Entrevista ao Manuel Pessôa-Lopes
Entrevista a Manuel Pessôa-Lopes, um dos administradores do grupo ‘Em aCção contra o Acordo Ortográfico’, Curador da ‘Bienal do Porto Santo’ e fundador do ‘cardinal cinco | colectivo’
1 - O ‘cardinal cinco | colectivo’ começou como ‘Bienal do Porto Santo’ Como apareceu o projecto da Bienal e a evolução para este movimento associativo?
O movimento associativo cardinal cinco | colectivo foi criado na sequência da quarta edição da Bienal do Porto Santo que ocorreu em 2011, devido à falência da estrutura que promovia a realização deste projecto nesta ilha do arquipélago da Madeira, e que era acima de tudo suportada pela Câmara Municipal do Porto Santo. A concepção deste movimento associativo foi facilitada através do programa AUDAX do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, através de uma bolsa que ganhei no âmbito do PAE – Programa de Apoio ao Empreendedorismo, promovido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e pelo Montepio Geral. O cardinal cinco | colectivo realizou em Lisboa a quinta edição da Bienal, dada a impossibilidade desta se realizar no Porto Santo devido à falta de apoio do respectivo Município, esta quinta edição da Bienal aconteceu entre Setembro de 2013 e Março de 2014, e foi uma manifestação de protesto contra a ausência de apoios à cultura e à arte, resultado do que é recomendado pela politica de austeridade que tem procurado destruir não só o Estado Previdência e a correcta incrementação da economia, como também tudo o que possa promover a nossa Identidade e auto-estima. O evento, constituído por várias mostras de artes plásticas e visuais, e também por alguns espectáculos e uma mostra de vídeo e cinema, esteve patente em vários espaços da Câmara Municipal de Lisboa, nas Freguesias da Misericórdia e dos Olivais, no Palácio da Independência, na Ler Devagar – Lx Factory e na Fábrica Braço de Prata. Para que houvesse de alguma forma uma continuidade futura… foi implementado pelo cardinal cinco | colectivo após a quinta edição da Bienal, o projecto emergência o qual pretende continuar a agregar sinergias e a dar corpo a manifestações culturais e artísticas, seguindo, não obstante as inúmeras dificuldades, a dinâmica possível daquilo que a Bienal do Porto Santo iniciou.
Envolvi-me pessoalmente tanto no âmbito profissional como emocional nestes projectos, desenvolvidos e evoluindo há bem mais de uma década, o meu desempenho como impulsionador e como Curador comprometeu todo o meu sentido de vida, preencheu-me a alma e levou-me para uma luta em que as contumazes contrariedades teimam em colocar em risco a minha sobrevivência, enquanto ainda procuro emergir num mar de convulsões e agarrar os destroços do vulgo: pão-nosso-de-cada-dia.
2 - Em que é que este evento pode ser importante como contributo para a arte, para o público e os artistas?
A Bienal envolveu nas suas cinco edições a participação de mais de quarenta países, dos cinco continentes, muitos de Paris, de Berlim, de Banguecoque, de São Paulo, de Toronto, de Antuérpia, do Mindelo, de Tóquio, do Rio de Janeiro, de Luanda, de Madrid, de Buenos Aires, etc., estiveram na pequena ilha do Porto Santo onde os argonautas portugueses estabeleceram, a partir de 1418, a base para irem pelo mar-oceano conhecer e conversar com os povos do mundo. Um projecto aparentemente simples, começou a envolver gentes, a fazer implodir para um só local tudo o que fomos de bom na história da humanidade, a transformar a ilha do filme «A Canção da Terra» de Jorge Brum do Canto num ponto de encontro (qual Ilha dos Amores) para todas as culturas se expressarem, conviverem, fundirem-se e amarem-se, através das variadas formas de expressão que os discursos artísticos disponibilizam e de que o estar na mesma ‘Casa’ nos permite compreender que afinal somos apenas uma só família e todos primos pelo costado humano, que nenhuma diferença é castradora, mas, pelo contrário, é positivamente enriquecedora da felicidade que merecemos.
