nota Explicativa” do próprio AO90 (!)).

Isto contribui para o caos ortográfico entre nós, uma vez que “conceção” passou a ser frequentemente confundida com “concessão” (de créditos, por exemplo); e “receção” com “recessão” (económica, por exemplo); isto até por altas instituições universitárias (como é comprovado pela investigação aturada da Página do Facebook “Tradutores contra o Acordo Ortográfico”, https://www.facebook.com/TradutoresContraAO90/photos/a.212426635525679.35361.199515723483437/884787051622964/?type=3&theater).

Existem centenas de outras palavras inventadas, como “espetador” (em lugar de “espectador”); “deceção”, em lugar de “decepção”; palavras essas que também não existem em Português do Brasil.

As múltiplas facultatividades (duplas ou múltiplas grafias) do AO90 são a continuação da Reforma da Academia Brasileira de Letras, emitida em 1943 e aplicada a partir de 1955. São um aspecto muito pernicioso, uma vez que eliminam o “conceito normativo de ortografia” (segundo referem os mais reputados especialistas, como IVO CASTRO / INÊS DUARTE, ANTÓNIO EMILIANO, ISABEL PIRES DE LIMA).

A supressão das consoantes “mudas” “c” e “p”, se não articuladas, por parte da Reforma brasileira de 1943, veio afastar a ortografia do Português do Brasil da maioria das línguas europeias, em que essas consoantes, não só são grafadas, mas também, amiúde, articuladas. Isto é muito grave, pois é um autêntico assassinato da Reforma de 1911, que mantinha essas consoantes antes das vogais “a”, “e” e “o”, desde que fossem eventualmente proferidas ou se contribuíssem para manter a família de palavras.

Assim, verifica-se que o AO90 não traz qualquer benefício para a Comunidade luso-brasileira, bem pelo contrário: não há quaisquer estudos científicos, nem de impacto – após a aplicação -, que demonstrem ou comprovem as alegadas vantagens políticas e económicas do AO90.

Por sinal, o livro “O potencial económico da Língua Portuguesa”, coordenação do Reitor do ISCTE LUÍS RETO — um trabalho de investigação conduzido por uma equipa de investigadores do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE-IUL), a pedido do Instituto Camões —, que o Professor MARCELO REBELO DE SOUSA apresentou em 5-12-2012 (v. https://www.youtube.com/watch?v=KYVuMdqK0is), não menciona, uma única vez, o AO90. Pelo contrário, o livro regista as transacções entre Portugal e, por outro lado, Angola e Moçambique, que não ratificaram o AO90.

Nomeadamente por estas razões, o AO90 não unifica a ortografia das variantes Portuguesa e Brasileira da nossa Língua (veja-se a rejeição do Projecto do AO de 1986, que preconizava uma unificação forte ao nível ortográfico, inclusivamente ao nível da acentuação); e muito menos unifica (nem, de resto, é seu propósito) outros aspectos da Linguagem escrita, tais como o léxico, a morfologia, a sintaxe, a morfo-sintaxe, a pragmática e a semântica).

De resto, uma união linguística mais ampla do que a ortográfica não é possível. Mesmo que tal “unificação forte” fosse possível -, não seria benéfica. A pretensa unificação, ao nível de toda a língua, não é exequível, nem, de resto, é o que o que o AO90 se propôs (v. “Nota Explicativa”).

Fazer com que o AO90 retroceda é uma questão de civilização, de forma a termos um ensino e uma ortografia robustas, sem erros “oficializados”; cientificamente bem construído, com proscrição de facultatividades; e sem a escrita depender da oralidade (critério há muito ultrapassado) e, por isso, mantendo consoantes que, até aqui, eram escritas.

Com isto, não estou a veicular que a ortografia pré-AO90 fosse perfeita. No dizer de ANTÓNIO EMILIANO, não há ortografias perfeitas.

Desde as introduções das Reformas ortográficas, o que se perdeu enquanto língua e cultura? O que se tem perdido nesta batalha e o que se pode aprender para não se cometer os mesmos erros?

