Entrevista ao actor, encenador e pintor Júlio César
Foto Gonçalo Ribeiro / 2018
Participou nos filmes “20.13 Purgatório” e “Inferno”, de Joaquim Leitão. Um sobre a frente de guerra no conflito colonial e o outro sobre ex-combatentes na Guiné. Como é que foi para si participar nestes filmes onde se abordam as vivências no na guerra no pós-guerra, os traumas e as perdas?
Num e noutro filme ressalta sobre tudo a amizade, o companheirismo, as vivências e conflitos em situações de stress. Tive a sorte de não viver a guerra colonial no teatro de operações. Socorri-me de testemunhos e indicações, preciosas, de muitos amigos e colegas que viveram o drama da guerra. Depois houve a direcção do Joaquim Leitão que é muito preciso e exigente naquilo que pretende. É um dos realizadores com quem mais gosto de trabalhar. Ele sabe o que pretende de cada personagem e tem o filme "construído" com muito rigor, antes mesmo de começar a rodar. Foram trabalhos que me marcaram muito e aos quais dei o melhor de mim. Gostei do resultado final.
É um homem das artes. O que é que as artes lhe têm ensinado e de que forma é que têm sido importantes para si como uma pessoa que vive das artes há algumas décadas?
Não se é das artes por acaso. Ser das artes não significa viver delas mas para elas. Tenho,ao longo da minha vida, tentado dar ao meu trabalho artístico o que de melhor sei fazer. Não sei se tenho conseguido mas acredito que sim. Estar com seriedade na profissão que escolhi é motivo que me orgulha e me dá mais força para continuar a aprender ...
Em 2007 participou no filme “Julgamento”. O filme centra-se entre três amigos que foram resistentes anti-fascistas, um deles tem uma filha advogada que vai fazer o seu primeiro julgamento. O pai da advogada vai assistir ao julgamento e apercebe-se que o cliente da filha tinha sido seu carrasco/pide e decide vingar-se... Foi um filme e papel importante para si? Como viveu na ditadura fascista de Salazar e Caetano, ter representado neste filme foi imperioso pelas mensagens que passaram e a reflexão sobre a justiça que não foi cumprida e que deve ser cumprida?
O " Julgamento " é um filme de muitas leituras. Denunciador da ditadura e da policia politica do regime Salazar/Caetano aborda também aquilo a que podemos chamar Justiça / Vingança. Esta confusão pode causar divisão na opinião do espectador e isso enriquece o filme. Pode parecer um filme de tese. " Se me torturou posso torturar " e esta questão fez dividir muitos cinéfilos. O argumento foi adaptado para Portugal, já que o original denunciava a policia politica brasileira durante a ditadura. Lá como cá os métodos eram semelhantes. No essencial penso que o filme é um bom documento, denunciador dos fascismos e perturbador quanto aos métodos de os combater. Foi um trabalho de que gostei imenso e me trouxe à memória muitos dos que lutaram toda a vida e morreram pela Liberdade.
Recentemente representou para a reedição d’ “O Leão da Estrela”. Como é que foi representar a reedição daquele que foi um marco do cinema de comédia em Portugal?
A minha participação no Leão da Estrela foi acidental. A indisponibilidade, à última hora, do actor que estava contratado para o filme motivou um telefonema do Leonel Vieira convidando-me para o substituir. Lá fui e achei piada.
Na entrevista que deu ao Daniel Oliveira, em “Alta Definição” da SIC, abordou o trabalho que teve quando foi para Lisboa com 11 anos e referiu que era escravatura infantil. Porque é que para si foi essencial abordar a sua situação para denunciar e referir o modo em que as crianças viviam no Estado Novo?
O Alta Definição é um programa Maior! O Daniel é um mestre conversador e arranca ao entrevistado memórias que nos dançam nos olhos. Naquele momento a conversa levou-nos para o tempo dos calções e lembrei-me de mim. Em como a vida era dura e difícil. Em que o trabalho infantil era um dado adquirido. Eram tempos de fome e grandes dificuldades, que se mantêm, e que é preciso combater. Penso que, apesar de tudo, os dias hoje são mais risonhos mas não podemos cruzar os braços. Há muito para fazer e acredito que vamos conseguir abraçar um futuro melhor ...
Referiu igualmente que o Raul Solnado foi pai e uma pessoa muito marcante para si. De que forma é que toda a vivência, e todo o trabalho a seu lado foi determinante para o seu processo de aprendizagem enquanto actor/artista e enquanto pessoa?
O Raul foi um mestre e um irmão mais velho. Foi um amigo de uma vida. Uma pessoa muito presente em todo o meu trajecto. Viajámos muito, rimos muito, aprendi com ele os caminhos da profissão. É das pessoas mais importantes da minha vida e todos os dias o recordo com uma enorme saudade.
Inventou uma máquina de projectar enquanto criança. De que é que esta veia de inventor lhe foi enriquecedora para o seu trabalho enquanto encenador nos Casinos e nas pinturas?
As invenções de criança ficam sempre na nossa memória. É natural que tenha aplicado algumas dessas "invenções" ao longo da vida. Sem ter consciência disso elas continuam cá, a bailar, e com certeza que surgem sem eu mesmo dar por isso ...
Em 1974 partilhou os palcos com o Nicolau Breyner, Ivone Silva, Fernando Tordo, Helena Isabel e Ary dos Santos. Como foi a aprendizagem nesses tempos e como foi importante e enriquecedor para todo o percurso no teatro e na televisão que tem vindo a fazer?
Em 1974 o Parque Mayer fervilhava de criatividade. Penso que o Ary dos Santos, Tordo, Nicolau, César de Oliveira e tantos outros eram figuras de primeira água e enorme talento. Operaram na altura a grande renovação da Revista à Portuguesa no ABC de Sérgio de Azevedo. Penso que, anos mais tarde, consegui aplicar no Casino Estoril muitos dos ensinamentos que então apreendi. Há uma estética que fica dentro de nós e que se põe em prática quando se tem grandes mestres. Tive a sorte de os conhecer e reconhecer que eram enormes artistas. Vultos maiores do espectáculo em Portugal.
Quais são os seus sonhos para as artes, para o teatro e cultura portuguesa e para Portugal?
Às artes o que é das artes. A cultura portuguesa tem sido muito mal tratada. Portugal tem tratado mal os agentes culturais. É preciso alguém que entenda que vale mais um teatro aberto, uma banda de música, um livro publicado, um piano afinado, um filme exibido, um concerto, um cantor, um disco ... do que dois submarinos fundeados.
Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.
Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques Correcção: Mário Martins
08 de Julho de 2016