A Bienal do Porto Santo teve também um carácter expansivo, eventos e acções preparatórias foram realizados nos períodos de interregno de cada edição em várias localidades do país, destacam-se os seguintes locais: Padrão dos Descobrimentos, Panteão Nacional, Palácio Cabral e Espaço Cultural das Mercês, em Lisboa, Convento de Cristo em Tomar, Instituto Politécnico de Setúbal, Clube Literário do Porto, Casa de Saúde Mental do Telhal, em Sintra, Galeria EA+ em Ponta Delgada, Festival Cineport em Lagos, Centro Cultural D. Dinis – Universidade de Coimbra, Galeria Ícone, também em Coimbra, Velha-a-Branca em Braga, Regimento de Cavalaria 3 e Museu Municipal, em Estremoz, etc. Economicamente a proposta da Bienal do Porto Santo constitui-se como um forte projecto de turismo cultural, numa ilha que tem no mercado turístico a sua essencial fonte de rendimento e suporte financeiro para a garantia da sobrevivência da sua população, além do fomento que pode constituir para a oferta turística (de qualidade) em Portugal. Quem e o que contraria e inibe iniciativas como esta, de fáceis incrementação e sustentabilidade, fundamentais para o desenvolvimento estrutural e para o bem-estar das populações, pretende de forma terrorista acabar com o que nos pode valer e tirar proveitos oportunistas do estado-de-desgraça.
3 - O que é que o leva a ser contra o novo acordo ortográfico?
Leva-me tudo! O denominado acordo ortográfico – qual novilíngua do livro «1984» de George Orwell, destina-se a aniquilar a etimologia na língua portuguesa, a destroçar as nossas raízes culturais, a inibir a nossa capacidade de raciocinar, a controlar o pensamento e a matar a nossa a identidade. Parafraseando Fernando Pessoa: «a língua é a minha Pátria… e eu tenho Mátria, e quero Fátria…», o tanto para que a nossa língua, uma das mais utilizadas neste planeta, serve, porque eu quando digo e escrevo, não converso só com quem me ouve e lê, converso também com as gerações passadas e com as futuras, numa dimensão universal, comunico com o que foi e o que será e relaciono todos os meus interlocutores comigo. Este (des)acordo altera a nossa ortografia meramente por decreto, roubam-nos a evolução, adultera os nossos costumes e os dos povos-irmãos que falam e escrevem português, anestesia a consciência sobre o valor dos vernáculos afectados, e empobrece a aprendizagem e a educação. Não une em nada os países que possuem o português como língua oficial e apenas visa servir os interesses mesquinhos de grupos económicos, de determinadas editoras, e de certas personalidades que ainda pensam que povos cultos são ingovernáveis.
4 - Para si que problemas têm surgido com este acordo que tem estado a ser imposto na sociedade e como pode ele ser combatido?
O problema mais gritante é o da educação e formação das nossas crianças e jovens – são o futuro! As crianças e os jovens são obrigados ditatorialmente a aprender e a escrever com o tal acordo ortográfico, são as maiores vítimas deste crime cultural, deste patruicídio. Também nas empresas, principalmente nas tuteladas pelo Estado, nos Órgãos de Soberania, nos Municípios, nos órgãos de comunicação social, etc. este acordo ortográfico é-nos imposto e através disso o empobrecimento da nossa língua, a intenção é mesmo essa. A primeira forma de combater esta catástrofe cultural tem que ser, em todas as frentes, a desobediência civil! Manter a ortografia costumeira! Não escrever, não publicar, recusar qualquer obrigatoriedade, não fazer nada que aplique o dito acordo ortográfico. E, muito importante, ensinar os filhos e os netos a escrever correctamente, esclarece-los e consciencializa-los da importância disso, desautorizar as directivas do Ministério da Educação. Temos que desfrenetar o AO 90 e o decreto-lei que o impõe, porque, nenhum governo, nenhuma geração, pode adulterar mediocremente a nossa língua – a nossa identidade, um valor que está consagrado na nossa Constituição, é alta-traição! O acordo ortográfico tem que sair pela janela, porque pela porta não o deixamos passar.