IMB – A Reforma de 1911 mudou profundamente a fisionomia da ortografia portuguesa, para o bem e para o mal. Talvez tenha sido a principal herança da I República, posto que está invisível. Aproximou-nos em larga medida do Castelhano (a principal fonte de inspiração e de admiração do Linguista GONÇALVES VIANNA, Relator da Reforma de 1911), mas afastou-nos deliberadamente do Inglês, do Francês, do Italiano, do Romeno (só para citar algumas línguas de cultura mais importantes).

Em minha opinião, ter-se feito 7 Reformas ortográficas (1911, 1920, 1931, 1940 – Reforma “soft law” -, 1943-1944 – esta não tinha normas ortográficas -, 1945 e 1973) foi um erro.

Porém, essas Reformas não tinham os erros do AO90.

Do cômputo geral das Reformas aludidas – que, no essencial, terminaram em 1945, quando o número de escreventes alfabetizados era ainda escasso, comparativamente com os números dos anos 70 e com os actuais -, resultou, em todo o caso, uma ortografia estabilizada, costumeira e padronizada.

Na minha opinião de cidadão, basta de “mexer” – ainda para mais, arbitrariamente – na nossa variante da ortografia do Português europeu. É tempo de aceitar o que está, independentemente de a ortografia costumeira pré-AO90 não ser perfeita (de resto, não existem ortografias perfeitas), a pensar no bem comum e nas gerações futuras.

O carácter incongruente do AO90 e os erros que, consequentemente, decorrem da sua “aplicação” têm feito multiplicar as manifestações de rejeição e repúdio pelo AO90.

Tem-se perdido “ideias claras e distintas” (para citar DESCARTES) quanto à ortografia; e tem-se alastrado um caos ortográfico a todos os níveis.

Ocorrem novos erros de hipercorrecção – antes inexistentes -, em função do “critério pronúncio-cêntrico” do AO90, em virtude da eliminação indevida de consoantes que se pronunciam, levando a “palavras” aberrantes como “adatação”, “inteletual”, “exeto” (por “excepto”), entre muitos outros exemplos; e, pior do que isso, ocorrem erros em que tenta “compensar-se” a falta das consoantes ditas “mudas” com a colocação indevida de acentos agudos em sílabas não tónicas: “létivo” (https://www.facebook.com/TradutoresContraAO90/photos/a.645077242260614.1073741827.199515723483437/854733977961605/?type=3&theater); “elétricidade”.

A hifenização do AO90 é caótica (tal como é em Português do Brasil) (embora a hifenização anterior não fosse perfeita).

A agravar o caos ortográfico, verifica-se amiúde mistura de ortografias pré-e pós-AO90, no mesmo texto; o que, em parte, deriva das facultatividades do AO90, que geram multigrafias pessoais (por ex., pode escrever-se “objectivo” e “aspeto”, sem “c”); palavras que existem como na ortografia brasileira, com ou sem dupla grafia — como “fato” em lugar de “facto”, “contato” em lugar de “contacto”; “seção”, em lugar de “secção”; “Netuno” em lugar de “Neptuno” — , mas que a Base IV, n.º 1, al. c), do AO90, a meu ver – mas mal – permite; “contato”, que em Português do Brasil é uma facultatividade, em paralelo com “contacto”; e, em larga medida, da não assimilação das pseudo-regras do AO90.

Não é de estranhar que exista, pois, uma esmagadora maioria da população que é “totalmente contra” o AO90 (após consulta a 81.730 pessoas, mais de 94% manifestaram opinião contrária (amostra significativa desde 16 de Setembro de 2011 (dados consultados em 30 de Janeiro de 2016), publicada em https://www.facebook.com/questions/214510845276359/, Página do Facebook “Pela Língua Portuguesa contra o Acordo”).

Publicou “Inconstitucionalidades orgânica e formal da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011”¹. O que é que o levou a estudar a forma ilegal com que o “Acordo Ortográfico” de 1990 foi levado avante e como foi introduzido indevidamente no sistema educativo? Sente que é cada vez mais imperioso e essencial que se conheça os meandros deste pretenso “Acordo Ortográfico” de 1990, através do seu trabalho?

IMB – Comecei por estudar, não o Tratado do AO90, mas a “implementação” do AO90 em 2012, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 (bem como as edições das Constituições, segundo a ortografia das várias Reformas ortográficas).