5 - O que tem aprendido desde que aderiu ao grupo referido no título?
Aderi logo no início ao grupo em aCção contra o acordo ortográfico, até porque sou um dos seus fundadores e administradores. Aprendi que não estou sozinho, para além dos que comigo administram o grupo, e dos seus inúmeros esforços e militância por esta causa, o grupo tem um assombroso número de milhares de aderentes, e é o grupo com mais participação, dinâmica e conteúdos em língua portuguesa que existe no facebook, sendo esta a terceira língua mais utilizada a nível mundial nesta rede social, que é por sua vez a maior de todas em termos globais. Aprendi que podemos ter muita força, que não há causas-perdidas e que vale a pena continuar a lutar pela língua portuguesa.
6 - Há vários projectos do grupo sobre o acordo ortográfico nas escolas. Um deles é «Nós e a Escola». Como pode este e outros projectos terem espaço e conseguirem uma boa aceitação por parte de alunos, pais, professores e outros funcionários? Tiveram boa resposta no desenvolvimento deste projecto? É muito importante que seja transmitido a todos a falácia educacional que é o acordo ortográfico, fazer perceber que a desobediência civil nas escolas também é necessária e certamente legítima, pois é um direito quando somos esmagados por uma obrigatoriedade que não tem qualquer fundamento. Há adesões, há sucessos, principalmente na receptividade das Associações de Pais, mas ainda há muito por fazer, um dos grandes problemas são os manuais escolares acordizados, tudo isto é ir contra o sistema, a resistência implica acções inteligentes, e um determinado estoicismo.
7 - A nossa língua tem uma grande base na cultura portuguesa e o novo acordo veio provocar muito incómodo em muita gente e muito caos em todo o lado, triplicando os erros e as versões. Tendo em conta os problemas que têm surgido com o novo acordo, de que forma a cultura e a língua podem ficar mais enfraquecidas? Como já referi anteriormente o acordo ortográfico é inibidor da cultura portuguesa e consequentemente visa destruir os nossos valores identitários. O caos é um sintoma de que o disparate não é entendível, a carência de base lógica deste pretenso acordo, o seu divórcio de uma saudável evolução linguística, não permite qualquer coerência, daí várias versões e tantos erros. Se não se abortar rapidamente com a implementação do AO 90 corremos o risco de a nossa língua perder importância ao se transformar numa Torre de Babel onde se compromete a sua coerência.
8 - Como dinamizador de artes e da cultura através do ‘cardinal cinco | colectivo’ e do grupo de ‘aCção’, como vê a forma como o Estado, a comunicação social e as Câmaras têm tratado a cultura e a têm posto de parte? No estado-a-que-isto-chegou, quando um Ministério da Cultura é despromovido para uma mera secretaria, é claro que o interesse que os nossos governantes têm pelos livros e por tudo o resto, tornam a cultura e a identidade dispensáveis, ou quanto muito no que menos importa… e é o que primeiro é sacrificado pela necessária austeridade no altar dos interesses economicistas. Muitos órgãos de comunicação social, muitos pasquins, e sobretudo a televisão, e ainda portais e sítios na internet, seguem a moda de que a cultura, a arte e o intelecto não interessam-cá-muito. Os Municípios, salvo raras excepções, pouco ou nada fazem do que deviam fazer. No estado-a-que-isto-chegou resta-nos aprender a dançar Kizomba… enquanto não nos suicidam de vez. Os sinais dos tempos são o afogamento da cultura e da actividade artística que a deve expressar. Promovem-se dinâmicas que pouco mais fazem do que animar ludicamente e provocam a distracção conveniente à alienação da identidade. Quando grupos financeiros substituem as nações, quando os interesses economicistas superam os que visam o bem-estar da sociedade, quando o fabrico e a venda de armamento próspera e a Medicina falece, quando a Investigação Científica é pervertida por objectivos estranhos à evolução do conhecimento, quando a espiritualidade é conspurcada por propósitos fratricidas, quando o ensino; a saúde; a alimentação; os livros; a comunicação; os transportes; a habitação; as tradições; todos os cuidados… são meramente entendidos como negócio, quando a estupidez substitui a sabedoria: não há liberdade, não há humanidade! Quando não há cultura é uma mera composição de fachada conveniente à massificação e manipulação dos povos, e desta forma a arte também não cumpre a sua nobre função e torna-se numa falácia instrumentalizada por uma ditadura de veludo. Sucedem-se