Com efeito, no nosso sistema jurídico, os Tratados não são sindicáveis ou impugnáveis directamente pelos cidadãos afectados. A respectiva Jurisdição cabe ao Tribunal Constitucional. Ora, o acesso, para se lá chegar, é virtualmente impossível, uma vez que não existe o instituto do “recurso de amparo” (ou “acção constitucional de defesa”), como há nos Direitos alemão e espanhol.

Só existe a excepção de uma norma do AO90 ser desaplicada, em sede de fiscalização concreta (a propósito de um litígio judicial), incidentalmente, num pleito cujo objecto é diverso (art. 204.º da Constituição). Ora, em mais de 4 anos de “implementação” do AO90 em Portugal, só houve um caso em que tal sucedeu: no caso do Juiz RUI TEIXEIRA, que interpôs uma acção judicial para avaliar da pena disciplinar de advertência, que lhe foi aplicada pelo Conselho Superior da Magistratura. Ou seja, apenas um caso em mais de 4 anos, e nem sequer num domínio – o judicial - em que o AO90 fosse obrigatório!

Isto demonstra a falibilidade do nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade, como o Professor JORGE REIS NOVAIS demonstra à saciedade, no livro Direitos fundamentais e Justiça Constitucional (2012).

Como disse, concluí que a RCM n.º 8/2011 se tratava de um regulamento administrativo independente, eivado de múltiplas inconstitucionalidades.

Com vista a intentar uma acção judicial, o AO90 não poderia ser impugnado, directamente e a título principal, junto dos tribunais, pelas razões aludidas.

Porém, o nosso sistema jurídico permite que os cidadãos possam instaurar acções judiciais populares contra regulamentos e normas administrativas regulamentares (art. 268.º, n.º 5, em conjugação com o art. 52.º, n.º 3, al. a), da Constituição), como é o caso da RCM n.º 8/2011.

Para além dos elementares direito de resistência contra normas inconstitucionais, segundo o art. 21.º da Constituição, e do exercício quotidiano da liberdade de expressão, designadamente nas redes sociais, a estratégia, delineada pelo Grupo do Facebook «Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990» com o objectivo de fazer reverter o AO90 e o facto consumado inconstitucional, desenvolve-se em duas vias:

1) As vias jurisdicionais de luta contra a “aplicação” do AO90 são realizadas através de acções judiciais junto da Justiça Administrativa.

Em Maio de 2016, foi intentada uma acção judicial popular, visando impugnar a “aplicação” do AO90 na Administração directa estadual mais próxima, incluindo Ministérios, Direcções-Gerais e escolas públicas.

2) A via política da Iniciativa de Referendo ao AO90, em curso desde final de Junho de 2015, tendo já obtido 32.300 assinaturas (até Setembro de 2016), em papel, de um total de 60.000; ou seja, mais de metade.

As folhas de assinaturas estão disponíveis “on line”, directamente em https://referendoao90.wordpress.com/documentos-para-recolha-de-assinaturas/;

bem como no Grupo do Facebook “Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990”, que está a dinamizar a recolha de assinaturas: https://www.facebook.com/groups/acordoortograficocidadaoscontraao90/.

Os Cidadãos podem subscrever a Iniciativa de Referendo, descarregando o folheto; colocando neste o seu nome completo, número de bilhete de identidade ou cartão de cidadão e assinando.

Após preenchidas e assinadas, as folhas de assinaturas deverão ser digitalizadas e enviadas para o email: referendoao90@gmail.com.

Em alternativa, as folhas de assinaturas — devidamente impressas, preenchidas e assinadas — poderão ser enviadas por correio, para o Centro de Estudos Clássicos ou para o Centro de Estudos Comparatistas (ambos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), conforme está referido no folheto e no blogue da Iniciativa de Referendo.

Tem feito trabalho em Direito Constitucional, mais concretamente dos Direitos Fundamentais como casamento entre pessoas do mesmo sexo. O que o motivou a enveredar pelo Direito Constitucional e pelos Direitos Fundamentais? É importante para si ter um papel nesta abertura na lei sobre as questões das associações que pugnam pelos direitos dos homossexuais?

IMB – O meu interesse pelo casamento remonta a final de 2009, à discussão da Lei n.º 9/2010, que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em Janeiro de 2010. Desde já, friso que nada tenho contra as relações entre pessoas do mesmo sexo. Entendo que elas são lícitas, desde que entre pessoas maiores de idade e praticadas em liberdade. Em Direito Privado, “o que não é proibido entende-se permitido”. E não existe um bem jurídico que justifique a criminalização da homossexualidade. Na Medicina, a homossexualidade não é catalogada como doença desde a década de setenta do século XX.