crises, por todos os motivos… os responsáveis pela gestão dessas crises e de tudo o resto, afirmam com estóica serenidade e choramingando como crocodilos: «primeiro corta-se na cultura», sacrifício possível para a salvaguarda de muitas outras coisas importantes, talvez tudo o resto menos nós próprios, aniquila-se assim os valores identitários e facilmente nos tornamos escravos do sistema. Sabe-se que o Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial fazia um enorme esforço, nomeadamente financeiro, enquanto era atacado e brutalmente flagelado pelos bombardeamentos nazis, perante as terríveis e calamitosas circunstâncias o governo propôs que fosse sacrificada a cultura e suspendidas as actividades que a exprimem, aparentemente não relevantes para o esforço de guerra. O Primeiro-ministro Winston Churchill contestou esta proposta perguntando: «se cortamos na cultura pelo que é que vamos lutar?» Convenceu o governo e a promoção da cultura e as actividades artísticas também fizeram parte do esforço de guerra que impediu a invasão da Grã-Bretanha, manteve elevada a moral dos povos e tornou possível ao Reino Unido a vitória. A expressão artística e o desenvolvimento cultural não se movimentam por decretos ou modas, não são meros artigos de consumo, e muito menos devem servir como ferramentas de manipulação, pois são e serão, acima de tudo a emergência.
9 - De momento estão a promover uma petição internacional através do ‘Avaaz’. O que podemos esperar com este acto de luta virado para todos os que se possam interessar pela cultura portuguesa, pela língua portuguesa e pela sua continuidade? Esta petição visa exigir à poderosa Microsoft que permita a utilização do português costumeiro, da forma como é escrito pelo menos nos países soberanos como Angola e Moçambique. É certamente uma petição que contará com muitos subscritores e mexerá com os interesses instalados, obrigando-os a rever a forma como procedem e menosprezam determinados valores, a Microsoft se ignorar esta petição só demonstrará uma total insensibilidade perante o valor da língua portuguesa e que é subserviente aos que têm interesses em levar por diante o acordo ortográfico, sem qualquer respeito. Por outro lado se a Microsoft permitir a continuidade das ortografias costumeiras, nas versões possíveis, tal como acontece com as línguas inglesa, castelhana, árabe, etc., sem impor o corrector acordizado… demonstrará para além de respeito pelos povos que utilizam a nossa língua, a devida consciência sobre o real valor que o português tem no mundo. E como pode ousar uma empresa estrangeira mexer no que é nosso, atentar contra o nosso património? Exigimos respeito, acima de tudo pela nossa Independência e a dos outros que comungam deste mesmo património.
10 - Através do ‘cardinal cinco | colectivo’, a partir 2012 organizaram a actividade ‘catáSTrOPhe´ contra o acordo ortográfico através do humor e de exposições, palestras entre outros. Qual foi a receptividade por parte dos participantes? Que mensagens conseguiram passar e por que é que era uma actividade essencial que queriam ver desenvolvida através de jogos e outros? O projecto catáSTrOPhe promovido pelo cardinal cinco | colectivo consiste acima de tudo em mostras de artes plásticas e visuais, e espectáculos, em que são apresentadas obras que contestam o acordo ortográfico, estes eventos são complementarizado com oficinas, principalmente destinadas a crianças, e também com palestras e tertúlias. Estas acções e eventos têm tido sempre uma boa aderência por parte do público, e a participação de muitos artistas e intervenientes. De facto o sarcasmo tem sido uma característica quase constante das obras que têm constituído as mostras artísticas deste projecto, pois o disparate que é o AO 90 proporciona situações humorísticas, e até porque já que também nos podemos rir, sempre choramos menos vezes por causa do desgosto que nos provoca o atentado que está a ser perpetrado contra a nossa língua portuguesa. Muitas das obras artísticas que constituem o acervo da catáSTrOPhe têm estado patentes noutras exposições colectivas, levando assim a crítica ao acordo ortográfico a outras demonstrações culturais. O projecto catáSTrOPhe terá certamente continuidade, pois tudo indica que esta luta ainda se prolongará por muito mais tempo… e a expressão artística tem certamente um papel relevante na defesa do nosso património linguístico, pelo que não baixaremos os braços e iremos continuar a comunicar o nossa reprovação, a nossa revolta e o nosso repúdio pelo AO 90.
11 - Tem um vídeo de uma instalação «Que Palavra Será» de Samuel Beckett. O que o inspirou a fazer este vídeo e esta instalação? O poema «Que Palavra Será», um dos últimos do dramaturgo irlandês fundador do Teatro do Absurdo e Prémio Nobel da Literatura (1969), é uma desconstrução do monólogo do Príncipe Hamlet na sua biblioteca - «Ser ou não ser, eis a questão: mais vale em espírito viver recebendo os golpes da afrontosa sorte ou armas tomar contra um mar de problemas?» É justamente esta desconstrução do dilema citado na peça «Hamlet» de William Shakespeare que me inspirou a fazer esta instalação e a reproduzi-la em vídeo, utilizando em simultâneo diversas formas de expressão como o Teatro, a Dança, a Fotografia… e um Espelho. Absurdamente a palavra, o dilema e a existência são vividos na intimidade de uma Sala por actores, por bailarinos e por poetas perdidos, que interagem sem comunicarem entre si, estão perdidos na procura da reposta, são funcionários de um laboratório filosófico.
12 - O que é que aprendeu com o Samuel Beckett e este poema? Samuel Beckett e o seu poema «Que Palavra Será» ensinaram-me que os dilemas não existem para serem meramente resolvidos, mas são, em primeiro lugar para serem vividos, que o absurdo é uma realidade possível, que a contradição é um direito que nos assiste, que a liberdade é viável numa existência sem princípio nem fim, como este palco-instalação que se apresenta num nunca-abrir-e-fechar-de-pano. Viver é possível e a felicidade também.
13 - Fez outra vídeo-instalação sobre a «Torre», chamada «de São Vicente», que tem uma história de vários séculos. O que é que esta história representa para si? Esta história representa o momento de apogeu da aventura portuguesa que deu novos mundos ao Mundo, e tornou possível a interacção entre os povos dos diferentes continentes do nosso planeta. Esta torre foi mandada erguer por El-Rei D. Manuel I e edificada pelo Mestre Francisco de Arruda, entre os anos de 1514 e 1520. Nela distinguem-se dois corpos: o bruto baluarte armado de dissuasora artilharia e a poética torre, cuja medieva atitude a torna de menagem de um sonho. O calcário de lioz foi esculpido dando forma às lembranças náuticas, vegetalistas e significativas da aventura portuguesa, no estilo que tem o nome de El-Rei, o manuelino. Não só fiz uma vídeo-instalação como também uma colecção de fotografias, cujo conjunto constituiu uma exposição itinerante que esteve patente em Londres, Lisboa, Porto Santo, Ponta Delgada e Bissau, e ainda na mostra comemorativa do centenário do falecimento de São Francisco Xavier e representou Portugal na Cimeira dos Ministérios da Cultura dos países de língua portuguesa. As imagens são coerentes com o percurso estético que desenvolvi em trabalhos apresentados noutras exposições, nos quais uso um jogo conceptual entre objecto, sombra e luz. Um jogo em que o estático, na sombra que a luz solar provoca, se revê movendo-se como viajante no movimento de rotação da Terra. Esta «Torre» todos os dias discretamente regressa ao mesmo ponto do Universo acompanhando o movimento do seu planeta... Também deste jogo fazem parte todos os seres vivos que com ela navegam.