Porém, em termos jurídicos e sociológicos, historicamente o casamento foi sempre, desde há 80.000 anos, heterossexual, ou seja, entre “homem e mulher”, tal como decorre do artigo 16.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 (cujas normas adquiriram valor consuetudinário, segundo o Professor EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Especialista em Direito Internacional Público). Trata-se de um direito de titularidade entrecruzada (o elemento sistemático de interpretação, bem como o elemento genético, constituído pelos trabalhos preparatórios, depõem neste sentido). Daí que, até derrogação, desaplicação e subsequente formação de norma costumeira em contrário, existe uma norma de “Ius Cogens” (Direito Internacional imperativo de base costumeira) que postula que o casamento é entre homem e mulher. Os movimentos em favor dos direitos dos homossexuais datam de 1989. Até 2016, passaram menos de três décadas.

Tenho o mesmo entendimento sobre o “casamento” entre pessoas de mesmo sexo em relação à Constituição-norma Portuguesa de 1976. Com efeito, o artigo 36.º, n.º 1, refere que “Todos têm o direito de contrair casamento (…)”.

Ora, existe uma regra hermenêutica/interpretativa da Constituição: o artigo 16.º, n.º 2. Segundo esta, os preceitos constitucionais relativos a direitos fundamentais (como é o caso) devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal de 1948. Ora, se assim é, o inciso “Todos” (constante do art. 36.º, n.º 1, da Constituição) deve ser interpretado à luz do aludido artigo 16.º, n.º 1, da Declaração Universal: assim, deve entender-se que o casamento é celebrado entre “homem e mulher”.

Sem prejuízo deste entendimento, de considerar que o casamento, como instituição milenar, é sempre heterossexual, entendo que podem existir lacunas ocultas no regime associado ao casamento, que não deve ser aplicável, pelo menos “in toto”, a pessoas do mesmo sexo (embora mantenha que o conceito de casamento é heterossexual); por exemplo, ao nível do regime sucessório ou outros.

Neste sentido, propugno a criação de um instituto alternativo – tal como existe no Direito alemão -, a união civil registada, de que tanto pessoas do mesmo sexo, como pessoas de sexo diferente, podem usufruir para conformar as suas relações e para que o Direito tutele e colmate as referidas “lacunas ocultas”.

A ausência de positivação das liberdades de reunião e de associação no Direito Português, entre 1820 e 1870 ². O que se pode aprender com este trabalho e com a realidade destas cinco décadas do século XIX?

IMB – Trata-se de um excerto de um estudo mais lato sobre a História Constitucional das liberdades de reunião e de associação.

Não obstante serem hoje direitos associados aos “direitos de primeira geração” – os direitos negativos, típicos do constitucionalismo liberal -, eles não foram reconhecidos no Direito positivo português durante muito tempo – exceptuados os cerca de cerca de 4 anos de vigência da Constituição de 1838. Só em 1870, durante um Governo ditatorial chefiado pelo DUQUE DE SALDANHA, e seguindo a consagração em Espanha, foram consagrados em dois decretos ditatoriais com força de lei, por influência de um proeminente Ministro desse Govêrno, Doutor DIAS FERREIRA (antepassado da Dra. MANUELA FERREIRA LEITE).

Porém, verifica-se que havia um desfasamento entre a teoria e a prática, uma vez que há estudos aprofundados sobre os “clubs” durante o vintismo, bem como durante a época Setembrista, a partir de 1836; bem como mais tarde.

A liberdade de reunião é congénita ao homem. O respectivo conceito abrange encontros fortuitos, concertos, espectáculos, etc., sem prejuízo de nem todas as reuniões em lugares públicos ou abertos ao público estarem sujeitas ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de Agosto (diploma ainda hoje em vigor, com pequenas alterações).

Este estudo foi um trabalho em memória do Professor ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, de quem fui discípulo, como Assistente-estagiário, na disciplina de Direito Comparado, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, entre 2002 e 2003.