14 - Retratar a história de Portugal é uma questão essencial? É essencial e fundamental! Porque a história de Portugal é uma constante interligação com todas as identidades nestes quase nove séculos de aventura, a que começou quando El-Rei D. Afonso Henriques discutiu com a Senhora sua mãe nos campos de São Mamede em 1127, e ao mesmo tempo fundou-se a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo do Templo de Salomão, os que, conhecidos também como Templários, criam o projecto do Porto-do-Graal, cais de partida para o resto do mundo, para a gnose espiritual, para o encontro com tudo e com todos. Não importa meramente conhecer os factos, mas é igualmente relevante conhecer as razões e as ideias que os motivaram. A nossa história é tudo quanto nos dá a razão de existir, de até (re)conhecer o que foi erro para agora melhorar, e não perder de vista a nossa valiosa identidade: a vontade de conversar, o costume de procriar no povo visitado, o Natal recriado num Presépio do tamanho do planeta, o hábito do perdão que esmaga a força bruta, a portugalidade! Esquecer, ignorar, reduzir a nossa história, só pode interessar a quem a pretende substituir pelo império do mesquinho, pelo engodo economicista, por quem pretende que faleça a humanidade, o fundamento da nossa aventura histórica.
15 - Quais são os seus sonhos para Portugal? Eu sonho que Portugal se cumpra! Quando se constrói um edifício as suas fundações são executadas de acordo com o projecto arquitectónico que estas mesmas fundações devem suportar, tudo é um todo, a ver com a dimensão e altura concebidas, com os materiais que se utilizam, com a função pretendida, com o que esse edifício simboliza e serve. Eu quero que Portugal seja Portugal e não outra coisa. Não se pode começar a construir um edifício de um determinado estilo e para pensada funcionalidade, e a meio da sua construção contrariar o sonhado e iniciado, modificar o por nós planeado, passando a imitar outras construções próximas, numa pretensa tentativa de coerência com algo diferente da nossa realidade e do que é autêntico. Portugal só pode ser Portugal mantendo-se fiel à sua fundação, idealizada como vocação deste edifício-nação ser um cais de partida para as outras partes do mundo. A nossa fundação é um grito de liberdade, o chamado «Grito de Almacave», pronunciado pelos povos nas míticas Cortes de Lamego (1143): «NOS LIBERI SUMOS, REX NOSTER LIBER EST, MANUS NOSTRAE NOS LIBERVERUNT (Nós somos livres, nosso Rei é livre, as nossas mãos nos libertaram)» - eis os alicerces de Portugal! Eis que somos livres para decidir, o que nos rege é também livre, soubemos nós mesmos adquirir toda essa liberdade, por tanto temos a responsabilidade de (e queremos) continuar Portugal! Fernando Pessoa diz-nos na «Mensagem» que o Portugal sonhado acontece: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce», só que tal sonho foi interrompido no século XVI, não só pelo desastre de Alcácer-Quibir, mas também por tantos que nos fizeram a guerra, nos pilharam, nos corromperam e nos convenceram a ser como eles, até veio para aí a Inquisição, a escravatura, o estrangeirismo, o vedetismo, e sem a nossa peregrinação conversável acabámos por perder a rota da «Ilha dos Amores»… Luís Vaz de Camões e Fernão Mendes Pinto ficaram a falar sozinhos… Padre António Vieira e Bandarra, sapateiro de Trancoso, tentaram voltar a encontrar o sonho… Portugal continua a existir, precário, longe dele mesmo, mas cá vamos tentando continuar a sonhar o nosso fado… com o regresso à tal «Ilha dos Amores, com a Restauração. Eu sonho que Portugal se cumpra! Eu quero com os meus vizinhos possam decidir dos desígnios da Nação, quero uma democracia participativa, que os Municípios voltem a ser Órgãos de Soberania, quero que as Repúblicas de El-Rei D. Dinis voltem a acontecer, quero que quem conheço me represente em Cortes, quero um Estado social e previdente, quero educação, Escolas e Universidades com acesso gratuito para todos, quero