Infelizmente para mim e para todos os seus amigos e conhecidos, o Professor ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS viria a falecer em 2003, deixando uma grande saudade, pois era uma pessoa muito generosa, afável, amiga, e que recolhia simpatia geral. A sua morte prematura causou-me uma profunda mágoa. Deixou-me muitas saudades, pelo Amigo, pela Pessoa e pelo Universitário que é.

A natureza do sistema de governo na Constituição de 1911³ grande parte do seu trabalho é sobre a história da organização do poder político. É para si a melhor forma de se contribuir para um futuro melhor e uma aprendizagem mais satisfatória?

IMB – Sim. O estudo, publicado numa Obra colectiva da Assembleia da República em 2011 (organizada pelos Professores JORGE MIRANDA / ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO / PEDRO LOMBA, nas Comemorações do Centenário da Constituição de 1911), procura destrinçar entre duas visões sobre o sistema de governo (isto é, as relações entre os órgãos que exercem a função politica:

i) A visão que parte do texto da Constituição de 1911. Aqui, existe a consagração de um Executivo monista, no essencial: o Executivo é constituído pelo Presidente e pelos Ministros, por influência brasileira e, indirectamente, norte-americana.

Só num artigo 53.º, proposto tardiamente nos trabalhos preparatórios e defendido por SIDÓNIO PAES, foi consagrada – a meu ver, contraditoriamente com os artigos precedentes, a figura do “Presidente do Ministério” (equivalente à figura do Primeiro-Ministro). Por outro lado, inexistiam mecanismos de responsabilidade política do Executivo perante o Congresso (o nome dado ao Parlamento, então, por influência da Constituição brasileira de 1891). Portanto, com o devido respeito, não acompanho a visão da generalidade dos autores, que considera que o sistema de governo teria sido parlamentar de assembleia (ainda que porventura atípico). Não é isso que resulta da Constituição-norma. Tratava-se de um sistema de governo atípico (um pouco como o resultante da Constituição de 1822).

ii) Na prática institucional (ou, Constituição “não oficial”, se se quiser utilizar a expressão do Professor PAULO OTERO), o sistema deslizou para uma omnipotência do Congresso, que fazia e desfazia os Governos, aproximando-se algo do sistema parlamentar de assembleia, que vigorou, na prática institucional, entre 1875 e 1940, em França (que, curiosamente, também o não consagrava nas Leis Constitucionais de 1875). No entanto, o sistema de governo parece estar a meio caminho entre o sistema parlamentar de assembleia e o sistema de governo convencional (que vigorou, sem Constituição, entre 1792 e 1795, em França; conforme descrevo num artigo publicado na Revista “O Direito”, de 2011, III). Em suma, trata-se também de um sistema de governo atípico.

Tem igualmente outros trabalhos sobre os direitos e liberdades no Estado Novo e na actualidade. O que o fascina e motiva trabalhar estes temas e o que é que tem aprendido?

IMB – A História em geral e a História Constitucional, em particular, são apaixonantes. É de facto fascinante estudar História Constitucional, portuguesa ou outra, designadamente a História francesa, que muito influenciou muitas experiências de outros Estados e as teorias jurídico-políticas.

Estudar Direitos Fundamentais na actualidade, em termos dogmáticos, à luz da Constituição Portuguesa de 1976, é também uma paixão, ainda que não inteiramente desenvolvida.

Já leccionei a disciplina, como colaborador, por duas vezes, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2003 e 2014). Há aspectos interessantíssimos, que pude estudar aquando da Tese de Mestrado e posteriormente.

Quais são os seus sonhos para Portugal?

IMB – Tenho uma Página no Facebook, para além do perfil, intitulada “Ivo Miguel Barroso. Jurista. Cidadão”, em que publico os assuntos que acho mais relevantes do meu percurso pessoal.

Tenho também no Facebook uma Página intitulada “Direito Constitucional – Portugal”.

Que tenhamos um País mais livre, sem prejuízo de ser responsável (não há liberdade sem responsabilidade). Que tenhamos cidadãos mais cientes e responsáveis.

Que tenhamos uma Ciência Jurídica mais evoluída, abandonando o sistema de o Curso de licenciatura Direito estar confinado a 4 anos, devido à implementação do “Processo de Bolonha”.