que os portugueses saibam e sejam, quero conhecer e tratar com os outros povos, quero uma casa para todos, quero navegar, viajar, quero ciência, invenções e a Medicina da Rainha Santa, quero poder voar na passarola de Bartolomeu de Gusmão, quero a Nau Catrineta, quero poesia e integrar Portugal, quero que de novo me ate ao leme a vontade de El-Rei. Eu sonho que Portugal se cumpra! Eu tinha vinte e poucos anos, estudava artes, aprendia Fotografia, e a necessidade de uns determinados exercícios técnicos levou-me a fotografar um candeeiro de iluminação pública no jardim do Príncipe Real em Lisboa, o domínio da profundidade de campo impôs-me fotografar o tal candeeiro de baixo para cima, para o que tive a necessidade de me deitar no chão apontando a objectiva para o céu… concentrado na imagem que criava, ouvi uma voz, um velho homem sentado ali num dos bancos, bem próximo de mim, perguntou-me: «o senhor é tão maluco quanto eu?» Respondi-lhe: - Não está a ver que sou! Fiz a fotografia e sentei-me no banco a conversar com este senhor de barbas brancas, conversamos bastante, nesse e noutros dias, quando a previdência nos proporcionava novo encontro naquele jardim, foram tantos os assuntos, o homem era um sábio que me contou ter obtido um Doutoramento em vadiagem, e vadios eram também os seus gatos, levou-me um dia a conhecê-los a sua casa, morava perto do jardim, num prédio na Travessa do Abarracamento de Peniche, os gatos não tinham nome, porque nunca se haviam apresentado… e o velho homem não tinha número de contribuinte, porque não gostava dessa maçada… conversamos imenso sobre Portugal, de como ensinar os meninos indo ao encontro das suas vontades, motivações e interesses, da arte de vadiar e de ser livre. Tirei o melhor curso da minha vida. Um dia, em que visitei a minha avó Cristina em Sintra, vi na sua televisão, para minha grande surpresa, o meu amigo de barbas brancas, o programa que estava a dar chamava-se «Conversas Vadias», era sempre com ele o entrevistador é que variava, a avó acompanhava regularmente este programa, disse-me que gostava muito do Professor Doutor Agostinho da Silva, e que «um homem como este só aparece uma vez em cada século». Eu sonho que Portugal se cumpra! Os portugueses são todos os que gostam de Portugal, mesmo que nascidos noutros países, pelo interesse que a arte de conversar e a liberdade de vadiar lhes despertou passaram a sentir o anseio de cumprir a missão de que todos os portugueses estão incumbidos: a de unir os povos no império da fraternidade e da amizade, bastando para tal as interacções pessoais, a humildade como apanágio da nobreza, a partilha de valores, a riqueza da diferença e a miscigenação das famílias. Fernando Pessoa diz-nos também na «Mensagem» que depois dos quatro impérios que nos afectaram, acontece o quinto que é Portugal: «Grécia, Roma, Cristandade, Europa – os quatro se vão, para ode vai toda a idade, quem vem viver a verdade, que morreu D. Sebastião?» Este nosso mito messiânico é realmente possível, até porque sem a sua realização não faz sentido a existência dos portugueses, até dos que ignoram ainda o papel a que são chamados a desempenhar nos desígnios da humanidade. O Quinto Império acontece! Portugal é o agente da universalidade. O império europeu, na sequência dos anteriores, levou-nos a dominações, a possessividades, a prepotências, a crises, a guerras, a sofrimentos, mas este império desfaz-se, falta agora cumprir Portugal! Somos capazes, temos sempre uma boa esperança para vencer todas as tormentas, a nossa alma tem a dimensão suficiente para que valha a pena. O Império é o do Espírito Santo, uma criança ou um pobre é o Imperador! O poeta António Gedeão escreveu: «Que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança». Eu sonho que Portugal se cumpra!
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Projecto Vidas e Obras Entrevista: Pedro Marques
Correcção: Fátima Simões
11 de Agosto de 2015
Correcção: Fátima Simões