As desvantagens superam largamente as poucas vantagens; sobretudo em Cursos como Direito, muito ligados à realidade cultural de um País, e que não permitem de modo nenhum saídas profissionais fáceis noutros Estados.

Tal que tem gravíssimos prejuízos para a qualidade de ensino; a prazo, terá consequências muito nefastas, em termos de desenvolvimento científico. Portugal deve estar na linha da frente da Ciência, designadamente ao nível do Direito, ao invés de se fazer um nivelamento por baixo.

É essencial termos uma cultura de exigência e de qualidade. Infelizmente, hoje não existe (quem, como eu, experimentou leccionar nos dois sistemas e compara, sabe que isso corresponde à verdade), e depaupera o sistema de “avaliação contínua”, que existe em várias Faculdades, como na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Os alunos de Direito chegam ao final do Curso e sabem cerca de um terço do que sabiam até 2007, quando o Curso tinha 5 anos. Não estou com isto a dizer que a responsabilidade seja deles.

Na maioria das cadeiras do Curso de Direito, designadamente no 1.º ano, os conteúdos das aulas práticas foram reduzidas ao básico dos básicos. Com o sistema de Bolonha, raramente pude aprofundar as matérias.

O problema é que não há “qualidade de ensino”. Existe uma involução no sentido contrário à “elevação do nível educativo, cultural e científico do país” e à existência de “quadros qualificados (para citar o art. 76.º, n.º 2, da Constituição), com um Curso apenas com 4 anos, com 10 cadeiras semestrais por ano, com cadeiras optativas; muito poucas aulas práticas; com o sistema de avaliação em vigor, das "frequências", que, na prática, são exames.

E esta nova geração tem muita mais matéria para aprender derivado à evolução do Direito, como é o caso do direito constitucional, que para além da sua evolução terá que respeitar o direito internacional e o Direito da União Europeia, etc..

O que menciono para o Curso de Direito (sem prejuízo de dever haver uma aprendizagem contínua ao longo da vida) é perfeitamente transponível para outros Cursos.

Como é que é possível haver uma Licenciatura em Filosofia em 3 anos, por exemplo?

O "Mestrado de Bolonha" onera os alunos; tem um grau de exigência muito mais baixo do que um "Mestrado científico, “pré-Bolonha”, que continua a existir.

Que o bom senso impere e que o retrocesso do AO90 seja uma realidade, pelas razões aludidas.

Que tenhamos uma Democracia participativa semi-directa, com Iniciativas Legislativas de Cidadãos e Iniciativas de Referendo a poderem ser subscritas informaticamente (fui proponente de uma Petição nesse sentido, junto da AR, tendo obtido um resultado em parte satisfatório).

Que tenhamos boas leis, em particular nos domínios dos Direitos Constitucional, Administrativo, Processual Penal, bem como no Direito Privado.

Que possamos vir, um dia, a ter um “Estado de direitos humanos” (para citar o pensamento do Professor PAULO OTERO). Poucos séculos antes, KANT teorizou uma Organização universal que garantisse a “Paz Perpétua”; e esse sonho viria a ser concretizado com a Organização das Nações Unidas, no século XX, no segundo pós-guerra.

Que tenhamos uma União Europeia mais justa.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques

Correcção: Mário Martins

13 de Outubro de 2016

¹ que mandou aplicar o ‘Acordo Ortográfico da «Língua Portuguesa»’ à Administração Pública e a todas as publicações no “Diário da República”, a partir de 1 de Janeiro de 2012, bem como ao sistema educativo (público, particular e cooperativo), a partir de Setembro de 2011.

² in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, volume II, coordenação de JORGE MIRANDA / LUÍS DE LIMA PINHEIRO / DÁRIO MOURA VICENTE, Almedina, Coimbra, 2005, pgs. 173-202;

³ in Assembleia Constituinte e a Constituição de 1911, Assembleia da República, Centenário da República, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, coordenação de JORGE MIRANDA / ALEXANDRE PINHEIRO / PEDRO LOMBA, Lisboa, 2011, pgs. 337-393;

Inconstitucionalidades e ilegalidades ‘sui generis’ do conversor ‘Lince’ e do ‘Vocabulário Ortográfico do Português’, Verbo Jurídico,

in O Direito, 2013, I / II, pgs. 93-179; continuação in O Direito, 2013, III, pgs. 439-521.

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